Tempestade em Valência

Auto-organização popular emerge, críticas ao Governo regional intensificam-se

02 de novembro 2024 - 18:01

Milhares tomaram em mãos as tarefas de auxílio. Governo valenciano rejeitou bombeiros de outras regiões e não mobilizou os seus bombeiros florestais. No meio dos alertas, responsável pela emergência reunia com serviço de festejos tauromáquicos. Direita e extrema-direita atacam agência meteorológica, ONU defende-a.

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Grupo de voluntários limpa as ruas em Paiporta.
Grupo de voluntários limpa as ruas em Paiporta. Foto de Biel Alino/EPA/Lusa.

Numa altura em que o número de mortes da depressão DANA que atingiu o sul e leste de Espanha superou os 200 e em que há informações de continuarem desaparecidas perto de duas mil pessoas, a força da auto-organização popular faz-se sentir com milhares de voluntários no terreno.

Voluntários meteram as mãos à obra enquanto faltavam meios no terreno

Nas zonas mais afetadas, as críticas mais imediatas são do atraso em chegar ajuda. Para aí, segundo o jornal Público espanhol “um rio incessante de pessoas carregadas de baldes, pás, vassouras, esfregonas, jarros de água e carrinhos de compras cheios de comida tem partido a pé “desde a madrugada desta sexta-feira de Valência para ajudar os municípios mais afetados pela DANA junto à cidade, onde os recursos mobilizados não são capazes de chegar a todos os pontos que necessitam de ajuda urgente”.

Esta “onda de solidariedade” acontece “como resposta à insuficiência de efetivos que não conseguem alcançar todas as zonas afetadas”.

Francesc, uma destas pessoas que se organizaram em grupos do Whatsapp, tem-se deslocado a Paiporta, a zona de Valência onde houve mais vítimas, com água, alimentos e roupa. Conta àquele diário que “no primeiro dia em que estive em Paiporta, as pessoas saltavam para cima de mim porque ninguém tinha ali entrado em 48 horas”.

As várias redes de auto-ajuda popular organizam-se, distribuem-se no território, dividem tarefas. Muitos vão a pé, dado o estado das estradas cuja organização do tráfego também está a ser assegurada por voluntários. Para trás ficam as zonas mais longe de Valência onde ainda não se consegue chegar. O mesmo voluntário diz que “para a quantidade de gente, carros e lama que há na rua vejo pouca polícia, poucos militares, poucos bombeiros”. E os que chegam tratam de localizar corpos e abrir caminhos, faltando assistência a quem não tem comida, água ou não consegue sair de casa.

Entretanto, escreve a agência noticiosa EFE, o Governo autonómico começou a organizar autocarros e tenta centralizar as ofertas de voluntariado através de uma página de internet. Na Cidade das Artes e das Ciências de Valência há “milhares” de pessoas de utensílios nas mãos à espera muito tempo para poder ir ajudar nos procedimentos de limpeza em zonas como Sedaví, Alfafar ou Catarroja.

Para além disso, a Generalitat valenciana decidiu restringir a mobilidade nas zonas afetadas neste fim de semana, justificando a medida com a necessidade de facilitar o trabalho do dispositivo de emergência e das empresas responsáveis por garantir serviços básicos. O chefe de Governo local Carlos Mazón pede agora aos voluntários para voltarem a casa.

Já o Governo nacional enviou mais 5.000 militares e o mesmo número de polícias e guardas civis para a região.

Migrantes também se organizam solidariamente

O jornal Levante dá conta de outra experiência. No meio da devastação, um grupo de 200 migrantes de várias origens, que se encontravam num hotel em Picanya, organizaram uma cozinha solidária, oferecendo o que têm a que necessite.

A parte de baixo do edifício onde se encontravam também inundou, ficaram sem água e luz, mas ainda assim estão a utilizar as instalações para cozinhar. Isto enquanto outra equipa retira a água do espaço inundado e procede a limpezas.

Bombeiros de outras regiões rejeitados, bombeiros florestais não mobilizados

O El Salto dá conta que as primeiras equipas de bombeiros de outras regiões foram recusadas pelo governo regional de Carlos Mazón. Só 72 horas depois é que foram autorizados a ir para o terreno. Os bombeiros da Catalunha, nomeadamente o seu Grupo de Atuações Especiais, tinham ativado logo na quarta-feira uma equipa com helicóptero de resgate e um médico para se deslocar à zona da catástrofe. Contam que tiveram de voltar para trás a meio do caminho por falta de autorização e afirmam não entender a decisão face à “magnitude do desastre”.

Aos de Navarra aconteceu o mesmo, como foi denunciado por um dos membros na rede social X. Estavam já prontos para sair quando foram informados de que não podiam ir. Os bombeiros de Alicante também denunciaram que estavam prontos para sair mas nunca chegou a comunicação nesse sentido.

O mesmo jornal informa que houve uma sub-utilização das unidades de bombeiros florestais: das 28 existentes, apenas duas foram mobilizadas para lidar com o temporal. A secretária-geral da Federação de Serviços à Cidadania das Comisiones Obreras, Pilar de Vera, confirma que apenas foram chamadas duas e que “essas duas unidades é a prática de um dia normal, como se não estivéssemos num nível de emergência” e critica a decisão do PP e Vox terem acabado com a Unidade de Emergência tendo-se feito “uma batalha política com um tema que não deveria ter sido nunca política”.

A dirigente sindical acrescenta que “agora não vamos exigir a ninguém a responsabilidade”, já que é altura de estar no terreno, “mas iremos pedi-la” no futuro porque “houve serviços que deveriam ter sido mobilizados e não foram. Há moradores a trabalhar e profissionais que não estão a ser chamados”.

