Há 50 anos, na manhã do dia 11 de março de 1975, um quartel de Lisboa, o RAL 1, foi bombardeado por aviões da Força Aérea e atacado por paraquedistas, provocando a morte de um soldado e vários feridos, num golpe falhado contra o MFA, com o general Spínola como cabeça de cartaz, acolitado pela extrema-direita.

As divergências entre os capitães que em 25 de Abril fazem a revolução e o general Spínola que no último momento a ela se associa, começaram na próprio tarde de 25, quando tenta afastar o capitão Salgueiro Maia do comando das tropas do Carmo1. Na noite do dia 25, a propósito do programa do MFA, confronta-se com os militares do posto de comando da Pontinha. Não aceitava vários pontos do programa, designadamente o princípio de autodeterminação e independência das colónias, obrigando o comandante Vitor Crespo a lembrar-lhe que «os blindados a as tropas ainda estão todas na rua»2, ao serviço do MFA.
Outro momento alto dessa divergência é o chamado “Golpe Palma Carlos”. Tratava-se de um plano apresentado pelo primeiro-ministro Adelino da Palma Carlos, em 4 de julho de 1974, substituindo a eleição de uma Assembleia Constituinte no prazo de um ano consagrada no programa do MFA, pela eleição de um Presidente da República e a aprovação de uma Constituição por referendo, a curto prazo. O Presidente seria certamente Spínola, com amplos poderes. O «grande mentor do “Golpe Palma Carlos” foi Sá Carneiro, ligado obviamente a Spínola»3, mas o plano acabaria rejeitado pelo MFA e pelo Conselho de Estado, provocando a demissão do 1º governo provisório, em 9 de julho
Em 28 de setembro, dá-se o embate decisivo. Se a lei 7/74 e o discurso de 27 de julho, reconhecendo o direito à autodeterminação e independência das colónias, tinha sido uma «acentuada evolução de Spínola em face do problema colonial»4, o seu projeto de poder pessoal continuava. Passa ao lado da dinâmica social e política da revolução e, depois de vários discursos defendendo a ordem e disciplina, apela a uma suposta “maioria silenciosa” que se deveria manifestar para apoiar as suas teses. Na noite de 18 para 19 de setembro são colados cartazes que apelam a uma manifestação em Lisboa, para dia 28 de setembro. Setores da direita e da extrema-direita apoiam a iniciativa. A esquerda mobiliza-se contra a manifestação, surgindo grupos de populares que revistam os carros nos acessos a Lisboa, para impedir a entrada de armas. A manifestação acaba por ser desconvocada e Spínola demite-se da Presidência da República, em 30 de setembro.
No essencial a atitude de Spínola representava politicamente o sentimento da oligarquia económica que se tinha constituído à sombra da ditadura e agora via surgir uma democracia imposta pela ação popular. As manifestações, greves, sindicatos, comissões de moradores ou trabalhadores, ocupações de terras… surgem antes de qualquer lei que as enquadre.
Afastado do poder o general vai concentrar à sua volta os vários setores que vão desde os que se opõem ao rumo seguido pela revolução, até aos que querem restaurar o antigo regime.
Em Espanha (ainda com Franco no poder), elementos da ex-PIDE/DGS, da ex-Legião Portuguesa e outros elementos ligados à ditadura, constituíram o ELP – Exército de Libertação de Portugal. Em 17 de fevereiro, o coronel Eurico Corvacho, transmite informações sobre estas atividades, numa reunião da cúpula militar. O ELP tinha reunido na Galiza, em Salamanca e Madrid onde tinha a sua sede e o seu objetivo era «o derrubamento do regime português para o que contariam com largo apoio financeiro e cumplicidade oficiosa das autoridades espanholas». Numa primeira fase, o ELP «procuraria criar um clima de insegurança, pelos seguintes meios: terrorismo seletivo; raptos de embaixadores; sabotagens; campanhas de descrédito sobre personalidades do MFA»5.
O grupo de militares próximos de Spínola, antes de se envolverem numa ação militar de envergadura, tentaram o que ficou conhecido como o “Golpe Palaciano”. Seguindo o relato do então capitão Vasco Lourenço, durante o mês de fevereiro de 75, os militares spinolistas, aproveitando o facto de a segurança do Palácio de Belém ser feita por tropas paraquedistas, comandadas pelo capitão António Ramos, antigo ajudante de campo de Spínola, prepararam um golpe. A ideia era aproveitarem uma das frequentes reuniões do Conselho dos Vinte (onde se juntava toda a cúpula político-militar, incluindo a Coordenadora do MFA) e prender os elementos que consideravam mais perigosos. Refere Vasco Lourenço que «naturalmente, em primeiro lugar, os membros da Comissão Coordenadora do MFA. Uma vez presos seriam levados imediatamente para longe para, não sei bem para onde, e depois…»6. O plano chegaria ao conhecimento do MFA e tudo acabaria em mais um insucesso do grupo spinolista, com os paraquedistas a serem afastados da segurança ao Palácio de Belém e os membros da Coordenadora do MFA a passarem a deslocar-se armados para as reuniões.
