13 de fevereiro de 1965: O assassinato do general Delgado

13 de fevereiro 2021 - 0:05

O assassinato a sangue frio do general Humberto Delgado por uma brigada da PIDE, chefiada pelo inspetor Rosa Casaco, ficou para a história do fascismo português como o mais hediondo crime – senão comandado, pelo menos consentido – pelo ditador Oliveira Salazar. Por Luís Farinha.

porLuís Farinha

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Humberto Delgado a votar nas eleições presidenciais de 1958.

Um plano para aniquilar Humberto Delgado

A “Operação Outono”, nome de código do plano diabólico montado para aniquilar o general Humberto Delgado foi planeada depois do “Golpe de Beja” pela “tríade” que comandava a PIDE – Silva Pais, Barbieri Cardoso e Pereira de Carvalho. O plano de atrair o general a território português e aniquilar a sua atividade oposicionista foi muito facilitado pelo facto de, em finais de 1964, o general ter criado a Frente Portuguesa de Libertação Nacional, cindindo da FPLN (Frente de Argel) e preparando um novo “Golpe Militar” em tudo semelhante ao “Golpe de Beja” (1962), para o qual julgava poder contar com a colaboração de civis e militares a atuar no “interior”.

Nestas circunstâncias, foi muito fácil à PIDE organizar o complot através da criação de uma rede de agentes duplos (falsos “delgadistas” e na verdade agentes ao serviço da PIDE) que passou a atuar nos circuitos do General. Para o efeito, bastaram algumas viagens a Roma de Barbieri Cardoso e de Pereira de Carvalho, os chefes da PIDE. Junto de “amigos” italianos rapidamente encontraram os “agentes” desejados: o médico Ernesto Bisogno e o Prof. Mário Alexandre de Carvalho (ou Mário de Carvalho), estes os dois principais responsáveis. Com o código de “Oliveira”, Mário de Carvalho passou a trabalhar para a PIDE, com uma remuneração de dez mil escudos mensais – uma quantia apreciável para a época.

Encontro em Paris

Apesar de advertido por alguns dos seus amigos de Paris da perigosidade de um plano de ação revolucionária como aquele que se desenhava no horizonte, o General estava decidido a abraçar todas as démarches que lhe permitissem levar por diante a “ação decisiva”.

Assim, nos últimos dias de dezembro de 1964, foi abordado pelo “Professor Mário de Carvalho” e por um suposto advogado Ernesto de Castro e Sousa, apresentado como um oposicionista ido de Portugal em representação de militares e civis dispostos à revolução. No Hotel Caumartin, os dois traidores ao serviço da PIDE conseguiram convencer o General Delgado da bondade de uma reunião preparada junto à fronteira de Badajoz, reunião em que estariam presentes, para além dos presentes na reunião de Paris, militares implicados na futura revolta. Nada foi dito sobre os nomes dos implicados no interior. Mas, dada a disposição do General Delgado em empreender a “ação decisiva”, tudo ocorreu sem qualquer desconfiança.

Rapto ou assassinato?

Segundo declarações posteriores de Rosa Casaco – o chefe de Brigada que realizou o duplo assassinato em Badajoz -, o objetivo era "raptar o general e levá-lo clandestinamente para Portugal, para lhe ser dada voz de prisão e responder em tribunal por `actos de terrorismo." Declararia mais tarde que a sua ideia era "cloroformizar o general", transportando-o de seguida "na mala do automóvel pela fronteira de S. Leonardo", de modo a evitar quaisquer dificuldades na passagem de Espanha para Portugal.

Mas nada disso ocorreu. Na versão desculpabilizadora do inspetor Rosa Casaco, a brigada teria sido constituída à sua revelia, e segundo a vontade da “tríade” que comandava a PIDE. Para além do chefe Rosa Casaco, a brigada era composta pelo sub-inspector Ernesto Lopes Ramos - o elo de ligação a Delgado em Paris -, e pelos chefes de brigada Agostinho Tienza e Casimiro Monteiro. A suposta constituição da brigada à sua revelia serviu de alibi para se desresponsabilizar das ações mais tremendas – o assassinato a sangue frio e a destruição dos corpos com ácido sulfúrico e cal viva antes do enterramento em território espanhol.

No entanto, a preparação da operação deixa perceber que os contornos esperados podiam incluir todos os cenários, incluindo a morte. É ainda Rosa Casaco que, numa desculpa infantil, se refere aos preparativos do crime nos seguintes termos: “Já em Espanha, verifiquei que, no carro do Tienza, se encontravam um garrafão, um saco com cal, uma picareta e uma pá".

