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Assim foi a última grande pandemia: a ‘gripe espanhola’ de 1918

Deram-lhe o nome de “gripe espanhola” mas trouxeram-na há um século soldados norte-americanos. Autoridades recomendaram limpeza, passeios e ar limpo, fecharam escolas mas mantiveram teatros, festas, procissões e corridas de touros. Artigo de Luis Díez.

Imprevisão, estupidez e desleixo. Foi esse o comportamento há um século, do Governo espanhol frente ao vírus que matou a 200 mil pessoas no país (1% dos habitantes) e acabou com a vida de 50 milhões de humanos em todo o mundo entre 1918 e 1920. Foi a “grande pandemia”. Chamaram-lhe “a gripe espanhola” porque só os jornais espanhóis falavam da maldita epidemia enquanto a imprensa europeia e norte-americana se encontravam submetidas a uma férrea censura de guerra e então, como agora, o que não se menciona não existe.

Algumas recomendações das autoridades parecem-se com as difundidas agora frente à praga do coronavírus. Outras contradizem o confinamento doméstico decretado agora. Revelam alguma da descoordenação da casa de Tocameroque. E outras evidenciam a penúria de meios sanitários e o alarme da população. É claro, nem o rei Alfonso XIII, que foi contagiado pelo vírus quando estava de férias em San Sebastián, nem o ministro do Estado (Assuntos Exteriores), Eduardo Dato, que foi visitá-lo, levantaram a voz em defesa do bom nome de Espanha face à “gripe espanhola”, mesmo que soubessem que o micróbio apareceu em finais de 1917 e infectou os soldados de catorze acampamentos dos Estados Unidos antes de ser reconhecido como patogénico muito mortífero e mutante num quartel do Kansas (Fort Riley) em março de 1918.

Em vez de suspender os envios de soldados para combater na Primeira Guerra Mundial, o presidente norte-americano Woodrow Wilson e o seu Chefe de Estado-Maior, o general Peyton C. March, decidiram continuar a enviar soldados e infectar a Europa. Muitos chegavam doentes. Outros não chegavam: morriam nos barcos. E os que chegavam, infectavam os demais. Os combatentes norte-americanos (canadiano e dos EUA) superavam o milhão e meio no velho continente. Mas não era um micróbio desconhecido que ia modificar os planos bélicos e ainda menos com os furibundos germanos e os seus aliados do tormentoso Império Austro-Húngaro quase a capitular. 

Mas na neutral Espanha aquele remédio carecia de eficácia. E a imprensa, sem açaime nem máscara, refletia o alarme da população sobre a expansão do vírus que, segundo se soube depois, já atacava os franceses, britânicos, portugueses, italianos e alemães. Aqui a epidemia começou a revelar-se com crueldade em setembro de 1918 e não só afetou o rei (levemente, isso sim) mas também a família do chefe do Governo, o conservador António Maura, que foi com urgência para Solares (Cantabria) perante o risco da morte da sua filha.

O El Globo perguntava-se no dia 1 de outubro na capa: “que precauções se tomaram em Madrid? As notícias que se recebem das províncias confirmam um agravamento da epidemia, estendida de forma tão considerável que começa a preocupar o Governo, e é de desejar que preocupem também as autoridades locais, que são as que, em colaboração com o corpo médico, têm nas suas mãos o poder de parar o mal, isolando-o onde já existe e evitando o contágio onde ainda estão livres do vírus. Em Madrid, onde casos de contágio se tinham limitado aos quartéis, vão assinalando-se alguns na vizinhança; não temos conhecimento até agora que se tivesse tomado alguma medida preventiva”.

Tinha razão o cronista ao chamar a atenção das autoridades locais já que o país carecia de uma rede sanitária pública e nem sequer ministro da Saúde havia no Governo de Maura. “De San Sebastián e outros pontos do Norte, onde tão estendida está a epidemia - dizia o jornal fundado por Emílio Castelar -, chegam os comboios repletos de viajantes, sem que estes tivessem sofrido medidas de desinfeção indispensáveis”. Atribuía às denúncias do colega do ABC a decisão do ministro da Governação, Manuel García Prieto, marquês de Alhucemas, de colocar-se em movimento e implementar algumas medidas.

