Balcãs: a ferida aberta das fronteiras identitárias

13 de janeiro 2024 - 19:17

A guerra voltará aos Balcãs? As fronteiras continuam pontos quentes e os ódios acumulam-se. Seria um erro ver as tensões como resultado de um confronto entre nações incapazes de conviverem. A destruição da Jugoslávia não teria sido possível sem a participação das grandes potências europeias e dos Estados Unidos. Por Loïc Ramirez.

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Retratos de pessoas desaparecidas em Gracanica. Foto de Erwan Briand/El Salto.
Retratos de pessoas desaparecidas em Gracanica. Foto de Erwan Briand/El Salto.

“Estamos a chegar e, após alguns metros, atravessamos aquilo a que chamamos a linha administrativa”, explica o nosso acompanhante. Um termo utilizado pelo Governo sérvio para designar “a fronteira” que o separa do Kosovo, cuja independência não reconhece. Ao controlar os passaportes, o funcionário vizinho entrega uns autocolantes ao condutor do nosso veículo. Este é obrigado a cobrir os símbolos da República da Sérvia visíveis nas chapas de matrícula do carro. Uma decisão tomada pelas autoridades kosovares desde abril de 2022, como resposta à obrigação semelhante imposta pela Sérvia aos automóveis com matrícula do Kosovo que circulam no país. Um conflito de natureza simbólica que demostra que as tensões ainda estão vivas neste território que foi palco de uma guerra sangrenta no final do século XX.

À medida que avançamos, as bandeiras albanesas tornam-se mais numerosas. Não a bandeira do Kosovo. De repente, ao entrarmos na cidade de Gračanica, surgem as bandeiras da República da Sérvia, que ondeiam pelas ruas. Amarradas aos postes de iluminação, por cima de todas as lojas e estabelecimentos comerciais, as suas cores podem ser vistas por todo o lado: o vermelho, o azul e o branco.

O Kosovo fez parte da República Socialista da Sérvia quando esta última pertencia ao conjunto de seis entidades geopolíticas que constituíam a República Socialista Federativa da Jugoslávia. Mas, tal como todo o bloco socialista europeu no início dos anos 90, o país dos Balcãs foi atingido pela onda separatista. Primeiro a Eslovénia, a Croácia e a Macedónia do Norte, tornaram-se independentes em 1991. Mais tarde, a República Socialista da Bósnia-Herzegovina, o que desencadeou uma resistência mais forte do Estado central, cuja sede era em Belgrado. As chamadas “guerras jugoslavas” estavam a entrar numa fase de expansão e a posicionar-se como um tema europeu de primeira ordem. Ao mesmo tempo, a cobertura mediática dominante centrava as suas críticas no governo erradamente designado de “sérvio” (quando na realidade ainda era o Estado jugoslavo) e no seu líder Slobodan Milošević, acusado de planear uma limpeza étnica a favor dos sérvios. Em 2001, o dirigente foi extraditado para ser julgado no Tribunal de Haia por crimes contra a humanidade e crimes de guerra no Kosovo.

“Quando o Ocidente escolhe um lado, começa a demonizar o lado oposto”, explica a jornalista Ljiljana Smajlović, que trabalhava para o famoso New York Times durante o conflito. “A ideia era que se os sérvios não derrubassem Milosević, então éramos todos maus, nem sequer humanos. A NATO ficou imediatamente do lado das forças separatistas. Entre 1997 e 1998, a sua atenção centrou-se na província do Kosovo, no sul da Sérvia, onde um grupo de guerrilha albanês chamado Exército de Libertação do Kosovo (Ushtria Çlirimtare e Kosovës ou UÇK, em albanês) estava a multiplicar os ataques contra a população sérvia e as autoridades jugoslavas. O seu objetivo era unificar o território, maioritariamente povoado por albaneses, com a Albânia.

Apoiado pelos países ocidentais, incluindo os EUA, o Kosovo recebeu fundos, materiais e treino para poder enfrentar as tropas enviadas por Belgrado. Como era de esperar, a repressão do governo jugoslavo sobre as comunidades albanesas favoreceu o discurso dos meios de comunicação internacionais que difundiram a notícia de uma operação de limpeza étnica por parte do governo de Milosević. Em 24 de março de 1999, a NATO lançou uma campanha de bombardeamento da Sérvia que duraria 78 dias, selando o conflito a favor dos nacionalistas do UÇK. Derrotado, o governo de Belgrado foi forçado a retirar as suas tropas do Kosovo e a província ficou sob o mandato da Missão de Administração Provisória das Nações Unidas no Kosovo (MINUK). A 17 de fevereiro de 2008, a região declarou unilateralmente a sua independência da Sérvia. Uma situação de facto que Belgrado não reconhece, nem alguns países europeus, incluindo a Espanha (embora esta última por razões internas ligadas às tensões com a Catalunha).