Terá questionado Tienza que se desculpou com o facto de serem materiais destinados a obras na sua casa de Sintra e que ali tinham ficado por falta de tempo para os retirar.

A brigada passou a noite de 12 de fevereiro numa pensão de Reguengos de Monsaraz e atravessou a fronteira pelo Posto de S. Leonardo na manhã do dia 13 de fevereiro. Casimiro Monteiro e Tienza seguiram num Opel verde e creme, enquanto Ernesto Lopes e Rosa Casaco viajaram num Renault Caravelle, ambas as viaturas e os agentes com documentação falsa. Rosa Casaco passava por Roberto Vurrita Barral, um cidadão guatemalteco. Ernesto Lopes serviu-se de documentos passados em nome de Ernesto de Castro Sousa, o falso advogado da reunião de Paris. Tienza utilizava o nome falso de Filipe Garcia Tavares. E a Casimiro Monteiro foi atribuída a falsa identidade de Washdeo Kundaumal Nilpuri, natural da ilha de Jersey.

O Comité para a Defesa das Liberdades em Portugal (Paris) denuncia o verdadeiro responsável pelo assassinato do General Humberto Delgado, junho de 1965. IAN/TT, PIDE, Emídio Guerreiro, Proc. 2515 CI (2), f. 195;

Um assassinato a sangue frio

Depois do encontro em Badajoz – muito esperado pelo General e pela sua secretária –, Ernesto Lopes – o suposto advogado Ernesto Castro Ramos –, conduziu o General e a sua acompanhante pela estrada principal que liga Badajoz a Olivença, ao encontro dos supostos militares oposicionistas. Na verdade, ao encontro da brigada da PIDE que ali os esperava para realizar o assassinato. Eram cerca de 15 horas quando chegaram ao local combinado.

Apesar de divergentes – a versão apurada pelo tribunal que julgou o caso Delgado e a versão tardia veiculada pelo chefe de brigada Rosa Casaco -, os factos são indesmentíveis: de um revólver de modelo “Unique”, munido de silenciador, na posse de Casimiro Monteiro, foi disparado o tiro mortífero contra o General, assim que que ele saiu do carro. E segundo o tribunal, o mesmo revólver atingiu, de seguida, Arajaryr, a secretária do General.

Segue-se a via horrível do encobrimento. Os corpos são depositados nas bagageiras dos dois automóveis – ou os dois corpos numa única bagageira, a do Opel de Tienza, segundo o tribunal -, e levados para serem sepultados numa vala natural em local ermo – Los Malos Pasos – a cerca de seis quilómetros a sul de Villa Nueva del Fresno. Antes de enterrados são desapossados dos pertences e regados com ácido sulfúrico e cal viva.

E Salazar, sabia?

Todos os estudiosos do “caso Delgado” são unânimes: era impossível Salazar ignorar, até pelas relações muito próximas que mantinha com a “tríade” da PIDE. Numa das reuniões de trabalho, segundo informam Manuel Garcia e Lourdes Maurício (autores de O Caso Delgado – “Operação Outono”), Silva Pais tinha dado conhecimento ao Chefe do Governo "da próxima oportunidade de se aprisionar o general" – o que, segundo os autores, foi "tacitamente" aprovado.

Por outro lado, Silva Pais, o Diretor da PIDE, corroborou esta situação na audiência em tribunal de 20 de outubro de 1978. Declara aí que, quando “informou” o chefe do Governo e o ministro do Interior acerca da planeada operação contra Humberto Delgado, Salazar lhe teria recomendado “muito cuidado”, ao passo que o ministro Santos Júnior, sorrindo, teria declarado: “vamos ver se lhe deitamos a mão”. Por fim, o acórdão do Tribunal Militar reitera o conhecimento do ditador sobre o plano para aniquilar o General Delgado. Na sua contestação, Silva Pais afirma ter dado o seu apoio ao plano arquitetado contra Delgado “depois de o mesmo ter sido tacitamente aprovado pelo então presidente do Conselho de Ministros, Salazar, e pelo então ministro do interior, Dr. Alfredo dos Santos Júnior”. Após o desenrolar dos acontecimentos, o mesmo Diretor da PIDE Silva Pais teria ido comunicar o desfecho dos acontecimentos de Badajoz, tendo o Chefe do Governo recomendado o “maior silêncio sobre os factos, de modo a salvar o país de uma gravíssima situação”.