Uma vez que movimento se demonstra andando, o ministro deslocou-se a Medina del Campo e ao Pozal de las Gallinas, localidades da província de Valladolid, muito afetadas pela epidemia. No terreno, e acompanhado do inspetor geral da saúde, García Prieto ditou algumas disposições. A primeira circular dizia: “fazem falta médicos” e prometia “remunerar devidamente” os voluntários que se apresentem. O subsecretário da Governação pedia socorro ao presidente do Colégio Médico, ao decano da Faculdade de Medicina e rogava aos jornalistas que fizessem chegar o pedido à “classe médica”. A segunda medida era a ordem aos inspectores de saúde e vigilância, chefes de segurança e Guardia Civil das localidades fronteiriças de não permitir a entrada de pessoas procedentes de locais onde se saiba ou se suspeite da existência da epidemia. E a terceira consistia em pedir aos governadores que exigissem aos presidentes de câmara medidas profiláticas. “O Governo está disposto a proporcionar tendas (de campanha), material sanitário, paletes, alimentação e recursos pecuniários para as classes indigentes”, acrescentou.

Não se decretou o isolamento da população, mas sim o controlo sanitário das fronteiras. O El Imparcial informava no dia 1 de outubro do “cordão sanitário” na fronteira com Portugal. Referia-se aos postos de controlo nas fronteiras de Salamanca e Badajoz que só deixavam passar aos espanhóis de volta. No mesmo dia, o El Liberal titulava na capa: “A epidemia tem um desenvolvimento alarmante”. E o El Heraldo de Madrid inaugurou uma secção, “a gripe”, para oferecer telegraficamente as notícias que recebia dos quatro pontos cardinais.

Ali podia-se ler: “Tortosa. -- A consequência da epidemia reinante fez falecer don Alfredo Caminals, procurador dos tribunais e a sua esposa Dolores Biernas, filha do proprietário do Diário de Tortosa, Francisco Biernas, passando só uma hora de um e outro falecimento. No batalhão de Almansa há 30 infetados e faleceram 13. Aumenta o alarme na vizinhança.

Valência.-- Estende-se a epidemia gripal pelas aldeias da província, entre elas Chera, Luceite, Picasent, Ribarroja. Faleceram pela gripe três soldados. Huesca.-- A epidemia gripal propaga-se pelas aldeias. Na fronteira francesa instalou-se uma estação sanitária, adotando todo tipo de medidas com os trabalhadores espanhóis que regressam.

Zaragoza.-- Recebem-se notícias de se ter intensificado a epidemia nas aldeias da província. Em Ateca há 700 pessoas infetadas e pede-se que enviem elementos para atendê-los. Celebrou uma sessão a junta provincial de saúde para tratar da epidemia reinante, tendo acordado, em vista de que na capital não se registou nenhum caso, não adiar as festas do Pilar”.

Algumas notas eram contraditórias: “Alicante.-- A gripe continua a desenvolver-se na capital com características benignas. Registaram-se algumas mortes”. Outras refletiam melhor a situação. “Oviedo.-- No Governo civil celebrou-se uma reunião para adotar medidas contra a gripe e acordou-se estabelecer um hospital, oferecendo o bispo os edifícios do seminário; as camas serão disponibilizadas pelo Governo”. E em outras aparecia a expressão “casos isolados”, tão repetida nos nossos dias para se referir à corrupção. “Bilbao.-- Face aos alarmantes rumores de epidemia de gripe, a Inspeção de Saúde publicou uma carta para tranquilizar a vizinhança na qual se diz que em Bilbao a situação é boa e os casos ocorridos são isolados. Adotaram-se oportunas medidas para que naquelas aldeias onde se estende mais a epidemia sejam cumpridas com rigorosa seriedade por parte das autoridades”.

