Acordo de Sexta-feira Santa: uma promessa por cumprir

10 de abril 2023 - 20:27

Esta segunda-feira assinalam-se os 25 anos do acordo de paz que acabou com os Troubles na Irlanda do Norte. Chris Bambery defende que as suas limitações se têm vindo a tornar cada vez mais fortes.

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Acordo de Sexta-feira Santa. Foto de Diego Sideburns/Flickr.
Acordo de Sexta-feira Santa. Foto de Diego Sideburns/Flickr.
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Quando se assinalam 25 anos do Acordo de Sexta-feira Santa, é importante lembrar que este marcou efetivamente o fim dos Troubles, a espiral de violência que começou com a polícia a dispersar uma marcha em defesa dos direitos civis em Derry em outubro de 1968. O que se seguiu foi a entrada das tropas britânicas em 1969, depois de o governo unionista da Irlanda do Norte ter permitido uma marcha sectária na área nacionalista de Bogside em Derry. As detenções sem julgamento começaram em agosto de 1969, depois houve o Domingo Sangrento e o assassinato de 14 manifestantes pelos direitos civis em Derry pelo Regimento de Paraquedistas e as greves de fome de 1980 e 1981 em defesa do estatuto de prisioneiro político, em que a última resultou na morte de dez prisioneiros.

No total, os Troubles causaram 3.600 mortes e mais de 50.000 feridos. O processo de paz que precedeu o Acordo tinha começado com o Exército Republicano Irlandês a assinalar aos seus contactos nos serviços secretos britânicos que queria entrar em acordo para acabar com a sua campanha militar contra as forças britânicas na Irlanda do Norte e na Grã-Bretanha. Gerry Adams do Sinn Féin entrou em conversações com John Hume, líder do partido nacionalista moderado, o Social Democratic and Labour Party, para tentar mapear um caminho para acabar com os Troubles. Depois de terem ultrapassado muitos obstáculos, envolveram também o governo da República da Irlanda. Os EUA e a União Europeia encorajaram conversações diretas enrte o governo britânico e todas as partes. Depois de muitas inflexões, isto resultou no Acordo de Sexta-feira Santa.

Para o IRA, esta mudança refletia o seu reconhecimento de que não poderia bater militarmente os britânicos. Os seus opositores tiraram a conclusão similar de que não conseguiriam derrotar militarmente o IRA. Ambos aceitaram que uma conclusão política era desejável. O fim da luta armada era algo bem-vindo para a maioria das pessoas da Irlanda do Norte. Hoje há franjas de grupos republicanos que se dedicam à violência, mas são marginais.

O fim dos Troubles

Surpreendentemente, mais de duas décadas depois do Exército Republicano Irlandês se ter dissolvido, os grupos paramilitares lealistas ainda existem. O maior deles, a Ulster Defence Association, vive uma disputa amarga em North Down, com casas a serem atacadas, incluindo um ataque com uma bomba a uma casa com quatro crianças, e com pessoas a serem forçadas a abandonar a área. O que está em causa é qual dos dois bandos do UDA controla o negócio local de venda de drogas.

O fim da luta armada, o desarmamento e a dissolução dos grupos armados foram centrais no processo de paz: as longas negociações para construir o Acordo de Sexta-feira Santa. Em troca disso, os presos políticos, tanto republicanos quanto lealistas, foram libertados e o Royal Ulster Constabulary seria dissolvido e substituído pelo atual Serviço de Polícia da Irlanda do Norte. O RUC foi implementado em 1921, quando o Estado da Irlanda do Norte foi criado, como uma força armada permanente servindo os interesses do Estado Unionista, com a sua principal tarefa a ser a contenção da população nacionalista.

É importante distinguir entre o processo de paz amplo, que tem de ser saudado, e as estruturas políticas criadas pelo Acordo de Sexta-feira Santa que criaram problemas profundos. A paz não foi simplesmente oferecida pelos governos britânico e irlandês, junto com o presidente Bill Clinton dos EUA como atores principais da assinatura deste acordo.

Pessoas comuns, de ambos os lados da comunidade, tinham estado e marchado juntas em protesto contra as mortes tanto dos republicanos quanto dos lealistas, muitas vezes em ações organizadas por sindicatos, que, apesar de todas as suas fraquezas, juntaram a classe trabalhadora. Foi este o caso em 1992, quando a UDA abriu fogo numa casa de apostas em Ormeau Road, Belfast, matando cinco civis. Foi este o caso em 1993, quando uma bomba do IRA matou nove civis em Shankill Road e o próprio bombista. Foi este o caso mais tarde nesse ano quando um atirador da UDA abriu fogo num pub em Greysteel, County Derry, onde estava a acontecer uma festa de Halloween. Foi este o caso noutras ocasiões.

A pressão popular para a paz foi agora apagada dos livros de História. Contudo, ficou também demonstrada nos dois referendos que se seguiram à assinatura do acordo. No de apoio ao acordo na Irlanda do Norte, com 81% da população a votar e 71% de voto a favor. No da República da Irlanda, com 94% a favor da retirada da reivindicação constitucional de governar o Estado do norte.

O sectarismo entrincheirado

O acordo não foi feito apenas para acabar com o conflito militar. A promessa dos políticos era de que iria acabar também tanto com a divisão sectária quanto com a pobreza que assombrava a Irlanda do Norte. Sobre o sectarismo, a noção que a Irlanda do Norte estava dividida em duas comunidades, a Nacionalista e a Unionista, hermeticamente seladas uma da outra, foi consagrada no acordo. Este criou duas novas instituições principais, a Assembleia da Irlanda do Norte e o Executivo da Irlanda do Norte. A Assembleia é um órgão de delegação de poderes com poderes semelhantes em termos amplos aos do Parlamento Escocês, e em ambas as instituições da Irlanda do Norte, Westminster pode retomar o seu controlo quando assim o desejar.

O Executivo foi criado com base na ideia da partilha de poderes com pastas ministeriais divididas proporcionalmente entre os maiores partidos da Assembleia com base nos votos recebidos. O primeiro-ministro tem de vir do maior partido, com o vice-primeiro-ministro a vir do partido mais votado da outra comunidade. Assim, se um partido unionista obtiver a maior votação, ficam com o lugar de primeiro-ministro e o partido nacionalista que obtiver maior votação fica com o papel de vice.

Na clausula de “Salvaguardas”, o acordo estabelece que “na primeira reunião, os membros da Assembleia irão registar uma designação de identidade – nacionalista, unionista ou outra”. Depois disto o “outra” não volta a ser mencionado. Porém, têm existido “outros” eleitos para a Assembleia da Irlanda do Norte: as feministas de uma lista só de mulheres, o partido da classe média Aliança que não aceita nenhum destes rótulos e o movimento de esquerda radical People Not Profit.

As disposições para “assegurar que as principais decisões são tomadas numa base intercomunitária exigem ou um “consentimento paralelo” (uma maioria de nacionalistas e o maioria de unionistas que votem no mesmo sentido) ou uma “maioria ponderada” (60% do voto total que inclua pelo menos 40% de unionistas e 40% de nacionalistas). Isto marginaliza os “outros” e encoraja as pessoas nas comunidades nacionalista ou unionista a votarem ou no “verde” ou no “laranja”.

O resultado é a criação de dois blocos comunitários, o nacionalista e o unionista, em competição para que os escassos recursos vão para as “suas” comunidades. Esta é uma dinâmica segundo a qual se for acordado que um financiamento deve ir para um centro desportivo na zona ocidental nacionalista de Belfast, é preciso que seja equiparado com um investimento similar na zona oriental unionista de Belfast. Na verdade, o sectarismo continua a ser um problema com o número de “muros da paz” que separam as áreas da classe trabalhadora nacionalista e unionista a crescerem como cogumelos desde 1998.

Problemas sectários voltam repetidamente à superfície. Assim, em 2012, depois do Conselho da Cidade de Belfast ter votado para restringir o hastear da bandeira da união a dias designados, os protestos contra esta decisão duraram quatro meses, resultando em ferimentos em 160 agentes policiais e em 34 prisões. Uma proposta de Lei da Língua Irlandesa para dar à língua irlandesa um estatuto igual ao inglês na Irlanda do Norte foi bloqueada pelos principais partidos unionistas, que acusaram os nacionalistas de “usar a língua irlandesa como uma ferramenta para bater na cabeça do unionismo”.

A forma como está montada a Assembleia da Irlanda do Norte significa que temas que seriam aparentemente não-sectários subitamente passem a ser vistos como tais. Entre 2012 e 2019, a Assembleia votou cinco vezes sobre a legislação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Os unionistas geralmente votaram contra, e usaram o seu poder de veto para bloquear a legislação, enquanto o Sinn Féin e outros nacionalistas votaram a favor.

O impasse atual

Claro, o grande tema do momento é a recusa do Democratic Unionist Party de formar um executivo de partilha de poderes com o Sinn Féin. Este último tornou-se o grande vencedor das eleições de maio de 2022, ganhando mais dois lugares do que o DUP, que se recusa a aceitar Michelle O’Neill como primeira-ministra, citando a disputa com a União Europeia sobre o Protocolo para a Irlanda do Norte. Agora que isso foi resolvido, ainda não mudaram a posição de veto a O’Neill.

Desde há 24 anos, primeiro o Unionist Party e depois o DUP, que votou contra o Acordo de Sexta-feira Santa, detiveram o cargo de primeiro-ministro mas pensam que o que se aplica a eles não se aplica aos republicanos. O facto do Sinn Féin se poder tornar o maior partido, junto com o facto dos católicos (esmagadoramente nacionalistas) agora ultrapassarem os protestantes (geralmente unionistas) alterou as coisas de duas formas.

Primeiro, em 1921, a Grã-Bretanha dividiu a Irlanda e criou um Estado cujas fronteiras foram desenhadas para conterem o maior número possível de votantes unionistas dentro da maior área possível: assim, dos nove condados do Ulster, três foram deixados de fora porque tinham maiorias nacionalistas. Agora já não se dá o caso da maioria dos restantes terem maiorias unionistas.

Segundo, em 1998, acreditava-se que os dois maiores partidos na Irlanda do Norte seriam o Unionist Party (visto como mais moderado do que o DUP que se opunha ao Acordo de Sexta-feira Santa) e o SDLP, ambos podendo governar amigavelmente a Irlanda do Norte. Isso também acabou por mudar. Do outro lado da fronteira, na República, o Sinn Féin foi o maior partido nas últimas eleições (mantido fora do governo por uma improvável coligação dos seus opositores) e as sondagens mostram consistentemente que continua a sê-lo. O Acordo de Sexta-feira Santa previa que referendos sobre a unidade irlandesa poderiam ter lugar se tanto o parlamento da República quanto a Assembleia da Irlanda do Norte votassem nesse sentido. Em 1998 isso parecia improvável: hoje nem por isso.

Desde a sua criação, o Estado da Irlanda do Norte foi marcado pela repressão, sectarismo e pobreza. Com o fim dos Troubles, o poder repressivo do Estado diminuiu. O sectarismo também no sentido de que os nacionalistas já não são barrados de uma série de empregos no setor público como eram anteriormente. Há agora uma classe média nacionalista confiante, uma maioria da qual apoia o Sinn Féin.

Perspetivas e alternativas

Mas isto não acabou com a divisão sectária que permanece. Nem o Acordo de Sexta-feira Santa trouxe mudança económica. O salário médio anual das pessoas com contrato de trabalho é £30,000. O número no Reino Unido é £33,000, enquanto que em Londres é £41,866 e na Escócia £33,332. A média anual de ganhos das pessoas com contrato de trabalho na República da Irlanda é €44,202 por ano. A Grã-Bretanha está marcada pela baixa produtividade quando comparada com os EUA e a França, mais ainda relativamente às economias asiáticas. Na Irlanda do Norte é ainda mais baixa. A produtividade da Irlanda do Norte é 40% mais baixa do que a da República. Os autores de um estudo recente concluem que “quase todo o fosso de produtividade pode ser explicado pelos menores níveis de investimento e trabalhadores especializados na Irlanda do Norte”.

A razão da continuação do sectarismo e da pobreza está na partição. A Irlanda do Note, que era uma região industrializada da Irlanda, estava ligada à Grã-Bretanha via Clydeside e Merseyside. Dependia de indústrias de base, construção naval, engenharia pesada e têxteis, produzindo para os mercados britânico e imperial. Em 1921, o seu futuro parecia seguro. Mas a Grã-Bretanha e as suas indústrias de base entraram em declínio, tornando-se incapazes de competir com a concorrência estrangeira. Esse declínio atingiu a economia deste ramo com golpes ainda mais fortes do que os sentidos do outro lado do mar da Irlanda.

Somando-se a isso, desde os anos 1990, houve uma espécie de grande salto em frente na República da Irlanda. Isto criou profundos problemas sociais – atualmente o escalar das rendas prejudica o país – mas a República de hoje em dia ultrapassou em muito o seu vizinho do norte. A classe média unionista tem cada vez mais votado com os pés, os licenciados saem da Irlanda do Norte para nunca mais voltarem. A desvantagem económica atinge agora a classe trabalhadora de ambas as comunidades. Temos assistido a resistência a isto, mas o sectarismo continua a ser um peso morto.

Assim, muitas das promessas do Acordo de Sexta-feira Santa continuam por cumprir. Que alternativas existem? A unidade irlandesa tem potencial mas não se a República da Irlanda simplesmente absorver o norte. A República continua a ser uma sociedade neoliberal cruel com uma elite voraz. Continua a privilegiar a Igreja Católica na saúde e na educação. Não o equivalente a um Serviço Nacional de Saúde, tal como existe no norte. Assim como a unidade não deve ser baseada numa mera contagem de cabeças entre nacionalistas e unionistas.

Exige uma visão mais radical: que prometa cuidados de saúde universais, gratuitos para todas as pessoas na Irlanda, uma extensão de direitos em toda a economia e medidas sociais para que beneficiem a maioria  e não os mais abastados.


Chris Bambery é autor, ativista político e apoiante do Rise, a coligação de esquerda escocesa. Escreveu livros como A People's History of Scotland e The Second World War:A Marxist Analysis.

Texto publicado originalmente no Counterfire.

Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.