Crime “sem castigo”

A verdade é que Salazar e a PIDE tentaram (e conseguiram) manter um completo silêncio sobre a responsabilidade do regime e dos assassinos diretos do General Humberto Delgado. E isto apesar de os amigos do General terem conseguido descobrir toda a trama do seu assassinato e de o advogado Jaime Cortezo (da justiça espanhola) ter chegado a solicitar a extradição dos traidores Ernesto Bisogno e Mário de Carvalho para serem julgados em Espanha.

Os chefes da PIDE mantiveram os seus cargos. Mário de Carvalho, o agente traidor de Roma, passou a auferir o ordenado de dezasseis mil escudos e Casimiro Monteiro – o duplo assassino – foi colocado em Moçambique a desempenhar missões especiais, tendo sido promovido a subinspetor em 1970.

Sala do Tribunal Militar onde ocorreu o julgamento dos assassinos de Humberto Delgado.

O julgamento do assassínio de Humberto Delgado e de Arajaryr Campos decorreu no 2° Tribunal Militar de Lisboa, como se de um crime militar se tratasse. Constituídos sete réus, apenas três compareceram a julgamento: Silva Pais, Pereira de Carvalho e Agostinho Tienza. Barbieri Cardoso (fugido em Bruxelas), Casimiro Monteiro, (fugido para a África doi Sul), Ernesto Lopes (fugido para o Brasil) e Rosa Casaco (fixado e a monte no Brasil) foram julgados à revelia.

Para um duplo crime e com tal gravidade, as penas foram excecionalmente leves, em especial para aqueles que, estando em Portugal, poderiam e deveriam ter respondido pela sua planificação e execução.

O acórdão de condenação dos réus do 2° Tribunal Militar foi conhecido em 27 de julho de 1981.

Depois de recursos interpostos para o Supremo Tribunal Militar, a decisão final foi a dada a conhecer em 8 de julho de 1982.

O ex-director-geral da PIDE/DGS, major Silva Pais, não foi sentenciado por ter falecido em 1981, antes de concluído o julgamento. Pereira de Carvalho, um dos responsáveis da Direção de Serviços de Informação, e sem dúvida conhecedor de todo o processo – quanto mais não seja na fase de encobrimento -, foi absolvido. Barbieri Cardoso, o ex-subdiretor-geral, foi condenado a quatro anos de prisão maior, por quatro crimes de falsificação. Lembremos que ele tinha sido um dos organizadores do complot a partir da cidade de Roma. Ernesto Lopes Ramos, o falso advogado, promotor das reuniões de Paris e de Badajoz, foi condenado a 22 meses, por um crime de uso de identidade falsa. Pelo mesmo crime, Agostinho Tienza foi sentenciado em 14 meses. Tienza, lembremos, foi um operacional central em toda a operação, provavelmente mesmo o assassino de Arajaryr Campos, segundo declarações posteriores de Rosa Casaco. As penas mais pesadas foram atribuídas a Casimiro Monteiro e a Rosa Casaco. Casimiro Monteiro foi dado como o único autor material do duplo homicídio, tendo sido sentenciado em 19 anos e oito meses de prisão, praticamente no limite da pena máxima de 20 anos vigente na altura em Portugal. Rosa Casaco foi condenado em oito anos de prisão por seis crimes de falsificação e dois crimes de furto de documentos. Nenhum dos condenados cumpriu pena, por se encontrarem foragidos.

O verdadeiro assassino permanecia na sombra e no esquecimento

Sob o título “A Verdade que não fora dita”, o jornal “Estado de S. Paulo” transcrevia, em novembro de 1965 – 9 meses depois do assassinato e 7 meses depois do aparecimento dos cadáveres em Villa Nueva del Fresno em 24 de abril de 1965 -, as seguintes declarações:

JAIME CORTEZO

“A passividade da polícia portuguesa para fazer uma investigação pedida há quase nove meses – ressalta o sr. Cortezo – é estranha, sobretudo quando se trata de um assunto em que o bom nome do Estado português está em jogo”.

(Declarações do advogado Jaime Cortezo, encarregado pelo Governo espanhol sobre as investigações em Espanha)

Declarações ao “Estado de S. Paulo”, novembro de 1965, IAN/TT, PIDE, Emídio Guerreiro, Proc. 2515 CI (2), f. 1

EMÍDIO GUERREIRO

(…) – “Os democratas portugueses não saberão agradecer ao governo espanhol antes do dia em que for expedido um mandato de prisão contra o principal responsável: o próprio presidente do Conselho, Salazar.”

(Da entrevista dada pelo sr. Emídio Guerreiro ao correspondente em Paris de “O Estado de S. Paulo”.)

Luís Farinha
Sobre o/a autor(a)

Luís Farinha

Ex-Diretor do Museu do Aljube Resistência e Liberdade. Investigador no Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa