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Após as inundações, o Paquistão precisa de ressarcimentos, não de caridade

Quem deve pagar pela crise climática? Porque deveria o Paquistão contrair qualquer empréstimo para pagar as consequências de uma crise que não causou? Artigo de Farooq Tariq.
Foto IRIN Photos/Flickr

No momento em que escrevo, mais de um terço do Paquistão está debaixo de água. As cheias repentinas, causadas pelas impressionantes chuvas das monções, ceifaram até agora a vida de 1.350 pessoas. Um milhão de edifícios residenciais estão total ou parcialmente danificados, deixando mais de 50 milhões de pessoas deslocadas.

Espera-se que as cheias venham a acrescentar 10 mil milhões de dólares em prejuízos a uma economia já de si instável. Mais de 793.900 cabeças de gado morreram, privando as famílias paquistanesas de uma fonte vital de subsistência. Cerca de um milhão de hectares de culturas e pomares foram afetados.

Estas consequências são sem dúvida um sintoma de uma crise climática acelerada. Apesar de produzir menos de um por cento das emissões globais de carbono, o Paquistão está a sofrer algumas das piores consequências da crise climática. Ao longo das últimas duas décadas, o país tem sido consistentemente classificado entre os dez países mais vulneráveis do mundo no Índice Global de Risco Climático. Como diz Julien Harneis, Coordenador Humanitário da ONU no Paquistão: "Esta super inundação é devida às alterações climáticas - as causas são internacionais".

Crise climática e injustiça causada pela dívida andam de mãos dadas

O povo paquistanês é a mais recente vítima de uma crise global para a qual não contribuiu praticamente nada, e que tem sido causada por emissões excessivas de países ricos e empresas poluentes. Esta injustiça fundamental está por detrás da crescente exigência de compensações climáticas por parte do Paquistão e do Sul global.

Uma destas exigências é a anulação da dívida. A injustiça causada pela dívida e a crise climática andam de mãos dadas. À medida que se intensificam os fenómenos climáticos extremos, países da linha da frente, como Moçambique e os Estados insulares das Caraíbas, enfrentam prejuízos económicos crescentes. Na sequência destes acontecimentos, os governos dos países de baixos rendimentos (e muitas vezes já fortemente endividados) são confrontados com a falta de financiamento e têm pouca escolha a não ser contrair novos empréstimos para reconstruir meios de subsistência e habitats.

Já assistimos hoje a este ciclo no Paquistão. Mesmo antes das inundações, confrontado com uma queda acentuada das reservas cambiais devido ao aumento dos preços mundiais das mercadorias e à subida do dólar americano, o Paquistão estava a afogar-se em dívidas. Os custos de eletricidade e alimentação subiram em flecha. Até ao final do ano, o Paquistão terá de pagar um total de cerca de 38 mil milhões de dólares ao FMI, Banco Mundial e outras instituições financeiras, incluindo o Banco do Estado chinês. Esta espiral de dívidas está na origem de uma crise económica iminente.

As inundações provocaram uma onda de ajuda estrangeira, com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) a contribuir com 30 milhões de dólares, para além de uma contribuição de 3 milhões de dólares das Nações Unidas. A ONU está a lançar um novo plano para ajudar as vítimas das cheias no Paquistão, enquanto os seus representantes ecoam apelos ao aumento das contribuições de todo o mundo. Mas tudo isto está longe de ser suficiente.

Enquanto as organizações humanitárias lutam para encontrar fundos de emergência, um rosto familiar voltou à ribalta. O Fundo Monetário Internacional (FMI) aprovou recentemente um pedido de resgate financeiro com 1,1 mil milhões de dólares para o país. À primeira vista, isto pode parecer vital para a recuperação do Paquistão, mas acumular mais dívidas sobre um país já em crise financeira apenas significará mais um desastre.

Cancelar a dívida, aumentar financiamento climático

As provas empíricas apoiam esmagadoramente a ideia de que muita da dívida pública é prejudicial ao crescimento económico. Em muitos casos, o impacto da dívida pública na atividade acentua-se à medida que a dívida aumenta. O elevado nível de dívida do Paquistão tornou-o mais vulnerável a choques económicos e enfraqueceu politicamente o país face a poderosos credores externos. Também reduziu significativamente a capacidade do Paquistão de investir na educação e nos cuidados de saúde, ou nas suas infraestruturas.

Se o Ocidente pretende apoiar o Paquistão nesta crise, deve implementar uma série de medidas que abordem a extensão dos danos infligidos pelo Norte ao Sul desde a revolução industrial. Como primeiro passo, isto deve incluir o cancelamento total da dívida, bem como um aumento significativo do financiamento climático para ajudar as comunidades a adaptarem-se aos impactos das alterações climáticas.

Além disso, muitos países vulneráveis às alterações climáticas, incluindo o Bangladesh, Etiópia e Tuvalu, estão agora a pedir aos países ricos que os compensem pelos desastres que enfrentam.

COP não pode continuar a ignorar pedidos de compensação por danos climáticos

Este fenómeno, frequentemente referido como "Perdas e Danos", ainda não está oficialmente na agenda das negociações da Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP). Uma e outra vez, os países vulneráveis às alterações climáticas têm exigido compensações climáticas aos países ricos e às empresas que criaram o caos climático - e a cada vez têm sido ignorados. Na COP27, devem ser feitos mais progressos concretos nestas discussões.

O conceito de cancelamento da dívida não é novo. Durante a pandemia, o alívio da dívida foi concedido aos países de baixos rendimentos, embora o setor privado tenha continuado a cobrar pagamentos e juros, o que inevitavelmente exacerbou a crise económica gerada pelo covid-19. No entanto, mesmo os credores privados podem ser afastados quando existe uma forte pressão moral. Em julho, alguns meses após a invasão da Rússia, os credores da Ucrânia chegaram a um acordo histórico para deixar de cobrar os pagamentos da dívida durante a guerra.

Se as instituições internacionais suspendessem a cobrança da dívida, o Paquistão não precisaria de novos empréstimos. O dinheiro enviado do Paquistão para reembolsar os credores internacionais poderia ser gasto na reinstalação de milhões de pessoas deslocadas. O Paquistão necessita de pelo menos quatro anos para reconstruir a sua economia e reparar os danos causados pelas cheias e pelas chuvas fortes.

No entanto, uma questão mais vasta permanece: quem deve pagar pela crise climática? Porque deveria o Paquistão contrair qualquer empréstimo para pagar as consequências de uma crise que não causou? O ministro do clima do Paquistão, Sherry Rehman, disse ao Guardian que as metas e compensações de emissões globais precisam de ser reconsideradas, dada a natureza acelerada e implacável dos desastres climáticos que estão a atingir países como o Paquistão.

É claro que corrigir o apartheid climático e enfrentar a crise não se resume a um simples cheque, e muitas outras medidas são necessárias para apoiar o povo paquistanês na catástrofe que enfrenta.

No entanto, sem alívio da dívida ou financiamento para compensar perdas e danos, o ciclo da dívida e das crises climáticas do Paquistão só podem agravar-se.


Farooq Tariq é o Secretário-Geral do Comité Kissan Rabita do Paquistão, uma rede de 26 organizações de agricultores e membro da coligação da plataforma internacional La Via Campesina.

Artigo publicado no site do Comité pela Abolição das Dívidas Ilegítimas (CADTM). Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

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