Irlanda do Norte: uma ferida reaberta na vida política britânica?

23 de abril 2021 - 18:11

Os unionistas determinados a manter a Irlanda do Norte no Reino Unido estão confrontados com uma crise mais geral. As origens desta crise remontam ao fim do Estado dominado pelos protestantes. Além disso, na demografia os protestantes estão a perder lentamente. Por Patrick Cockburn.

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Chamado muro da paz que separa protestantes de católicos no oeste de Belfast – foto de A l’encontre
Chamado muro da paz que separa protestantes de católicos no oeste de Belfast – foto de A l’encontre

Na noite de 15 de agosto de 1969, uma turba de protestantes invadiu a parte católica do oeste de Belfast e incendiou casas na rua Bombay, forçando a população católica a fugir. Este pogrom teve um impacto traumático sobre os católicos na Irlanda do Norte, deslegitimando as autoridades por terem tolerado ou ajudado a turba. Este pogrom desempenhou um papel fundamental na criação do IRA Provisório [Provisional Irish Republican Army, 1969-1997].

Na noite de quarta-feira, 7 de abril, para quinta-feira, 8 de abril de 2021, uma multidão de protestantes de Shankill Road usou carros para forçar o caminho através dos enormes portões de aço do chamado muro da paz, que separa protestantes de católicos no oeste de Belfast. “O ataque foi muito perigoso”, disse Brian Feeney, historiador e colunista do The Irish News, porque ocorreu perto da reconstruída Bombay Street e reacendeu velhos terrores. “Os relatos de violência na Irlanda do Norte na semana passada - os piores em décadas, de acordo com a polícia - não explicam que os distúrbios na província são de dois tipos semelhantes, mas têm impactos muito diferentes. A primeira é a oposição à polícia incendiando veículos e atirando pedras, cocktails molotov e petardos. Por mais perigosa que seja esta prática, ela tem sido usada por ambas as comunidades em momentos diferentes para divulgar as suas queixas - no pressuposto de que os acontecimentos na Irlanda do Norte seriam ignorados pelos habitantes da Grã-Bretanha continental e do resto do mundo, a menos que fossem cenas dramáticas de violência a atrair a sua atenção.

Mas existe um outro tipo de motim muito mais perigoso, no qual uma comunidade se opõe à outra e desperta memórias de antigos e sectários derramamentos de sangue. É isso que confere um potencial tão mortal a este ataque, lançado esta semana, da protestant Shankill Road em direção à católica Springfield Road, no oeste de Belfast.

“É tão deprimente”, disse-me um amigo de Belfast com longa experiência do conflito. "Este é o tipo de coisas que eu pensava que já tínhamos deixado para trás." A hostilidade sectária entre católicos e protestantes nunca morreu, mas durante 23 anos, o Acordo de Sexta-Feira Santa [Good Friday Agreement-GFA, assinado em 10 de abril de 1998] manteve um equilíbrio de poder entre as duas comunidades, que hoje está à beira da rutura.

O meu amigo de Belfast, que deplora o retorno das velhas animosidades, atribui grande parte da responsabilidade à primeira-ministra e líder do Partido Democrático Unionista (DUP), Arlene Foster [no cargo desde 11 de janeiro de 2020]. “Ela é incrivelmente incompetente”, diz ele, e certamente tem um histórico de oportunismo inepto que enfraquece a sua própria comunidade e exacerba os atritos sectários.

No entanto, a escalada do conflito não se resume apenas aos fracassos de Arlene Foster e do DUP. Os unionistas determinados a manter a Irlanda do Norte no Reino Unido estão confrontados com uma crise mais geral. As origens desta crise remontam ao fim do Estado dominado pelos protestantes, após o que foi polidamente chamado de "os problemas", mas que foi na realidade uma guerra cruel e de baixa intensidade que durou 30 anos.

os protestantes constituíam dois terços da população quando da criação do estado da Irlanda do Norte há um século. Mas, provavelmente, representam hoje menos de metade

Demograficamente, os protestantes estão a perder lentamente. Eles constituíam dois terços da população quando da criação do estado da Irlanda do Norte há um século. Mas, provavelmente, representam hoje menos de metade - o que ficará mais claro quando os últimos números do censo forem divulgados no próximo ano. O Sinn Féin poderá então tornar-se o maior partido nas eleições para a assembleia legislativa, em maio de 2022, e, assim, ser capaz de nomear um primeiro-ministro.

Estas tendências de longo prazo poderão ser absorvidas pacificamente, mas pioraram com a votação do Reino Unido para deixar a União Europeia (UE) em 2016 [Brexit], embora a província tenha votado solidamente pelo 'Remain' [‘Permanecer’]. Esta decisão reabriu automaticamente "a questão irlandesa", que tinha envenenado a política britânica durante mais de 200 anos e que o GFA tinha temporariamente colocado em banho-maria. A divisão da Irlanda voltou a ser uma questão política atual, para agrado do Sinn Féin. A fronteira de cerca de 480 km entre a Irlanda do Norte e a República é agora a fronteira internacional entre o Reino Unido e a UE. Mas, uma vez que a abolição de uma fronteira rígida é uma disposição essencial do GFA, esta fronteira corre ao longo do Mar da Irlanda.

