O célebre escritor Ramón María del Valle-Inclán escreveu em 1931, pouco depois da fuga de Afonso XIII e da proclamação da Segunda República: “Os espanhóis expulsaram o último dos Bourbons não por ser rei, mas por ser ladrão”. Como se fosse uma premonição que assombrava a sua família, tal como o seu avô, Juan Carlos I, fiel continuador da tradição cleptocrática da sua dinastia, fugiu para a autocracia dos Emirados Árabes Unidos, acossado por escândalos de corrupção. Entretanto, o seu filho Felipe VI e a sua corte de comparsas mediáticos passaram uma década do seu reinado a tentar libertar-se do peso do legado de corrupção do pai. E quando parecia que já não podiam surgir mais fraudes, surgem novas revelações que confirmam, uma vez mais, a natureza reacionária e parasitária da monarquia Bourbon que a tem caracterizado ao longo da sua história.
O arquivamento das investigações contra o rei emérito pela Procuradoria Anti-Corrupção e pela Procuradoria do Cantão de Genebra (Suíça) foi o tiro de partida para Juan Carlos I criar uma fundação com o objetivo de reunir a sua fortuna dispersa em vários paraísos fiscais e que a revista Forbes estima em cerca de 2.000 milhões de euros. Uma fundação com sede em Abu Dhabi, um local com tributação quase nula e que permite o sigilo das regras de funcionamento e a verdadeira propriedade dos bens, escapando assim ao controlo da justiça e da fiscalidade espanhola.
A nova fraude do emérito com a fundação para preservar o saque acumulado por este cleptomaníaco do erário público ao longo da sua vida poderá envolver vários crimes fiscais e de branqueamento de capitais. Por isso, era essencial uma cortina de fumo, uma nova campanha publicitária que aproveitasse o pouco crédito público que resta ao Juancarlismo [1]. E que melhor maneira de o fazer do que decidir publicar as suas memórias com o sugestivo título de Reconciliação, ainda que, mais uma vez, os escândalos persigam o emérito.
Talvez o mais relevante, nesta ocasião, tenha sido ouvir o amigo das petro-ditaduras árabes reconhecer a sua participação direta no golpe frustrado de 23 de março de 1981. Isto fica demonstrado pela censura que faz ao seu antigo chefe da Casa Real da altura, Sabino Fernández Campos, por ter falado demais, ao mesmo tempo que agradece o silêncio do general Alfonso Armada, co-protagonista dessa intentona de golpe. Embora a Lei dos Segredos Oficiais nos impeça de conhecer toda a documentação necessária sobre os antecedentes, o desenrolar e as consequências desse dia, já sabemos o suficiente para reafirmar a sua participação direta no mesmo, ainda que este não tenha terminado como ele e Armada pretendiam.
Umas declarações que deveriam levar a reabrir o caso do 23F, já que não foi casual, como recordou recentemente Carlos Fonseca [2], que o Conselho Supremo de Justiça Militar que julgou os golpistas tenha negado, entre outras provas, a comparência de Sabino Fernández Campos na audiência oral, pois o seu testemunho poderia destruir o mito que se construiu a partir daí de Juan Carlos I como o salvador da democracia. Um mito que ficou intimamente associado ao da Transição Imaculada, e que serviu de álibi a um vasto conjunto da esquerda, com o PSOE de Felipe González e o PCE de Carrillo à cabeça, para justificar a sua conversão juancarlista. Na realidade, era uma forma de se afirmarem monárquicos à boca pequena, sem terem de reconhecer publicamente que aceitavam a legitimidade franquista da monarquia dos Bourbon.