Para além de haver cerca de 200 bombeiros florestais sem atribuições no combate às consequências da intempérie, os sindicatos também alegam que os seis helicópteros destes bombeiros permaneceram nas suas bases sem intervir nos dois primeiros dias emergência.

A reunião tauromáquica no meio da emergência

Outro facto que está a considerado um sinal de inação do Governo regional: o secretário autonómico de Segurança e Emergências, que é também diretor da Agência Valenciana de Segurança e Resposta a Emergências, Emilio Argüeso Torres, na terça-feira ao meio-dia, quando já eram conhecidos os alertas meteorológicos, decidiu manter uma reunião com o diretor do serviço de festejos taurinos.

A informação é do jornal Directa que consultou a agenda pública deste responsável e confirmou que a reunião com os espetáculos tauromáquicos na ordem do dia aconteceu e acrescenta que este responsável tem sido muito criticado por estar ausente das aparições públicas do executivo na sequência da tragédia.

Este órgão também verificou o seu currículo, concluindo que não tem “qualquer formação ou experiência na área das emergências”, sendo licenciado em Criminologia, Direito, Jornalismo e Publicidade, tendo entrado na Guarda Civil em 1992 e depois na polícia, antes de ter entrado na política por via do Cidadãos, partido do qual foi expulso por oferecer vantagens a quem abandonasse o partido, segundo esta formação política. Juntou-se depois ao PP.

O líder do PP ataca a agência meteorológica nacional, Organização Meteorológica Mundial defende-a

Alberto Núñez Feijóo, líder do PP, apressou-se a querer desculpar o dirigente regional do seu partido, apesar deste ter mostrado estar em consonância com o Governo nacional ao qual agradeceu. As suas palavras colocam em causa o trabalho da agência meteorológica nacional, embora esta tenha emitido avisos muito antes do executivo valenciano ter decidido lançar o alerta por SMS, já as enchentes se faziam sentir, e enquanto Mazón fazia passar a ideia de que a tempestade iria amainar.

Nas palavras do dirigente nacional do PP, “um presidente autonómico gere em função da informação que recebe. E a informação que se recebe depende de organismos com competência exclusiva do Governo Central, a AEMET ou a Confederação Hidrográfica”. Alegando ainda: “ninguém pode tomar decisões com base em informação que pode ser exata, que pode ser imprecisa, que pode ser melhorada”.

Os dados, recolhidos pelo El Diário, negam categoricamente a versão do líder da direita espanhola. E a agência meteorológica espanhola emitiu um comunicado a explicar que os seus avisos “se repetiram desde 24 de outubro com notas informativas e atualizações imediatas desde 29 de outubro”. Manhã cedo na passada terça-feira os níveis máximos de aviso já estavam lançados para parte da região. O comunicado das 08.04 não deixa margens de dúvida: face à possibilidade de inundações e cheias pedia-se “muita precaução! O perigo é extremo! Não viaje a não ser que seja estritamente necessário”. O que se seguiu é conhecido. Às 13.00 Mazón faz uma conferência de imprensa a dizer que o temporal iria amainar pelas 18.00.

O mesmo jornal consultou vários cientistas que alertam para os perigos de se lançar desconfiança sobre um organismo público como este. O professor de Física da Terra da Universidade de Castela-La Mancha, Francisco J. Tapiador, diz que “a atuação da AEMET na DANA foi impecável” e que “questionar o trabalho dos seus profissionais só serve para que a população desconfie dos seus alertas futuros e do trabalho dos meteorologistas. Isto, como se viu, acaba em tragédias pessoais”.

Também a porta-voz da Organização Meteorológica Mundial, Clare Nullis, saiu em defesa da AEMET, insistindo que esta “esteve a emitir constantemente advertências ao longo de toda a semana”. A nota da instituição realça que foram enviadas as mensagens padronizadas que é suposto comunicar, sendo estas “um formato universal para alertas de emergência”.

A mesma especialista avança que “os eventos climáticos extremos (…) tornaram-se mais prováveis e mais graves devido às alterações climáticas antropogénicas”. De acordo com a OMM, “cada fração adicional de aquecimento (…) aumenta o risco de precipitação extrema e inundações”. Assim, “o mundo deve agir agora”.

A mesma conclusão indica um primeiro relatório científico da World Weather Attribution que calcula que a crise climática duplicou as probabilidades do DANA ocorrer e terá feito com que as chuvas fossem 12% mais intensas.

O negacionismo da extrema-direita e “a culpa é de Bruxelas”

Quem aproveitou a onda para atacar também a AEMET foi o pseudo-sindicato de extrema-direita Mãos Limpas que apresentou queixa nos tribunais contra a sua responsável, junto com o diretor da Agência Valenciana de Segurança e Resposta a Emergências por suposto homicídio por negligência.

Já a extrema-direita política, representada pelo Voz, insiste no negacionismo climático. Para Santiago Abascal, o líder deste partido, a culpa do sucedido seria de uma “explosão criminosa de barragens” que a União Europeia estaria a implementar em Espanha. Numa mensagem dirigida à presidente da Comissão Europeia, publicada na rede social X, culpou-a de ser a primeira culpada pelo sucedido.

A mesma causa, aliás, que apontam para a seca. A ideia subjacente é que Franco teria criado um sistema de barragens que seria perfeito para travar estas catástrofes e que seria indispensável para a agricultaria e pecuária e que a União Europeia estaria a obrigar Espanha a eliminá-las. No caso valenciano, não houve sequer o encerramento de qualquer barragem.

O Vox esteve no primeiro Governo de Mazón e era precisamente responsável pelas emergências, tendo sido sob sua responsabilidade que se extinguiu a Unidade Valenciana de Emergências.

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