La Correspondencia publicava: “Telegrafam de Badajoz que se recebem notícias alarmantes do estado sanitário em Portugal. Na zona de Melilla e em Tânger apresentou-se com grande intensidade a epidemia gripal. Em Valência endureceu-se, e continua a sua disseminação pelas aldeias da província. Em toda a fronteira portuguesa extremam-se as precauções sanitárias”. O decano da imprensa madrilena denunciava no dia 30 de setembro a presença nas ruas de Madrid de “portugueses esfarrapados, carregados com as suas mochilas, em direção ao seu país”. Portugal enviava tropas para a frente centro-europeia. E o El Globo aproveitava a nota para adicionar: “com isto fica desmentida a nota oficial com a que pretendiam fazer-nos acreditar que os portugueses transitavam por Espanha em comboios especiais e em rigoroso isolamento”.

As medidas de contenção daquele vírus contra o que não havia medicamentos (a vacina conseguiu-se nos anos quarenta) foram escassas e viram-se ultrapassadas. “Agradar-nos-ia saber se as medidas adotadas pelo Governo para evitar que as invasões epidémicas continuem a entrar pelas fronteiras se encontra a de desinfetar a correspondência que chega do estrangeiro”, perguntava-se El Globo. Não era a única pergunta naqueles dias de outubro de 1918. “Que colocaram a disposição as autoridades sanitárias, o governador e o presidente da câmara? Desinfectam-se e arejam-se de sessão em sessão os locais de espetáculos? Pratica-se a desinfeção nos cafés, nos tranvias, etc? Calculou-se o pessoal necessário para os serviços extraordinários do corpo médico municipal?” Depois de outras considerações, o jornal concluía: “Com este sistema e com as autoridades não é estranho que as epidemias se propaguem; o estranho é que fique alguém que possa comentar”.

Quais eram as explicações e recomendações das autoridades face àquela epidemia? O El Liberal publicava as conclusões da Junta de Saúde que lhe remetia José Call. “A gripe é doença conhecida em tempos remotos, ainda que com distintas denominações. É epidémica, contagiosa, microbiana, localiza-se com preferência no aparelho respiratório, ainda que pode atacar outros órgãos”, dizia o inspector Call antes de referir-se aos sintomas febris e outros similares ao do coronavírus que nos aflige. “Ataca com preferência as pessoas mais débeis e fixa a sua residência nos órgãos castigados. Por esta razão, os tuberculosos em primeira instância, os constipados, os doentes do coração, os diabéticos e todos os que padecem de algum processo crônico de entranha nobre são as suas vítimas, sobretudo todos os que para além de crônicos são idosos”. 

A definição dos grupos de maior risco não difere da referida ao coronavírus um século depois. As explicações sobre o contágio também não: “a doença é consequência do bacilo de Pfeiffer, propaga-se por contato direto, sobretudo em atmosferas confinadas onde existam portadores do vírus. Não se propaga por via hídrica. Transmite-se em alguns casos do homem para animais e dos animais para o homem, variando a intensidade segundo o terreno em que germina”. E enquanto a proporção de infectados, a autoridade sanitária estimava que “não descia do 40% em caso de epidemia. 

As recomendações diferiam bastante das atuais. Nem se mencionava a quarentena nem muito menos o isolamento, salvo para assinalar que “o isolamento sistemático dos doentes não é uma medida eficaz para evitar a doença, ainda que é conveniente procurar que só mantenham contato com eles as pessoas que os atendem”. Face ao confinamento caseiro imperativo, principal medida contra o vírus atual, as autoridades recomendaram então “os passeios ao ar livre e a vida em atmosferas que não sejam confinadas”.