A partir de meados de fevereiro, os setores spinolistas e de extrema-direita, convergem na preparação de um golpe. O “Relatório Preliminar do 11 de Março de 1975”,7 refere frequentes contactos em Espanha, onde se encontravam numerosos ex-agentes da PIDE/DGS. Admite «como muito provável que o 1º Tenente Nuno Barbieri, filho do inspetor Barbieri, da ex PIDE/DGS, não seja estranho a estes contactos».

Em 7 de março, os incidentes de Setúbal, a propósito da realização de um comício do PPD (depois PSD) e de uma manifestação contrária, com disparos da PSP a resultar num morto e cerca de duas dezenas de feridos, contribuem para tornar mais pesado o clima político, como refere o jornal Le Monde numa notícia do correspondente em Lisboa, acrescentando que «os incidentes de Setúbal favoreceram a propagação de rumores sobre um novo 28 de setembro em Lisboa»8
Para acelerar os acontecimentos e convencer os indecisos, surge a chamada “Matança da Páscoa”, sobre a qual muitas teorias da conspiração foram elaboradas. O referido “Relatório Preliminar”, defende que essa notícia foi trazida de Espanha, no dia 10, pelo tenente Rolo que diz ter-lhe sido comunicada pela DGS espanhola. Seria desencadeada pela LUAR, a partir do RAL 1, com a colaboração de “Tupamaros” e consistiria numa lista de pessoas a eliminar, 500 militares e 1000 civis. Essa lista de facto nunca terá existido, mas os rumores da sua existência seriam úteis para os setores de extrema-direita levarem o general Spínola a acelerar o golpe. Como testemunha o então major Melo Antunes, «ninguém a viu, nem ninguém a comprovou». E acrescenta ter pedido muitas vezes: «Mostrem-me. Digam-me quem é que a tem, quem é que a fez, quem é que a viu. E ninguém ma mostrou, tudo nunca passou de rumores.» E sobre Spínola, «se realmente o quiseram intoxicar, acho que ele era uma personalidade que facilmente se deixava sugestionar»9.
Tinha chegado o momento decisivo. Seguindo as conclusões do “Relatório Preliminar”, a 10 de março, pelas 21h30, Spínola sai da sua casa em Massamá, disfarçado com barbas postiças, acompanhado por uma escolta de civis armados, com destino a Tancos. Chega, pelas 23h30, à Base Aérea 3, onde se reunem os principais responsáveis pelo golpe, pelas 2h. Pelas 9h Spínola fala aos pilotos que vão atacar o RAL1 que descolam a partir das 10h45.

O ataque ao RAL1, unidade fiel ao MFA (e contra a qual inventam acusações fantasiosas, incluindo a presença de Tupamaros uruguaios) vai ser a principal zona de conflito. 2 aviões T-6, 2 helicanhões, 8 helicópteros com 40 paraquedistas, depois 3 aviões NordAtlas com 120 praquedistas. Pelas 11h50, o quartel do RAL 1 (na zona do aeroporto) é atacado. Ainda segundo o “Relatório Preliminar”, neste ataque são consumidas 220 munições de metralhadora de T-6, 318 munições de 20mm dos helicanhões e 99 foguetões Sneb. Do ataque resulta um morto, o soldado Joaquim Carvalho Luís e 14 feridos.
Os acontecimentos foram documentados por uma reportagem da RTP, conduzida pelo jornalista Adelino Gomes10. Os repórteres filmam os aviões T-6 a bombardear, os paraquedistas a ensaiar um ataque ao RAL1, a resposta do RAL1, ocupando os prédios vizinhos. De seguida vemos algo inédito em televisão, a negociação entre as duas forças em confronto, filmada pelas câmaras da RTP. De um lado o capitão Diniz de Almeida, com uma força do RAL1 a defender o quartel, do outro o capitão Sebastião Martins, com paraquedistas saídos de helicópteros para atacarem o RAL1, falam perante as câmaras:

Cap. Diniz de Almeida – Nós vamos lutar por qualquer motivo. Certo? Vamos a isso. Agora os seus homens têm de saber se estão a fazer uma traição. Se estão a desobedecer às ordens estabelecidas.