“Os conflitos por causa da terra são sempre longos e cruéis”, diz Aleksandar Gudzić, professor de história e residente em Gračanica. “Foi uma guerra civil em que não havia inocentes nem culpados”. O homem recebe-nos no Centro Cultural da cidade, cujo objetivo, diz ele, é “a divulgação e a manutenção da cultura sérvia”. Situada a poucos quilómetros da capital do Kosovo, Pristina, a cidade de Gračanica é um gueto sérvio. “Depois de 1999, os sérvios foram expulsos das suas casas, os que ficaram quiseram reagrupar-se e preservar a sua identidade”, explica. No final da guerra, 50.000 soldados estrangeiros da chamada KFOR (Kosovo Force) foram colocados no território para se interporem entre as diferentes comunidades em conflito. Apesar da sua neutralidade, a maioria dos sérvios denuncia a sua ineficácia para os proteger das represálias dos separatistas albaneses, cuja vitória foi possível graças à intervenção da NATO. “Cerca de 235 mil sérvios deixaram o Kosovo, ante o olhar das Nações Unidas e do Ocidente civilizado”, ironiza Aleksandar.

No pátio exterior do centro, enormes letras de metal luzem a palavra Missing (desaparecidos). Quando nos aproximamos da estrutura, vemos inúmeras fotografias coladas nela. São todos rostos de pessoas, homens e mulheres. “São desaparecidos, todos vítimas do terrorismo”, comenta o jornalista Živojin Rakočević, enquanto aponta uma lanterna de bolso para as fotografias. Escritor e poeta reconhecido entre as comunidades sérvias do Kosovo, este homem utiliza a palavra “terroristas” para se referir aos membros do grupo paramilitar UÇK , acusados de terem cometido numerosos crimes contra os habitantes do Kosovo no final dos anos 90, não só contra os sérvios, mas também contra os albaneses leais às autoridades jugoslavas. “Criaram aqui um regime étnico e totalitário”, denuncia o jornalista. “Só podemos sobreviver nos guetos. Não é que não nos queiramos integrar, é que eles não querem que o façamos”. Eles? Os albaneses. No final da guerra, muitos líderes do antigo grupo paramilitar ganharam posições importantes no governo do Kosovo.

Entre eles, Hashim Thaçi, antigo guerrilheiro e principal negociador do UÇK durante o conflito, que foi primeiro-ministro e presidente da república antes da sua demissão em 2020, após ter sido acusado de crimes de guerra e detido por ordem do Tribunal de Haia.

Mais de vinte anos separam o presente dos anos mais sangrentos a que a região assistiu. Ainda assim, o Kosovo não foi capaz de sarar as cicatrizes. As comunidades sérvia e albanesa continuam em conflito. De acordo com os dados da UE, 93% da população do Kosovo (1,8 milhões) é de etnia albanesa. Isto implica uma posição extremamente minoritária para os sérvios, cujas comunidades se concentram na parte norte do território. A presença de 4.500 soldados da KFOR não impediu que as tensões se mantivessem. Todos os anos se registam ataques ou atos de violência entre as duas partes. O maior destes atos foi a onda de violência de março de 2004, durante a qual albaneses atacaram e queimaram centenas de casas e vários mosteiros ortodoxos, obrigando muitos sérvios e ciganos a fugir das suas aldeias. Segundo a Human Rights Watch, 19 pessoas terão sido assassinadas durante este acontecimento, que terá sido desencadeado pelo rumor do afogamento de três crianças albanesas pelos sérvios.

O último incidente grave teve lugar em 24 de setembro de 2023: um confronto entre a polícia kosovar e um grupo armado de cerca de trinta pessoas (todas sérvias) nas imediações do mosteiro de Banjska, perto da fronteira sérvia. O objetivo do grupo continua a ser um mistério. Várias pessoas foram mortas durante o tiroteio, incluindo um polícia kosovar de etnia albanesa. Pristina rapidamente acusou Belgrado de ter sido responsável pela tragédia, alegando uma intenção desestabilizadora por parte do país vizinho. Entre os suspeitos de terem iniciado a operação está Milan Radoičić, um homem de negócios e político que é membro do partido nacionalista Lista Sérvia, no norte do Kosovo. O homem está detido a aguardar julgamento.

A desintegração da Jugoslávia não só deixou feridas abertas no Kosovo mas também noutras partes do antigo Estado socialista. Situada no coração dos Balcãs, a República Federal da Bósnia-Herzegovina é hoje um centro de tensão geopolítica que preocupa a União Europeia. Nos termos dos Acordos de Dayton, assinados em 1995, o país foi dividido em duas entidades subnacionais: a Federação da Bósnia e Herzegovina (51% do território) e a República Srpska (49%). Há vários anos que esta última é acusada de querer tornar-se totalmente independente do resto do país, o que provavelmente desencadearia um conflito regional. Na capital, Banja Luka, Dusan Pavlovič encontra-se connosco em frente a um monumento situado ao pé da Assembleia Nacional: uma escultura de metal feita em homenagem aos que morreram no campo de concentração de Jasenovac.