Estas conversas revelaram mais uma vez, exceto para aqueles que não querem ver para preservar a sua própria mitificação (como no caso de Felipe González), que a monarquia Bourbon não desempenhou qualquer papel de motor da democratização nesses anos decisivos, mas foi antes um travão permanente. Recorde-se, aliás, que Juan Carlos I jurou as Leis Fundamentais de Franco, ao passo que nunca jurou a Constituição de 1978, querendo assim demonstrar que o princípio monárquico que representava – e as suas funções de garantia da unidade de Espanha, da liderança das Forças Armadas e do respeito pelos privilégios da Igreja Católica – se manteria mesmo fora de qualquer tipo de controlo parlamentar. Assim, conseguiu traçar algumas linhas vermelhas para o presumível poder constituinte das Cortes eleitas em junho de 1977, e a aceitação dos conteúdos básicos da Lei da Reforma Política aprovada durante a ditadura em dezembro de 1976, juntamente com o Decreto-Lei Eleitoral de março de 1977, ainda em vigor, no novo texto constitucional. Apesar disso, optou mais tarde por confiar no General Armada para tentar um golpe de Estado suave no 23F, através da chamada Operação De Gaulle – para a qual contou também com a cumplicidade de dirigentes do PSOE e do PCE – com o firme propósito de travar os primeiros transbordamentos do consenso da Transição que se desenhavam no horizonte, nomeadamente no processo autonómico [3].
No entanto, depois deste novo episódio, não devemos contentar-nos em afirmar que há razões de sobra para enterrar definitivamente o mito do Juancarlismo, por mais que algumas pessoas como Felipe González e Alfonso Guerra insistam em reavivá-lo. Devemos ir mais longe e denunciar também o permanente branqueamento de Felipe VI a que os partidos do regime e a grande maioria dos meios de comunicação social se dedicaram ao longo dos já dez anos do seu reinado. Porque não podemos esquecer que o atual monarca é herdeiro de uma coroa que tem as suas origens e a sua única legitimidade no franquismo, que foi cúmplice e beneficiou da sua longa história de corrupção, que continuará a gozar da mesma impunidade e, sobretudo, que partilha a mesma ideologia reacionária e neocolonial. Esta última parte ficou bem patente recentemente com o seu desrespeito pelo pedido de perdão do México e vemo-lo agora por ocasião da celebração do malfadado 12 de outubro como Festa Nacional. Portanto, como disse o então deputado Sabino Cuadra no Parlamento espanhol, a 11 de junho de 2014, em resposta à abdicação de Juan Carlos I, o que queremos é: “Não mudar de rei, mas não ter nenhum: nem o pai, nem o filho, nem o espírito de Franco que se aninha nos dois” [4].
Por todas estas razões, e embora os tempos que vivemos não sejam os melhores para forçar uma mudança radical de rumo, a rejeição da monarquia, instituição máxima à frente do regime de 78, e aposta num um republicanismo confederal de livre adesão e anticapitalista devem ser sinais fundamentais de identidade de uma esquerda alternativa. Neste caminho, deveríamos esforçar-nos por promover iniciativas que contribuam para a mobilização unitária de um amplo bloco de forças sociais e políticas a favor do referendo sobre a monarquia, que Adolfo Suárez (outro mito reavivado) impediu durante a mitificada Transição, com o objetivo de voltar a colocar no centro da agenda política a necessidade de uma rutura democrática que permita a abertura de novos processos constituintes.
Jaime Pastor e Miguel Urbán fazem parte da direção da revista viento sur, são militantes dos Anticapitalistas e editores de ¡Abajo el rey! Repúblicas, livro publicado pela Sylone em 2020 com download grátis aqui.
Texto publicado originalmente no Viento Sur.
Notas:
1- “O juancarlismo foi a grande operação de marketing do regime de 78 para justificar o relato oficial da transição e a instauração da monarquia parlamentar sem referendo popular”, como resumiram Teresa Rodríguez e Miguel Urbán no livro coletivo ¡Abajo el rey! Repúblicas (2020: 71).
2- “Los secretos de alcoba del 23F”, eldiario.es, 4/10/24.
3- Jaime Pastor, “El 23F, Juan Carlos I y su golpe de timón a estribor”, en Jaime Pastor y Miguel Urbán (2020), pp. 47-53.
4- “De Juan Carlos I a la Euskal Errepublika pasando por Felipe VI”, Sabino Cuadra, en Jaime Pastor y Miguel Urbán, 2020, p. 91.