Cap. Sebastião Martins (mostrando um panfleto) – Estão a ser distribuídos panfletos desta natureza.
Cap. Diniz de Almeida (lendo o panfleto) – Mas então vocês vêm ocupar uma unidade por causa deste panfleto?
Cap. Sebastião Martins – Não. Atrás disto há um certo número de altas individualidades que não estão contentes com a maneira como está a ser conduzida a democracia no nosso país.
Cap. Diniz de Almeida – Portanto, trata-se de um golpe de estado.
Cap. Sebastião Martins – Não é um golpe de estado.
Cap. Diniz de Almeida – De direita, tipo Chile.
O diálogo continua sem se chegar a qualquer acordo, apesar da intervenção conciliadora de um oficial da marinha (o comandante Costa Correia, que não estava fardado).
A reportagem continua mostrando os efeitos do bombardeamento dentro do quartel do RAL1, viaturas destruídas, paredes e vidros destruídos pelo bombardeamento.
A RTP filma também o momento decisivo dos acontecimentos no RAL1, quando os soldados paraquedistas abandonam os seus oficiais e se dirigem ao RAL1, abraçando efusivamente os soldados até então, supostamente, seus inimigos.

Um soldado paraquedista fala aos seus camaradas que tinham vindo ocupar o RAL1:
- Em virtude de nós acharmos que não temos chefes à altura de nos comandar como deve ser e fiéis ao Movimento das Forças Armadas, todos nós vamos diretos ao RAL1, para esclarecer os nossos problemas.

Outros dos cenários do golpe foi o quartel da GNR do Carmo. «Os spinolistas tinham fortes ligações na GNR, conseguindo o envolvimento de um grupo de militares da mesma no golpe. Prenderam o comandante, homem de confiança do MFA, o general graduado Pinto Ferreira, e assumiram o comando»11. Como resposta ao que passava no interior do quartel, uma enorme multidão encheu o Largo do Carmo, «gritando slogans de unidade com o MFA e de ameaça à GNR».

Pelas 13h30, uma força da GNR constituída por 5 moto-blindados aparece em Monsanto, tentando desligar a antena da RTP, sendo interpelada e intimada a retirar por forças do COPCON, o que fizeram imediatamente. No Carmo, sabendo da derrota do golpe, os revoltosos libertam o general Pinto Ferreira e os outros presos afetos ao MFA. Já em liberdade e reassumindo o posto de comandante-geral, fala aos GNR reunidos na parada do quartel:
«Eu vi lá de cima da janela, do quarto onde me prenderam, alguns de vocês cá em baixo, uns armados outros não. Vi-os com cara de enganados! Mais uma vez vocês foram enganados! Não os vi com cara de convictos! E foi pena. É altura do nosso pessoal não ir em enganos! (…) Vocês os humildes da GNR têm de aprender a não se deixar enganar!»12
Outra ação dos golpistas, pelas 13h, foi a inutilização do posto emissor do Rádio Clube Português (a “Emissora da Liberdade” de 25 de Abril), por um grupo de civis armados e militares , transportados por helicóptero, interrompendo a emissão da estação em onda média. Na Emissora Nacional, por ação da 5ª Divisão, às 13h10 a emissão é interrompida para a leitura de notícias contra o golpe13, com grande importância na mobilização popular para defender o RAL1 e o estabelecimento de barragens para controlar os acessos a Lisboa.
Em Tancos, é hora de Spínola tirar as consequências das várias derrotas acumuladas. Depois de uma última tentativa falhada de aliciar Salgueiro Maia, conclui ser necessário abandonar o país, seguindo de helicóptero para a base aérea espanhola de Talavera la Real, próxima de Badajoz, com muitos dos seus apoiantes.
Na noite de 11 de março, uma enorme manifestação popular saiu à rua contra o golpe e em apoio do MFA. Os partidos de esquerda divulgaram comunicados em apoio da revolução. Mas também o CDS, em comunicado, se afirmou «solidário com o MFA, legítimo garante do processo de democratização do nosso país», assim como o PPD condenou «os elementos reacionários que atentaram contra as liberdades e o processo democrático».
Mas nessa noite e madrugada, foi a Assembleia Militar, convocada pelo Presidente Costa Gomes, a marcar a história dos anos que se seguiram.
Desta Assembleia (que hoje a direita qualifica de “selvagem”), sai a confirmação da realização das eleições em 25 de Abril de 1975, tal como prometia o Programa do MFA, ao contrário do plano de Spínola e Sá Carneiro, em julho de 74, para as adiarem sem fixarem data.