“Não se pode compreender nada do que está a acontecer hoje se não se conhecer a história”, afirma categoricamente Pavlovič, diretor de um centro de estudos sociopolíticos. Segundo ele, a história da Republika Srpska “começa com a Segunda Guerra Mundial, quando os nacionalistas croatas queriam eliminar os sérvios”. Muito menos conhecido do que os campos alemães, o campo de Jasenovac foi um campo de extermínio nas margens do rio Sava (que hoje separa a Croácia da Bósnia) administrado pela Ustacha, uma milícia radical croata aliada dos governos de Hitler e Mussolini. Milhares de sérvios, judeus e ciganos foram aí assassinados. “Depois da guerra, o governo comunista de Tito, para evitar a desunificação da Jugoslávia, promoveu um discurso de apaziguamento entre as nações dos Balcãs, mas ainda no final dos anos 90, todas as famílias sérvias daqui tinham um familiar que tinha morrido durante este genocídio.

Durante este período, as forças de ocupação alemãs obtiveram também ajuda dos seus auxiliares muçulmanos, agrupados na 13ª divisão SS “Handshar”. Todo este passado teve eco na guerra de 1992, que envolveu uma luta até à morte entre croatas, bósnios (muçulmanos da Bósnia) e sérvios – os três grupos étnicos que formam atualmente os povos constituintes da Bósnia-Herzegovina. As memórias colectivas opostas chocam no país, cada uma delas alimentada pela amargura dos crimes do passado. Entre eles, destaca-se o massacre de Srebrenica, em julho de 1995, em que milhares de muçulmanos foram mortos pelas tropas do exército jugoslavo, maioritariamente sérvio. Acusados de fomentar o genocídio contra os muçulmanos bósnios, os sérvios consideraram a guerra como uma reedição da tentativa de extermínio de que tinham sido vítimas na década de 1940 pelos nacionalistas croatas. "A República Srpska é uma resposta a este perigo", conclui Dusan Pavlovič.

No país, confrontam-se memórias coletivas opostas, cada uma alimentada pela amargura dos crimes do passado. Entre elas, destaca-se o massacre de Srebrenica, em julho de 1995, em que milhares de muçulmanos foram assassinados pelas tropas do exército jugoslavo, maioritariamente sérvio. Acusados de fomentar o genocídio contra os muçulmanos bósnios, os sérvios perceberam, por seu turno, a guerra como um renascimento da tentativa de extermínio de que tinham sido vítimas nos anos 40 por parte dos nacionalistas croatas. “A República Srpska é uma resposta a este perigo”, conclui Dusan Pavlovič.

Há vários anos que o Governo da República Srpska mantém um braço de ferro com as instituições centrais de Sarajevo, acusando-as de não respeitarem os Acordos de Dayton e de estarem a ser intervencionadas por forças estrangeiras. O seu presidente, Milorad Dodik, foi sancionado pelos Estados Unidos devido às medidas adotadas pelo seu governo que tendem a alargar os poderes da pequena república em relação ao poder central. Para o governo de Banja Luka, a independência é uma questão de sobrevivência, pelo menos é o que defende. No entanto, os discursos nacionalistas ou identitários não respondem às aspirações económicas da juventude. “Nunca tive problemas em relacionar-me com croatas, bósnios ou qualquer outra pessoa”, explica Biljana, uma sérvia de 28 anos. Antiga estudante de línguas em Banja Luka, está atualmente desempregada e critica a falta de oportunidades no seu país. “A independência ou não da Republika Srpska não é algo que me preocupe a mim ou aos meus amigos, muitos deles querem ir-se embora”. De acordo com o Relatório sobre a Migração Mundial 2020, a Bósnia-Herzegovina é o segundo país europeu que registou o segundo maior declínio populacional (a seguir à Lituânia) entre 2009 e 2019.

A guerra voltará aos Balcãs? É certo que as fronteiras continuam a ser pontos quentes; porém, seria um erro ver as tensões como o resultado de um confronto entre nações incapazes de conviverem juntas. A destruição da Jugoslávia e do seu modelo multiétnico não teria sido possível sem a participação das grandes potências europeias e dos Estados Unidos. Ignorando as consequências, traçaram novas fronteiras, favorecendo uns em detrimento de outros. “O Ocidente queria controlar a região e aproximar-se da Rússia”, analisa o historiador Aleksandar Gudzić. Como exemplo, a base militar norte-americana de Camp Bondsteel, construída em junho de 1999, localizada no Kosovo e que constitui uma importante posição geoestratégica para o país. Entretanto, os ódios acumulam-se. Como aviso, nas paredes de algumas cidades do norte do Kosovo, pode ler-se “NATO fora, isto é a Sérvia!”.


Loïc Ramirez é jornalista freelancer.

Texto publicado originalmente no El Salto.

Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.