Ana Paula Martins, a ministra que desmantelou o serviço de obstetrícia no Santa Maria

05 de abril 2024 - 15:59

A atual ministra da Saúde liderava a administração do hospital que levou ao encerramento do serviço contra a vontade dos médicos. Oito especialistas saíram entretanto para o privado.

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Ana Paula Martins é a nova ministra da Saúde
Ana Paula Martins é a nova ministra da Saúde

Ana Paula Martins foi a primeira pessoa nomeada por escolha direta do diretor executivo do SNS, Fernando Araújo. Liderou o maior hospital de Lisboa a partir de fevereiro de 2023 mas não chegou a completar um ano no cargo. Em dezembro, pouco depois de Marcelo Rebelo de Sousa anunciar eleições legislativas antecipadas para março, Ana Paula Martins apresentou a sua renúncia ao cargo de presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte.

"A cada um cabe a pergunta: o que posso fazer pelo meu Hospital, pelo SNS, pelo meu país? Cada um saberá assumir convictamente e em consciência o seu compromisso”, tinha dito a então líder da administração do Santa Maria no 69º aniversário do hospital, pouco antes de renunciar ao cargo. Lidas agora, as palavras de Ana Paula Martins sugerem que o seu compromisso já estava com o PSD, partido do qual foi vice-presidente com Rui Rio, após ter cumprido seis anos como bastonária da Ordem dos Farmacêuticos.

Revolta na obstetrícia levou ao afastamento de Diogo Ayres de Campos

Mas se há quem questione as razões para a saída em dezembro, sem ter completado sequer um ano no cargo, também há quem defenda que já foi tarde. É o caso da então deputada bloquista Catarina Martins, que em julho tinha questionado a agora ministra na comissão parlamentar sobre a crise que instalou no serviço de obstetrícia do Santa Maria. "A sua incapacidade de comunicar com mais de três dezenas de obstetras do SNS coloca em causa a sua capacidade de ser presidente do Conselho de Administração", afirmou Catarina, numa audição em que Ana Paula Martins não respondeu a nenhuma das questões que lhe colocou.

A audição ocorreu após a revolta dos médicos de obstetrícia e ginecologia do hospital, em resposta à decisão da administração de encerrar do bloco de partos durante o verão, transferindo as equipas para o Hospital São Francisco Xavier. Quase todos os médicos subscreveram uma carta alegando que o encerramento não era necessário, pois as obras previstas iam realizar-se num edifício anexo ao hospital, e que a transferência em agosto não fazia sentido porque as obras nas enfermarias do Santa Maria não seriam antes de outubro.

A resposta de Ana Paula Martins foi endurecer o braço de ferro com os médicos, afastando o diretor do Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina de Reprodução do hospital e primeiro subscritor da carta, Diogo Ayres de Campos, e a diretora do Serviço de Obstetrícia, Luísa Pinto. Dezenas de médicos ainda apelaram ao ministro Manuel Pizarro para reverter a decisão, sem sucesso. Em protesto, os médicos aderiram à recusa de ultrapassar o limite de horas extraordinárias previsto na lei.

Também ouvido no Parlamento, Diogo Ayres de Campos respondeu às acusações de que os médicos seriam contra as obras no hospital, considerando-as um "absurdo". "Se houve quem sempre defendeu a construção do novo bloco de partos fui eu e a Dra. Luísa Pinto. Temos estado a trabalhar nisso desde há quatro anos", afirmou em julho.

Grávidas foram encaminhadas para o privado… e os médicos despediram-se do SNS

Além da insatisfação dos profissionais de saúde a seu cargo, o resultado prático da medida da atual ministra foi o desmantelamento do serviço. Mesmo antes do início das obras no Santa Maria, muitas grávidas passaram a ser encaminhadas para hospitais privados, incluindo casos de gravidez de risco, ao contrário das garantias dadas por Ana Paula Martins e Manuel Pizarro de que só seriam encaminhadas grávidas referenciadas como de baixo risco. “O país não pode permitir que o maior hospital, o Hospital de Santa Maria, esteja a enviar grávidas de risco para o privado enquanto tem um bloco de partos funcional e capaz de poder acolher essas grávidas e prestar um bom serviço, assim o Governo deseje e crie condições aos profissionais”, afirmou na altura a coordenadora bloquista Mariana Mortágua, que já tinha desafiado o ministro Pizarro a decidir "se está do lado de Luís Montenegro, que o elogia pela escolha de transferir utentes para o privado, ou do lado do SNS".