Nela também se aprova a institucionalização do MFA, com a criação de um Conselho da Revolução (depois integrado na Constituição de 1976) e que só será extinto em 1982. Na Assembleia, o capitão Vasco Lourenço, em nome da Coordenadora do MFA defendeu que a «institucionalização deveria ser feita o mais urgente possível»14.
Mas será a nacionalização da banca e dos seguros, a «lei mais revolucionária jamais aprovada em Portugal», como afirmou o Presidente da República, Costa Gomes, a ter maior importância nos anos seguintes. Com o 25 de Abril, desapossados do poder político que tiveram no período da Ditadura, os banqueiros desenvolveram todas as manobras para prejudicar o processo revolucionário. Entre essas medidas, ruinosas para o País, contam-se a descapitalização da Banca, o congelamento das remessas dos emigrantes, a transferência de fundos e valores para o estrangeiro.
Segundo o então capitão Vasco Lourenço, a coordenadora do MFA, reunida a propósito da nacionalização da banca, com o governador do Banco de Portugal e o Ministro das Finanças, Silva Lopes, terá ouvido deste último:
«- Ou vocês nacionalizam já, ou daqui a oito dias nacionalizam paredes, porque o dinheiro saíu todo!»15
O Conselho da Revolução só tinha uma opção. Três dias depois da tentativa de golpe, o "Diário do Governo" de 14 de Março de 1975, decretava a nacionalização da banca.

O decreto da nacionalização era claro. Considerava que «o sistema bancário, na sua função privada, se tem caracterizado como um elemento ao serviço dos grandes grupos monopolistas, em detrimento da mobilização da poupança e da canalização do investimento em direção à satisfação das reais necessidades da população portuguesa e ao apoio às pequenas e médias empresas». E ainda que «os recentes acontecimentos de 11 de Março vieram pôr em evidência os perigos que para os superiores interesses da Revolução existem se não forem tomadas medidas imediatas no campo do controle efetivo do poder económico».
Entre 1975 e 1989, a banca nacionalizada foi fundamental para permitir aos governos ultrapassar as crises que o país enfrentou. Pelo contrário, a reconstituição dos grandes grupos assentes no poder bancário, com as privatizações, tem sido uma fonte de problemas, exigindo o recurso a milhões do estado que paga sem controlar o sistema.
A derrota do golpe contra o 25 de Abril, em 11 de Março de 1975, permitiu a consolidação do processo revolucionário que, com todas as suas contradições, foi fundador do regime democrático consagrado na Constituição de 1976.
Notas:
1 Salgueiro Maia, Capitão de Abril, Lisboa, Editorial Notícias, 1994, p.97.
2 Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em Abril, Lisboa, Ulmeiro, 1984, p. 478.
3 Vasco Lourenço, Do Interior da Revolução – entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Lisboa Âncora Editora, 2009, p. 286.
4 Pezarat Correia, Descolonização de Angola – A Jóia da Coroa do Império Português, Lisboa, Inquérito, 1991, p. 66.
5 Diniz de Almeida, Ascensão, Apogeu e Queda do MFA, 1º vol., Lisboa, Edição do autor, s.d., p.278
6 Vasco Lourenço, Do Interior da Revolução – entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Lisboa Âncora Editora, 2009, p. 358.
7 Relatório Preliminar do 11 de Março de 1975, Lisboa, Movimento das Forças Armadas, 1975.
8 Le Monde, 11 de março de 1975 (a edição sai na véspera, com data do dia seguinte).
9 Melo Antunes, O Sonhador Pragmático – entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Lisboa, Editorial Notícias, 2004, pp. 176,177.
10 RTP-reportagem de Adelino Gomes, 11 de março de 1975, Arquivo RTP ( https://arquivos.rtp.pt/conteudos/o-11-de-marco/ )
11 Vasco Lourenço, Do Interior da Revolução – entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Lisboa Âncora Editora, 2009, p. 362,363.
12 Diário de Notícias, 12 de março de 1975.
13 Varela Gomes, Sobre os Golpes Contra-Revolucionários de 11 de Março e de 25 de Novembro de 1975, Lisboa, edição do autor, 1980, p. 134.
14 Almada Contreiras (coord.), A Noite que Mudou a Revolução de Abril – a Assembleia Militar de 11 de Março de 1975, Lisboa, Colibri, 2019, p. 212.