Nesse sentido, figura na Wikipédia o conselho do governador de Burgos, Andrés Alonso Lopez de “estar no campo o maior tempo possível porque o ar livre, a água e a luz são os melhores desinfetantes nesta ocasião”. Em contraste, os mandatos vigentes do “estado de alarme” impedem passear ou ir à praia. A principal recomendação de então era “a higiene individual e coletiva”. Segundo o doutor Call, isto incluía a higiene das casas e a limpeza das roupas. De resto, a falta de medicamentos, recomendava “cantar moralmente” aos doentes, dar-lhes “quinina” e outros tónicos, administrar-lhes aspirinas e deixar ao bom critério do médico o tratamento em cada caso”.

Isso onde havia médico e os concelhos lhes pagavam (alguma coisa), já que centenas de aldeias daquela Espanha rural e enriquecida pela guerra europeia, careciam de médicos. No Mundo Gráfico clamava o grande António Zozaya (morto no exílio republicano no México) contra a incúria e o desprezo que padeciam naquela país cacique. “Há poucos dias - escrevia no dia 2 de outubro de 1918 - viu-se em Zaragoza um espetáculo transcendental ou insólito. Na ordenada manifestação pública, acorreram à capital, para fazer patentes as suas queixas e reclamar perante a opinião pública da proteção que as leis e as autoridades lhes negam, mais de duzentos homens sérios, dignos, corretos, incapazes de produzir transtornos, mas conscientes dos seus direitos e cumpridores dos seus deveres. Acredita-se que a manifestação foi, como é hábito, fruto da organização da classe operária. Mas não foi. Os que se viram obrigados a acudir a este procedimento de união de reclamação para se lamentar do atropelo e da injustiça foram os médicos titulares, homens de estudo, de reflexão e de disciplina universitária. Ao seu passo pelas ruas da aldeia, espalhou-se nelas, primeiro, a surpresa; depois, o respeito, e, por último, a adesão entusiasta.”

Aquele aplauso (diríamos hoje) a uns médicos inundados pela doença e pelas carências era o respaldo a uns homens (e alguma mulher) que depois de consagrar a sua juventude aos estudos mais difíceis e generosos - dizia Zozaya -, se fecham numa aldeia que, pela sua ignorância, costuma ser-lhes hostil; vivem nele alegremente; recebem, quando recebem, uma remuneração irrisória; sofrem da escravidão às mãos do cacique e da inimizade daqueles que suspeitam que pode perturbar com as suas explorações e abusos a cultura campesina. O pensador acrescentava: “Não exigem melhorias de classe, mas que seja efetivo o serviço que prestam à sociedade. As deficiências da lei de Saúde e a falta de atribuições dos técnicos fomentam e sustentam as epidemias. Sem independência e baixo a sob a tirania do caciquismo, os médicos rurais veem tornar-se estéreis os seus mais generosos esforços. E, assim, reclamam novas e eficazes leis sanitárias, mais em harmonia com os tempos e as necessidades da vida. A Pátria não pode deixar de ouvi-los - concluía - sim atentar contra si mesma e incorrer numa gravidade, uma terrível responsabilidade”.

O risco de contágio era elevadíssimo, mas as autoridades decidiram não assumir nenhum custo económico extraordinário que pudesse afetar as grandes fortunas nem arrastar a impopularidade da suspensão de festas, procissões e corridas de touros. Também não encerraram os teatros nem se proibiram conferências nem reuniões sociais. O Mundo Gráfico oferecia as fotos da infanta Isabel saindo da catedral de Barcelona para presidir a procissão da Virgem da Mercè. No mesmo jornal podia-se ver Francesc Cambó fazendo uma conferência no abarrotado teatro El Bosque de Barcelona. E também a praça de touros da capital da catalã, atestada de espectadores, batendo palmas à faena do destro Antonio Calvache. O Fomento encerrou as escolas de engenheiros e Instrução Pública, adiou o começo do curso escolar, mas em algumas províncias abriram-se as escolas e noutras obedeceram por metade. Enfim, nada a ver com as decisões do Governo atual de preservar a vida dos cidadãos por cima dos demais interesses. Por isso então, sem alarme oficial, mas real, morreram duzentos mil espanhóis.

Artigo de Luis Díez publicado no Cuarto Poder. Tradução de Diego Garcia.

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