O negócio bancário foi a grande renda do final do século passado e do início deste século. O crédito à habitação foi um dos mais poderosos mecanismos desta transferência de riqueza assegurada pelo Estado, do bolso dos contribuintes para os acionistas do bancos. Com a imposição dos juros baixos na adesão à moeda única, o crédito fácil sustentou a procura interna num longo ciclo de compressão dos salários. E a loucura do betão instalou-se.
O Estado financiou diretamente o negócio. Acaba de ser conhecido o primeiro estudo sobre a aplicação dos fundos públicos em habitação ao longo de 25 anos (1987-2011), realizado pelo Instituto da Reabilitação e Reabilitação Urbana (IHRU). Em síntese: três quartas partes destes fundos, nada menos que 7 mil milhões de euros, foram entregues aos bancos sob a forma de bonificação dos juros cobrados no crédito à habitação. Enquanto as despesas de realojamento não passaram de 14%, os incentivos ao arrendamento consumiram apenas 8%. O número de famílias a viver em casas arrendadas caiu para metade em duas décadas. Segundo o estudo do IHRU, houve vários anos em que parte das verbas orçamentadas para realojamento e apoio ao arrendamento ficaram por gastar, tal era a obcessão em construir.
Na confortável posição de intermediária, a banca nacional pedia emprestado aos grandes bancos do centro da Europa, que dispunham dos excedentes de capital daquelas economias, e emprestava em Portugal a um amplo segmento popular de baixos rendimentos, sobrecarregado pelo arrendamento caro e aberto ao crédito para a compra de casa. A média dos anos 1990-2010 é de oitenta mil novos fogos, o equivalente a uma cidade de Coimbra construída em cada ano. O parque habitacional aumenta 40% nesse periodo e a dívida hipotecária cresce 2000%.
Até à crise financeira, o crédito à construção e à habitação foi sempre dez vezes superior ao concedido à indústria, pescas e agricultura (DN, 20.02.2012). Ultrapassou o valor do PIB em 2008, ao atingir os 180 mil milhões de euros. A bolha crescia, mas o volume de depósitos não a acompanhava. Cada vez mais alavancados, os bancos continuavam a distribuir copiosos dividendos aos acionistas. Como regista Pedro Santos Guerreiro, só entre 2006 e 2010, os três maiores bancos privados (BCP, BPI, BES) entregaram cerca de 2 mil milhões de euros de dividendos, capital que poderia ter reduzido a alavancagem e protegido os bancos.
Ao mesmo tempo que a supervisão fechava os olhos à gestão arriscada, o Estado permitia taxas efetivas de IRC da ordem dos 15%, fruto do “planeamento fiscal”, e financiava indiretamente despedimentos na banca, permitindo que os custos de indemnizações fossem diluídos nos resultados apresentados. O resto da história é conhecida: em 2011, o valor bolsista dos três maiores bancos privados era um sexto do de 2007. BCP, BPI e Banif batiam à porta do Estado a pedir uma injeção de capital. O BES era um queijo suiço.
O próprio presidente do IHRU, Vitor Reis, ex-deputado do PSD, diz que os números do crédito bonificado são "assustadores". Na verdade, são apenas uma boa ilustração do modelo económico que nos trouxe até aqui, do bloco central que mandou e dos rentistas que acumularam. O número de famílias a viver em casas arrendadas caiu para metade enquanto se construiu o equivalente a uma cidade de Coimbra por ano. Foi um quarto de século de realojamento em guetos, rendas proibitivas, degradação dos centros históricos e dos bairros sociais, famílias endividadas e hoje penhoradas ou desalojadas. A política de habitação é o retrato do poder dos rentistas.