15 Associação 25 de Abril, Curso de História Contemporânea, 2009, (https://a25abril.pt/arquivos-historicos/curso-de-historia-contemporanea/modulo-v/ )Há 50 anos, na manhã do dia 11 de março de 1975, um quartel de Lisboa, o RAL 1, foi bombardeado por aviões da Força Aérea e atacado por paraquedistas, provocando a morte de um soldado e vários feridos, num golpe falhado contra o MFA, com o general Spínola como cabeça de cartaz, acolitado pela extrema-direita.
As divergências entre os capitães que em 25 de Abril fazem a revolução e o general Spínola que no último momento a ela se associa, começaram na próprio tarde de 25, quando tenta afastar o capitão Salgueiro Maia do comando das tropas do Carmo1. Na noite do dia 25, a propósito do programa do MFA, confronta-se com os militares do posto de comando da Pontinha. Não aceitava vários pontos do programa, designadamente o princípio de autodeterminação e independência das colónias, obrigando o comandante Vitor Crespo a lembrar-lhe que «os blindados a as tropas ainda estão todas na rua»2, ao serviço do MFA.
Outro momento alto dessa divergência é o chamado “Golpe Palma Carlos”. Tratava-se de um plano apresentado pelo primeiro-ministro Adelino da Palma Carlos, em 4 de julho de 1974, substituindo a eleição de uma Assembleia Constituinte no prazo de um ano consagrada no programa do MFA, pela eleição de um Presidente da República e a aprovação de uma Constituição por referendo, a curto prazo. O Presidente seria certamente Spínola, com amplos poderes. O «grande mentor do “Golpe Palma Carlos” foi Sá Carneiro, ligado obviamente a Spínola»3, mas o plano acabaria rejeitado pelo MFA e pelo Conselho de Estado, provocando a demissão do 1º governo provisório, em 9 de julho
Em 28 de setembro, dá-se o embate decisivo. Se a lei 7/74 e o discurso de 27 de julho, reconhecendo o direito à autodeterminação e independência das colónias, tinha sido uma «acentuada evolução de Spínola em face do problema colonial»4, o seu projeto de poder pessoal continuava. Passa ao lado da dinâmica social e política da revolução e, depois de vários discursos defendendo a ordem e disciplina, apela a uma suposta “maioria silenciosa” que se deveria manifestar para apoiar as suas teses. Na noite de 18 para 19 de setembro são colados cartazes que apelam a uma manifestação em Lisboa, para dia 28 de setembro. Setores da direita e da extrema-direita apoiam a iniciativa. A esquerda mobiliza-se contra a manifestação, surgindo grupos de populares que revistam os carros nos acessos a Lisboa, para impedir a entrada de armas. A manifestação acaba por ser desconvocada e Spínola demite-se da Presidência da República, em 30 de setembro.
No essencial a atitude de Spínola representava politicamente o sentimento da oligarquia económica que se tinha constituído à sombra da ditadura e agora via surgir uma democracia imposta pela ação popular. As manifestações, greves, sindicatos, comissões de moradores ou trabalhadores, ocupações de terras… surgem antes de qualquer lei que as enquadre.
Afastado do poder o general vai concentrar à sua volta os vários setores que vão desde os que se opõem ao rumo seguido pela revolução, até aos que querem restaurar o antigo regime.
Em Espanha (ainda com Franco no poder), elementos da ex-PIDE/DGS, da ex-Legião Portuguesa e outros elementos ligados à ditadura, constituíram o ELP – Exército de Libertação de Portugal. Em 17 de fevereiro, o coronel Eurico Corvacho, transmite informações sobre estas atividades, numa reunião da cúpula militar. O ELP tinha reunido na Galiza, em Salamanca e Madrid onde tinha a sua sede e o seu objetivo era «o derrubamento do regime português para o que contariam com largo apoio financeiro e cumplicidade oficiosa das autoridades espanholas». Numa primeira fase, o ELP «procuraria criar um clima de insegurança, pelos seguintes meios: terrorismo seletivo; raptos de embaixadores; sabotagens; campanhas de descrédito sobre personalidades do MFA»5.
O grupo de militares próximos de Spínola, antes de se envolverem numa ação militar de envergadura, tentaram o que ficou conhecido como o “Golpe Palaciano”. Seguindo o relato do então capitão Vasco Lourenço, durante o mês de fevereiro de 75, os militares spinolistas, aproveitando o facto de a segurança do Palácio de Belém ser feita por tropas paraquedistas, comandadas pelo capitão António Ramos, antigo ajudante de campo de Spínola, prepararam um golpe. A ideia era aproveitarem uma das frequentes reuniões do Conselho dos Vinte (onde se juntava toda a cúpula político-militar, incluindo a Coordenadora do MFA) e prender os elementos que consideravam mais perigosos. Refere Vasco Lourenço que «naturalmente, em primeiro lugar, os membros da Comissão Coordenadora do MFA. Uma vez presos seriam levados imediatamente para longe para, não sei bem para onde, e depois…»6. O plano chegaria ao conhecimento do MFA e tudo acabaria em mais um insucesso do grupo spinolista, com os paraquedistas a serem afastados da segurança ao Palácio de Belém e os membros da Coordenadora do MFA a passarem a deslocar-se armados para as reuniões.
A partir de meados de fevereiro, os setores spinolistas e de extrema-direita, convergem na preparação de um golpe. O “Relatório Preliminar do 11 de Março de 1975”,7 refere frequentes contactos em Espanha, onde se encontravam numerosos ex-agentes da PIDE/DGS. Admite «como muito provável que o 1º Tenente Nuno Barbieri, filho do inspetor Barbieri, da ex PIDE/DGS, não seja estranho a estes contactos».
Em 7 de março, os incidentes de Setúbal, a propósito da realização de um comício do PPD (depois PSD) e de uma manifestação contrária, com disparos da PSP a resultar num morto e cerca de duas dezenas de feridos, contribuem para tornar mais pesado o clima político, como refere o jornal Le Monde numa notícia do correspondente em Lisboa, acrescentando que «os incidentes de Setúbal favoreceram a propagação de rumores sobre um novo 28 de setembro em Lisboa»8
Para acelerar os acontecimentos e convencer os indecisos, surge a chamada “Matança da Páscoa”, sobre a qual muitas teorias da conspiração foram elaboradas. O referido “Relatório Preliminar”, defende que essa notícia foi trazida de Espanha, no dia 10, pelo tenente Rolo que diz ter-lhe sido comunicada pela DGS espanhola. Seria desencadeada pela LUAR, a partir do RAL 1, com a colaboração de “Tupamaros” e consistiria numa lista de pessoas a eliminar, 500 militares e 1000 civis. Essa lista de facto nunca terá existido, mas os rumores da sua existência seriam úteis para os setores de extrema-direita levarem o general Spínola a acelerar o golpe. Como testemunha o então major Melo Antunes, «ninguém a viu, nem ninguém a comprovou». E acrescenta ter pedido muitas vezes: «Mostrem-me. Digam-me quem é que a tem, quem é que a fez, quem é que a viu. E ninguém ma mostrou, tudo nunca passou de rumores.» E sobre Spínola, «se realmente o quiseram intoxicar, acho que ele era uma personalidade que facilmente se deixava sugestionar»9.
Tinha chegado o momento decisivo. Seguindo as conclusões do “Relatório Preliminar”, a 10 de março, pelas 21h30, Spínola sai da sua casa em Massamá, disfarçado com barbas postiças, acompanhado por uma escolta de civis armados, com destino a Tancos. Chega, pelas 23h30, à Base Aérea 3, onde se reunem os principais responsáveis pelo golpe, pelas 2h. Pelas 9h Spínola fala aos pilotos que vão atacar o RAL1 que descolam a partir das 10h45.
O ataque ao RAL1, unidade fiel ao MFA (e contra a qual inventam acusações fantasiosas, incluindo a presença de Tupamaros uruguaios) vai ser a principal zona de conflito. 2 aviões T-6, 2 helicanhões, 8 helicópteros com 40 paraquedistas, depois 3 aviões NordAtlas com 120 praquedistas. Pelas 11h50, o quartel do RAL 1 (na zona do aeroporto) é atacado. Ainda segundo o “Relatório Preliminar”, neste ataque são consumidas 220 munições de metralhadora de T-6, 318 munições de 20mm dos helicanhões e 99 foguetões Sneb. Do ataque resulta um morto, o soldado Joaquim Carvalho Luís e 14 feridos.
Os acontecimentos foram documentados por uma reportagem da RTP, conduzida pelo jornalista Adelino Gomes10. Os repórteres filmam os aviões T-6 a bombardear, os paraquedistas a ensaiar um ataque ao RAL1, a resposta do RAL1, ocupando os prédios vizinhos. De seguida vemos algo inédito em televisão, a negociação entre as duas forças em confronto, filmada pelas câmaras da RTP. De um lado o capitão Diniz de Almeida, com uma força do RAL1 a defender o quartel, do outro o capitão Sebastião Martins, com paraquedistas saídos de helicópteros para atacarem o RAL1, falam perante as câmaras:
Cap. Diniz de Almeida – Nós vamos lutar por qualquer motivo. Certo? Vamos a isso. Agora os seus homens têm de saber se estão a fazer uma traição. Se estão a desobedecer às ordens estabelecidas.