Em dezembro, o Sindicato Independente dos Médicos confirmou que oito obstetras do Hospital de Santa Maria tinham entretanto abandonado o SNS e ido trabalhar para o privado. A juntar às médicas em licença de parto e aos casos de baixa prolongada, estas saídas levaram a que muitas das escalas no São Francisco Xavier, sob responsabilidade dos profissionais vindos do Santa Maria, não fossem cumpridas "com os mínimos necessários para essa urgência que seja efetuada com qualidade e com segurança”, afirmou Roque da Cunha.

O Esquerda.net sabe que atualmente as consultas de gravidez de risco no Santa Maria estão a ser asseguradas quase exclusivamente por uma médica recém-especialista. Com a saída dos oito obstetras, o objetivo inicial de garantir o funcionamento das urgências no São Francisco Xavier não foi cumprido e hoje já não sobra ninguém da equipa do Santa Maria naquele hospital. Os que ficaram no SNS estão agora a compensar as escalas no hospital Beatriz Ângelo. Quanto à nova maternidade que resultará das obras no Santa Maria - e que deveria estar pronta este verão -, vai deparar-se com um novo problema, pois já não há equipa para lá trabalhar.

Por onde passou a nova ministra

Numa entrevista à Forbes publicada em agosto - sem qualquer referência à crise então vivida no serviço de obstetrícia do hospital que liderava -, Ana Paula Martins, "uma mulher de causas e de ideologias", afirma que a sua experiência política "apesar de estar há 20 anos no PSD, é muito pequena, mas mesmo assim foi muito importante". Na verdade, é preciso recuar até 1992 para encontrar a atual ministra num cargo de nomeação política, enquanto assessora de António Couto dos Santos no derradeiro governo de Cavaco Silva, acompanhando aquele dirigente laranja nas duas pastas que ocupou, primeiro nos Assuntos Parlamentares e depois na Educação, até ser "remodelado" nas vésperas da derrota autárquica do PSD em 1993..

Nascida na Guiné Bissau em 1965, filha e neta de farmacêuticos, veio para Portugal aos sete anos. Licenciou-se em Ciências Farmacêuticas na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa em 1990. Ali se doutorou-se em Farmácia Clínica, em 2005.

Antes da passagem enquanto assessora no executivo de Cavaco, foi secretária-geral da Ordem dos Farmacêuticos entre 1990 e 1992. Após a remodelação governamental, segue em 1994 para a Associação Nacional de Farmácias, onde dirige a unidade de Farmacoepidemiologia, área em que passa a lecionar na Faculdade de Farmácia. Doze anos depois, torna-se diretora de assuntos externos da gigante farmacêutica norte-americana Merck, onde trabalha entre 2008 e 2014. Regressa então à Associação Nacional de Farmácias enquanto Diretora de Relações Institucionais até outubro de 2015.

Entre 2009 e 2015 presidiu à Mesa da Assembleia Geral Regional do Sul e Regiões Autónomas da Ordem dos Farmacêuticos. Em 2016 é eleita bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e cumpre dois mandatos. Enquanto bastonária, integrou a comissão de avaliação do programa Gilead Génese e foi para este gigante da indústria farmacêutica mundial, a Gilead Sciences, que foi trabalhar quando deixou o cargo de bastonária, enquanto responsável  pelas relações institucionais em Portugal.

Ana Paula Martins ainda era bastonária dos Farmacêuticos quando Rui Rio a escolhe em dezembro de 2021 para vice-presidente do PSD, cargo que mantém até à substituição de Rio por Montenegro em 2022. Em fevereiro de 2023 é nomeada pelo diretor executivo do SNS para dirigir o Centro Hospitalar Lisboa Norte, abandonando o cargo em dezembro. Quatro meses depois, torna-se ministra da Saúde do governo PSD/CDS.