Argentina: Hora de reflexão ante umas eleições transcendentes

21 de outubro 2023 - 21:55

Primeira volta das presidenciais de domingo vai decidir-se a três, entre um candidato da ultradireita, a candidata neoliberal e o atual ministro da Economia de um governo falhado. Artigo de Rubén Armendáriz.

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Javier Milei, Patricia Bullrich e Sergio Massa
Javier Milei, Patricia Bullrich e Sergio Massa são os favoritos a passar à segunda volta das presidenciais.

E, de repente, fez-se silêncio. Depois de meses ao rubro com operações políticas e económicas cruzadas, polémicas sem fim, manipulações mediáticas a granel e comícios para todos os gostos e feitios, os cinco candidatos presidenciais argentinos encerraram as suas campanhas para as eleições de domingo. Na sexta-feira, chegou o período de defeso, de silêncio de hospital, de reflexão, de angústia, durante o qual é proibido qualquer tipo de proselitismo.

Estas eleições são apresentadas como as mais transcendentais da história recente, onde, segundo algumas narrativas, estão em jogo a democracia, a república e até a própria existência da nação.

Este discurso tem um objetivo preciso: que o cidadão não se resigne a não escolher de acordo com as suas convicções, mas para evitar uma suposta catástrofe, para fugir ao abismo. A ética da responsabilidade é transformada, de forma maniqueísta, na ética da resignação.

Um total de 35,8 milhões de argentinos são chamados às urnas no domingo, dia 22, para eleger o presidente e o vice-presidente, bem como para renovar parcialmente a composição das duas câmaras do Congresso.

O cenário é dividido a três entre a oficialista União pela Pátria, a coligação neoliberal Juntos pela Mudança e a ultradireitista A Liberdade Avança. A principal aposta é não ficar de fora da segunda volta, embora um dos três não vá participar nela.

As últimas sondagens sobre as intenções de voto indicam que haverá segunda volta em novembro para definir quem governará o país a partir de 10 de dezembro para um mandato de quatro anos.

Das oito sondagens realizadas até agora em outubro, sete projetam que o candidato libertário Javier Milei será o mais votado, seguido do ministro da Economia Sergio Massa e de Patricia Bullrich. Para vencer na primeira volta, um candidato precisa de 45% dos votos, ou então 40% e dez pontos de vantagem sobre o segundo candidato mais votado.

A tarefa de Massa não é fácil, num país com uma inflação enorme, uma fome crescente, um governo falhado do qual é ministro da Economia: é visto como corresponsável pela crise e com um discurso que não gera confiança e muito menos paixão.

Massa conseguiu liderar em várias das últimas sondagens publicadas antes de serem proibidas a partir de 14 de outubro. A maioria das sondagens ainda coloca Milei na liderança, mas é notável que Massa tenha conseguido colocar-se nessa posição. É igualmente digno de nota o facto de Bullrich ter desaparecido das previsões de todos os institutos de sondagem, exceto um, nos últimos dias.

Para além de Milei, Massa e Bullrich, Juan Schiaretti (Fazemos pelo Nosso País, do peronismo dissidente) e Myriam Bregman (Frente de Esquerda e dos Trabalhadores) também são candidatos presidenciais.

O psicanalista Jorge Alemán assinala que em Milei há muitos traços que estariam presentes em quase todas as ultradireitas, como o ódio à representação política, ou seja, a política como algo que já não representa nada.

Há um desejo de começar tudo de novo e, portanto, de destruir tudo o que foi feito antes, o que era mais típico das revoluções, mas agora elas tomariam a forma do que Antonio Gramsci chamou de "revolução passiva", que seria tomar o instrumento revolucionário de um corte absoluto, mas num sentido inverso, reacionário, apontou.

Acrescenta que a xenofobia contra os imigrantes foi transferida no discurso dos "libertários" argentinos para uma espécie de xenofobia dentro da própria nação, no que diz respeito às formações políticas. O ódio da ultradireita argentina é o kirchnerismo, e ele assume diferentes características locais, mas também partilham a ideia de fazer do projeto político uma prática passional.

"Podemos enterrar o kirchnerismo", proclama Javier Milei. Destruir o kirchnerismo é também a meta anunciada por Bullrich. A finalidade destas campanhas era colocar fora da corrida a duas vezes presidente e atual vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, através do lawfare e até de uma tentativa de magnicídio.

O tiro falhou, mas a mensagem mafiosa ficou na retina de todos os argentinos: podemos matar-te a ti, aos teus filhos, aos teus netos, quando quisermos.

No encerramento da campanha, a candidato do Juntos pela Mudança conseguiu reunir todas as figuras da aliança neoliberal - o ex-presidente Mauricio Macri, o ainda chefe de governo da Cidade de Buenos Aires Horacio Rordíguez Larreta - para ganhar força no caminho de uma eleição imprevisível. A intenção da unidade era recuperar os votos perdidos para Milei e Massa.

O passado de Patricia Bullrich foi um tema de campanha e, em várias entrevistas, foi obrigada a explicar a sua atividade política antes do golpe de Estado de 1976. Milei acusou-a, sem apresentar quaisquer provas, de ter sido "uma montonera bombista" que "colocou bombas em jardins-de-infância" e chamou-lhe "terrorista".

Mas esta não foi a única vez. Durante o último debate, Milei voltou ao assunto com acusações semelhantes. Afirma que Bullrich fazia parte de Montoneros, um grupo político-militar peronista. Bullrich moveu uma ação judicial contra ele por calúnia e difamação, alegando que ele fez estas acusações "conscientemente falsas" com o objetivo de "obter uma vantagem eleitoral baseada em mentiras".

Até com o Papa se meteram

A proposta de "cortar relações com o Vaticano" feita pelo economista Alberto Benegas Lynch durante o encerramento da campanha de Javier Milei suscitou uma rejeição generalizada entre as autoridades da Igreja Católica na Argentina, tendo o arcebispo de Buenos Aires, Jorge García Cueva, apelado aos católicos para que "não deixem o Evangelho à porta da cabine escura".

O arcebispo de La Plata, Gabriel Mestre, descreveu as declarações do líder libertário como "lamentáveis, imprudentes" e advertiu que refletem "uma profunda atitude de intolerância por parte deste espaço político". "Quando algumas pessoas - de norte a sul, de direita a esquerda - não têm propostas consistentes para fazer, descarregam nos padres", disse o bispo de São Francisco, Sergio Buenanueva.

Dos cinco candidatos que concorrem, dois deverão ser escolhidos para decidir quem será o próximo presidente da Argentina na segunda volta, a 19 de novembro. Naturalmente, se um deles não conseguir a diferença necessária para evitar uma segunda volta.


Rubén Armendáriz é jornalista e cientista político, associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE). Artigo publicado no site do CLAE. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

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