Cap. Sebastião Martins (mostrando um panfleto) – Estão a ser distribuidos panfletos desta natureza.
Cap. Diniz de Almeida (lendo o panfleto) – Mas então vocês vêm ocupar uma unidade por causa deste panfleto?
Cap. Sebastião Martins – Não. Atrás disto há um certo número de altas individualidades que não estão contentes com a maneira como está a ser conduzida a democracia no nosso país.
Cap. Diniz de Almeida – Portanto, trata-se de um golpe de estado.
Cap. Sebastião Martins – Não é um golpe de estado.
Cap. Diniz de Almeida – De direita, tipo Chile.
O diálogo continua sem se chegar a qualquer acordo, apesar da intervenção conciliadora de um oficial da marinha (o comandante Costa Correia, que não estava fardado).
A reportagem continua mostrando os efeitos do bombardeamento dentro do quartel do RAL1, viaturas destruídas, paredes e vidros destruídos pelo bombardeamento.
A RTP filma também o momento decisivo dos acontecimentos no RAL1, quando os soldados paraquedistas abandonam os seus oficiais e se dirigem ao RAL1, abraçando efusivamente os soldados até então, supostamente, seus inimigos.
Um soldado paraquedista fala aos seus camaradas que tinham vindo ocupar o RAL1:
- Em virtude de nós acharmos que não temos chefes à altura de nos comandar como deve ser e fiéis ao Movimento das Forças Armadas, todos nós vamos diretos ao RAL1, para esclarecer os nossos problemas.
Outros dos cenários do golpe foi o quartel da GNR do Carmo. «Os spinolistas tinham fortes ligações na GNR, conseguindo o envolvimento de um grupo de militares da mesma no golpe. Prenderam o comandante, homem de confiança do MFA, o general graduado Pinto Ferreira, e assumiram o comando»11. Como resposta ao que passava no interior do quartel, uma enorme multidão encheu o Largo do Carmo, «gritando slogans de unidade com o MFA e de ameaça à GNR».
Pelas 13h30, uma força da GNR constituída por 5 moto-blindados aparece em Monsanto, tentando desligar a antena da RTP, sendo interpelada e intimada a retirar por forças do COPCON, o que fizeram imediatamente. No Carmo, sabendo da derrota do golpe, os revoltosos libertam o general Pinto Ferreira e os outros presos afetos ao MFA. Já em liberdade e reassumindo o posto de comandante-geral, fala aos GNR reunidos na parada do quartel:
«Eu vi lá de cima da janela, do quarto onde me prenderam, alguns de vocês cá em baixo, uns armados outros não. Vi-os com cara de enganados! Mais uma vez vocês foram enganados! Não os vi com cara de convictos! E foi pena. É altura do nosso pessoal não ir em enganos! (…) Vocês os humildes da GNR têm de aprender a não se deixar enganar!»12
Outra ação dos golpistas, pelas 13h, foi a inutilização do posto emissor do Rádio Clube Português (a “Emissora da Liberdade” de 25 de Abril), por um grupo de civis armados e militares , transportados por helicóptero, interrompendo a emissão da estação em onda média. Na Emissora Nacional, por ação da 5ª Divisão, às 13h10 a emissão é interrompida para a leitura de notícias contra o golpe13, com grande importância na mobilização popular para defender o RAL1 e o estabelecimento de barragens para controlar os acessos a Lisboa.
Em Tancos, é hora de Spínola tirar as consequências das várias derrotas acumuladas. Depois de uma última tentativa falhada de aliciar Salgueiro Maia, conclui ser necessário abandonar o país, seguindo de helicóptero para a base aérea espanhola de Talavera la Real, próxima de Badajoz, com muitos dos seus apoiantes.
Na noite de 11 de março, uma enorme manifestação popular saiu à rua contra o golpe e em apoio do MFA. Os partidos de esquerda divulgaram comunicados em apoio da revolução. Mas também o CDS, em comunicado, se afirmou «solidário com o MFA, legítimo garante do processo de democratização do nosso país», assim como o PPD
condenou «os elementos reacionários que atentaram contra as liberdades e o processo democrático».
Mas nessa noite e madrugada, foi a Assembleia Militar, convocada pelo Presidente Costa Gomes, a marcar a história dos anos que se seguiram.
Desta Assembleia (que hoje a direita qualifica de “selvagem”), sai a confirmação da realização das eleições em 25 de Abril de 1975, tal como prometia o Programa do MFA, ao contrário do plano de Spínola e Sá Carneiro, em julho de 74, para as adiarem sem fixarem data.
Nela também se aprova a institucionalização do MFA, com a criação de um Conselho da Revolução (depois integrado na Constituição de 1976) e que só será extinto em 1982. Na Assembleia, o capitão Vasco Lourenço, em nome da Coordenadora do MFA defendeu que a «institucionalização deveria ser feita o mais urgente possível»14.
Mas será a nacionalização da banca e dos seguros, a «lei mais revolucionária jamais aprovada em Portugal», como afirmou o Presidente da República, Costa Gomes, a ter maior importância nos anos seguintes. Com o 25 de Abril, desapossados do poder político que tiveram no período da Ditadura, os banqueiros desenvolveram todas as manobras para prejudicar o processo revolucionário. Entre essas medidas, ruinosas para o País, contam-se a descapitalização da Banca, o congelamento das remessas dos emigrantes, a transferência de fundos e valores para o estrangeiro.
Segundo o então capitão Vasco Lourenço, a coordenadora do MFA, reunida a propósito da nacionalização da banca, com o governador do Banco de Portugal e o Ministro das Finanças, Silva Lopes, terá ouvido deste último:
«- Ou vocês nacionalizam já, ou daqui a oito dias nacionalizam paredes, porque o dinheiro saíu todo!»15
O Conselho da Revolução só tinha uma opção. Três dias depois da tentativa de golpe, o "Diário do Governo" de 14 de Março de 1975, decretava a nacionalização da banca.
O decreto da nacionalização era claro. Considerava que «o sistema bancário, na sua função privada, se tem caracterizado como um elemento ao serviço dos grandes grupos monopolistas, em detrimento da mobilização da poupança e da canalização do investimento em direção à satisfação das reais necessidades da população portuguesa e ao apoio às pequenas e médias empresas». E ainda que «os recentes acontecimentos de 11 de Março vieram pôr em evidência os perigos que para os superiores interesses da Revolução existem se não forem tomadas medidas imediatas no campo do controle efetivo do poder económico».
Entre 1975 e 1989, a banca nacionalizada foi fundamental para permitir aos governos ultrapassar as crises que o país enfrentou. Pelo contrário, a reconstituição dos grandes grupos assentes no poder bancário, com as privatizações, tem sido uma fonte de problemas, exigindo o recurso a milhões do estado que paga sem controlar o sistema.
A derrota do golpe contra o 25 de Abril, em 11 de Março de 1975, permitiu a consolidação do processo revolucionário que, com todas as suas contradições, foi fundador do regime democrático consagrado na Constituição de 1976.
Notas:
1 Salgueiro Maia, Capitão de Abril, Lisboa, Editorial Notícias, 1994, p.97.
2 Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em Abril, Lisboa, Ulmeiro, 1984, p. 478.
3 Vasco Lourenço, Do Interior da Revolução – entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Lisboa Âncora Editora, 2009, p. 286.
4 Pezarat Correia, Descolonização de Angola – A Jóia da Coroa do Império Português, Lisboa, Inquérito, 1991, p. 66.
5 Diniz de Almeida, Ascensão, Apogeu e Queda do MFA, 1º vol., Lisboa, Edição do autor, s.d., p.278
6 Vasco Lourenço, Do Interior da Revolução – entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Lisboa Âncora Editora, 2009, p. 358.
7 Relatório Preliminar do 11 de Março de 1975, Lisboa, Movimento das Forças Armadas, 1975.
8 Le Monde, 11 de março de 1975 (a edição sai na véspera, com data do dia seguinte).
9 Melo Antunes, O Sonhador Pragmático – entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Lisboa, Editorial Notícias, 2004, pp. 176,177.
10 RTP-reportagem de Adelino Gomes, 11 de março de 1975, Arquivo RTP ( https://arquivos.rtp.pt/conteudos/o-11-de-marco/ )
11 Vasco Lourenço, Do Interior da Revolução – entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Lisboa Âncora Editora, 2009, p. 362,363.
12 Diário de Notícias, 12 de março de 1975.
13 Varela Gomes, Sobre os Golpes Contra-Revolucionários de 11 de Março e de 25 de Novembro de 1975, Lisboa, edição do autor, 1980, p. 134.
14 Almada Contreiras (coord.), A Noite que Mudou a Revolução de Abril – a Assembleia Militar de 11 de Março de 1975, Lisboa, Colibri, 2019, p. 212.
15 Associação 25 de Abril, Curso de História Contemporânea, 2009, (https://a25abril.pt/arquivos-historicos/curso-de-historia-contemporanea/modulo-v/ )