O DUP teve brevemente as cartas políticas entre 2017 e 2019, uma vez que manteve um governo conservador minoritário [Theresa May] no poder em Westminster. Mas ele desastrosamente exagerou a vantagem e deu a confiança às promessas diretas de Boris Johnson sobre a rejeição de qualquer fronteira com o mar da Irlanda. Acabou por aceitar o protocolo irlandês, que era a pior opção possível do ponto de vista unionista1.

Mapa do Reino Unido que mostra como as mercadorias viajam da Grã-Bretanha para a Irlanda do Norte e depois para a República da Irlanda – mapa publicado pela BBC e republicado em A l’encontre

Mapa do Reino Unido que mostra como as mercadorias viajam da Grã-Bretanha para a Irlanda do Norte e depois para a República da Irlanda – mapa publicado pela BBC e republicado em A l’encontre

Grafites clamando "Matem o protocolo" começaram a aparecer nas paredes dos bairros protestantes no início de 2021, enquanto novos regulamentos sobre o comércio entre a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte eram aplicados. Estes regulamentos podem não ser particularmente significativos em termos comerciais, mas parecem um obstáculo novo e muito visível que divide a união.

Ainda mais preocupante para o DUP, uma sondagem de opinião realizada em fevereiro mostrou que ele estava muito atrás do Sinn Féin e perdia apoio a favor da Voz Unionista Tradicional [Traditional Unionist Voice, uma cisão do DUP]. Perdendo o ímpeto e procurando desesperadamente uma saída política, o DUP voltou-se contra o protocolo e procura, sem sucesso, substituí-lo. Mas, ao mesmo tempo, os seus dirigentes – já que dirigem o executivo da Irlanda do Norte - devem implementá-lo.

Nem uma Irlanda unida nem uma guerra civil sectária estão necessariamente ao virar da esquina, mas a Irlanda do Norte está a reaparecer como a ferida aberta mais perigosa da vida política britânica

Arlene Foster e o DUP adotaram uma estratégia de "fingir de morto", fazendo um gesto dramático para desviar a atenção dos seus erros. O resultado é que Arlene Foster exige que o chefe da polícia da Irlanda do Norte, Simon Byrne, se demita porque não processou os membros do Sinn Féin que supostamente violaram as restrições da Covid-19 ao comparecer ao funeral do chefe do IRA, Bobby Storey, em 21 de junho de 2020.

Na verdade, a decisão de não processar foi tomada pelo diretor do Ministério Público porque não havia hipóteses de sucesso. O regulamento da Covid-19 "tinha sido emendado nove vezes" em pouco tempo e ninguém sabia realmente o que era. Após os protestos, esta decisão está agora em revisão.

Exigir uma aplicação rigorosa da lei contra os opositores e, ao mesmo tempo, ignorá-la faz parte da rica tradição política da Irlanda do Norte. O perigo atual é que esses golpes reforcem a impressão dos protestantes de que estão do lado perdedor e de que o Sinn Féin e os republicanos são os vencedores. Os unionistas do Ulster sempre foram rápidos a dizer que foram traídos - e desta vez foram verdadeiramente traídos por Boris Johnson, embora uma liderança menos ingénua do DUP pudesse ter visto a traição chegar, a cem léguas de distância.

Alguns comentadores minimizam a importância dos distúrbios dizendo, com razão, que eles são orquestrados pelos gangues da UDA [Ulster Defense Association] e da UVF [Ulster Volunteer Force], que estão principalmente envolvidos no tráfico de drogas. Estes gangues foram recentemente objeto de processos policiais, com vários dos seus líderes presos e a aguardar julgamento. Mas isso não muda o facto de que a classe trabalhadora protestante sente que ganhou pouco com o GFA. E, como no resto da Grã-Bretanha, viu o desaparecimento de empregos industriais bem remunerados na construção naval, na engenharia e nos têxteis. Numerosos distúrbios estão a ocorrer em áreas desfavorecidas, onde a taxa de infeção por coronavírus é alta.

Nem uma Irlanda unida nem uma guerra civil sectária estão necessariamente ao virar da esquina, mas a Irlanda do Norte está a reaparecer como a ferida aberta mais perigosa da vida política britânica.

Artigo de Patrick Cockburn, publicado originalmente no The Independent, a 11 de abril de 2021. Tradução para francês pela redação de A l’encontre. Tradução para português de Carlos Santos para esquerda.net

Nota:

1 Durante as negociações do Brexit, todas as partes concordaram que a proteção do acordo de paz na Irlanda do Norte (o Acordo da Sexta-feira Santa) era uma prioridade absoluta. Isso significava que era preciso manter aberta a fronteira terrestre entre a República da Irlanda (na UE) e a Irlanda do Norte (no Reino Unido) e evitar a instalação de novas infraestruturas, como câmaras de vigilância e postos fronteiriços. Era fácil quando toda a ilha da Irlanda fazia parte da UE. Mas depois do Brexit, era necessário um novo acordo, já que a UE exige que certos produtos sejam inspecionados no ponto de entrada no seu mercado único. Portanto, a UE e o Reino Unido negociaram o Protocolo da Irlanda do Norte, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2021. O mapa do Reino Unido mostra como as mercadorias viajam da Grã-Bretanha para a Irlanda do Norte e depois para a República da Irlanda. (Edição da BBC)