Está aqui

10 de junho de 1978: Polícia dispara sobre manifestantes antifascistas

Há 40 anos um polícia da PSP disparou sobre uma manifestação antifascista causando dois feridos e um morto. Republicamos a entrevista a Jorge Falcato, que ficou gravemente ferido na sequência dos disparos e um artigo do escritor Mário Dionísio escrito na altura.
Jorge Falcato: "Foi uma vergonha. No final do julgamento, o juiz disse que o polícia iria sair em liberdade, que era considerado inocente, embora não fosse essa a sua convicção".
Jorge Falcato: "Foi uma vergonha. No final do julgamento, o juiz disse que o polícia iria sair em liberdade, que era considerado inocente, embora não fosse essa a sua convicção".

A 10 de junho de 1978 teve lugar a primeira sessão do Tribunal Cívico Humberto Delgado, que decorreu na Voz do Operário e contou com a participação de antifascistas de todas as tendências.

No mesmo dia, a extrema direita decidiu convocar uma comemoração do "dia da raça" no Largo Camões, em Lisboa. Perante esta convocatória, largas centenas de antifascistas dirigiram-se para o local, dando corpo a uma segunda concentração que suplantou significativamente a comemoração promovida pela extrema direita.

Ainda que se tenham registado algumas pequenas escaramuças, tudo apontava para que não se viesse a verificar uma escalada de violência, porém, um dos polícias destacados para o local disparou cerca de dois carregadores da sua pistola e uma rajada de metralhadora sobre os manifestantes antifascistas, causando dois feridos e um morto.

José Jorge Morais, um jovem estudante da Faculdade de Medicina, morreu ao ser atingido nas costas. Antes disso, já Jorge Falcato tinha sido gravemente ferido durante os disparos.

Dez anos depois, o agente da PSP foi absolvido, ainda que o juiz tenha afirmado que essa não era a sua convicção.

O Esquerda.net entrevistou Jorge Falcato, que nos descreveu, na primeira pessoa, os acontecimentos.

O que se lembra do dia 10 de junho de 1978?

Na altura, eu vivia no Algarve e estava em Lisboa porque a minha filha tinha nascido. No dia 10, fui à sessão do Tribunal Cívico Humberto Delgado, durante a qual me informaram que ia ter lugar uma manifestação fascista e que algumas pessoas iriam protestar contra a realização dessa iniciativa.

É claro que, quatro anos depois do 25 de Abril, era inadmissível que se promovesse uma comemoração do dia da raça. Isso mexia muito connosco na altura, como é natural, e como ainda hoje mexe.

Fui, com uns amigos, ver o que é que se passava e, claro, demonstrar o meu repúdio pela realização dessa manifestação. Quando chegámos, assistimos a algumas escaramuças entre os dois grupos de manifestantes que rapidamente foram sanadas, no entanto, quando estava quase para me vir embora comecei a ouvir tiros e reaproximei-me do local. Pelo que depois vim a saber, na sequência da investigação que foi feita sobre os acontecimentos, um polícia descarregou cerca de dois carregadores da pistola que lhe tinha sido atribuída e depois foi buscar uma G3 que não lhe pertencia ao carro patrulha. O elemento da PSP encabeçou a manifestação fascista, de maneira a atingir os manifestantes antifascistas que ali se encontravam.

Eu levei um tiro e caí logo. Sei que, depois de ser atingido, retiraram-me do local e esse polícia veio a matar um jovem, o José Jorge Morais, e ainda a atingir outra pessoa. Segundo os relatos na época, ele abriu alas afastando as pessoas com uma mão e lançou uma rajada de metralhadora numa rua onde havia pessoas a fugir. O José Jorge Morais foi atingido pelas costas.

Na sequência desse acontecimento, o que é que aconteceu ao polícia?

Houve um julgamento, dez anos depois, que foi uma autêntica farsa. Os polícias que estavam presentes no local, que eram seis, se bem me recordo, indicaram claramente, nas declarações que prestaram à Judiciária, qual o polícia que me tinha atingido e ao José Jorge Morais: um senhor de seu nome Amadeu, já não me recordo do apelido, que foi o único dos seis polícias a ser imediatamente transferido para o Norte.

No julgamento, os polícias contradisseram tudo o que tinham declarado à Judiciária. Diluíram as culpas de maneira a que não fosse possível o juiz e o coletivo do tribunal terem a convicção, baseados naquilo que era dito em tribunal, de que aquele era o polícia que me tinha atingido. Eu penso que ele chegou a estar preso preventivamente logo a seguir aos acontecimentos, mas foi libertado cerca de um mês depois.

Durante o julgamento, quando o juiz perguntou a um polícia qual era a missão que lhes estava atribuída no local, ele respondeu que estavam lá para “varrer aquele lixo”. E varrer o lixo era, no fundo, varrer as pessoas que estavam a manifestar-se. Aliás, lembro-me que o juiz na altura ficou bastante surpreendido com este palavreado. Foi uma vergonha. No final do julgamento, o juiz disse que o polícia iria sair em liberdade, que era considerado inocente, embora não fosse essa a sua convicção. Era claro quem tinha sido o autor do crime. O advogado do comando distrital da PSP, uma semana depois de ter acabado o julgamento, promoveu uma romagem à campa do Salazar, pelo que podemos entender qual era a qualidade daquele advogado.

Como é que o Estado se comportou consigo depois destes acontecimentos?

Não se comportou. Eu não fui ressarcido de coisa nenhuma, embora tivesse ficado provado que foi a PSP que me atingiu e que matou o José Jorge Morais. Mas, se calhar, eu também tenho algumas culpas, porque não avancei com um processo cível. Após aquele julgamento, passados dez anos, que durou um ano, em que eu ouvi as maiores barbaridades, nomeadamente que eu tinha estragado a vida àquele polícia, não tinha cabeça para mais processos judiciais.

 Entrevista concedida ao Esquerda.net em junho de 2013


Legalmente assassinado

Por Mário Dionísio, Diário de Lisboa, 14/6/1978

Escrevo à pressa, no regresso dum funeral imponente pelo número dos acompanhantes – não tão vasto, contudo, como seria bem legítimo esperar-se – e sobretudo pela dor profunda e contagiosa que o silêncio da massa compacta exprimia.

Escrevo à pressa no regresso desse funeral, onde praticamente só havia povo (povo mesmo) e jovens, muitos jovens de olhos molhados e firmes. Porque não posso deixar de manifestar publicamente e sem demora o meu espanto, o meu protesto, a minha indignação, talvez principalmente o meu desespero por ter sido possível, tão poucos anos depois do 25 de Abril, este crime hediondo: o abater-se a tiro numa rua de Lisboa um jovem de 18 ou 19 anos porque tentou opor-se a uma manifestação inequivocamente fascista, como ninguém honestamente invocará ignorar que ela o seria. Porque tentou impedir que o fascismo volte a erguer a sua voz – e não só a sua voz –, agora já na via pública, neste pobre País tão macerado pelo que sofreu durante quase meio século. Porque tentou evitar que se confunda o símbolo máximo da nossa cultura – Camões – com a barbárie que o botim cardado e o braço estendido sempre representaram.

O meu espanto, o meu protesto, a minha indignação, talvez sobretudo o meu desespero, por ter sido, ao que consta até este momento, a Policia chamada de Segurança Pública a executar o ato monstruoso ou, na melhor das hipóteses, a torná-lo possível, “protegendo” (“protegendo!”) uma manifestação de intuitos transparentes e sem rebuço proclamados, considerada “legal” apesar do que está bem expresso na nossa Constituição (ainda) em vigor. A mesma Polícia que apareceria no dia seguinte à porta de, pelo menos, algumas escolas e na cantina do Ministério da Educação e Cultura de G-3 aperradas, dizendo-se em “simples operação de rotina”!

Cumprindo ordens, já se sabe, que é essa a sua função e o seu álibi de sempre. E ordens de quem? Treme-se de magoada surpresa ao pensar em quem poderia tê-las dado e certamente as deu. Que, quanto aos executantes propriamente ditos ou, na melhor das hipóteses, colaborantes, a surpresa será menor ou não existe: não é em vão que, durante meio século, se abrem cabeças à bastonada, se açulam cães, se desfecha o gatilho, mal se ouvem gritos como “Abaixo o fascismo!” O hábito fica e, ao menor pretexto, sobretudo se se têm as costas quentes com as “ordens de cima”, lá vêm os tais “tiros para o ar” que apanham por acaso as pessoas em pleno peito. Como aconteceu agora a José Jorge Morais, que acabo de acompanhar à última morada, embora nunca o tenha conhecido e só dele saiba que tinha 18 ou 19 anos, que era estudante de medicina e que devia odiar tanto essa vergonha da humanidade a que se chama fascismo que, para fazer-lhe frente, deu a vida. Quer dizer, deem-lhe as voltas que lhe derem: deu a vida por nós.

Não me interessa se tinha ou não partido ou a que partido pertencia. Não me interessa se era católico ou ateu. Absolutamente nada. Interessa-me, isso sim, que fez o que pôde e como soube para que o fascismo não avançasse... mais. E que o fez com um espírito de generosidade e de dádiva total, perante o qual qualquer antifascista terá de respeitosamente curvar-se.

Parece que tinha afinal partido e que era católico, já que o enterro foi religioso e certamente lhe terão respeitado as convicções ou crenças.

Quando, no sábado, o crime se deu, estava eu assistindo ao encerramento dos trabalhos da primeira sessão do Tribunal Cívico Humberto Delgado, cuja importância é inútil sublinhar e que, por sinal, o nosso mais poderoso órgão de comunicação social, a RTP, resolveu pura e simplesmente ignorar, assim conseguindo que o País inteiro desconhecesse que, além dos vários tipos de festejos que assinalaram, a propósito ou a despropósito, o dia 10 de Junho, algo se passou naquela casa de velhas tradições de luta que se chama A Voz do Operário.

No momento em que as intervenções foram subitamente interrompidas e se anunciou o que acabava de acontecer no Largo de Camões e na Rua do Loreto, a reação da sala à cunha, repleta muito para lá da lotação, foi imediata e unânime. E estavam ali, como é bom que tenham estado e deveriam sempre estar em qualquer ocasião, antifascistas de todas as tendências, até lá levados pela consciência de que a liberdade está mais que nunca em perigo e de que só a Unidade – no sentido autêntico e honesto da palavra – a poderá salvar. Todos se ergueram da chofre, feridos na própria carne, compreendendo porventura ainda com maior clareza a situação real em que nos encontramos e que não basta pronunciar a palavra “luta” para que luta exista. Isso mesmo terá significado Ruy Luis Gomes ao encerrar a sessão, entre os mais quentes e prolongados aplausos, com a consagrada palavra de ordem: “A luta continua!”

Porque é tempo de entender que o 25 de Abril, com a pureza, o entusiasmo, a ânsia de transformação e de justiça que o levou a efeito, acabou há muito tempo de entender que, em seu nome e de dentro, se está consumando, dia a dia, o regresso, sob outras formas e terminologias diferentes, o regresso aos quadros gerais duma sociedade de que os homens do MFA quiseram libertar-nos para sempre. Que se entrou noutra fase histórica. Que, sob a cortina de fumo de certos espantalhos habilmente manejados, vamos pouco a pouco voltando, se não voltámos já, ao clima que se tornara a dada altura irrespirável e irrespirável se está novamente tornando.

Enquanto os partidos de esquerda (onde começará e acabará hoje a esquerda?) se desentendem e brincam à Unidade. que é o mais perigoso dos jogos se não se toma a sério, o fascismo, não interessa com que nome ou nomes, organiza-se, infiltra-se, cresce, aceita a mão que lhe estendem, instala-se civilizadamente ou ataca selvaticamente na rua com a proteção das “forças da Ordem” chamada «democrática».

Entretanto, um jovem de 18 ou 19 anos caiu para sempre por repelir o fascismo e porque, nas circunstâncias dadas, defender o fascismo era “legal” e ilegal atacá-lo. Não foi o primeiro, não será o último.

Teremos bem a consciência do que isto significa – no nosso presente e no nosso futuro?

Em 10 de junho de 2018, o deputado Jorge Falcato escreveu na sua página do facebook:

 

ESQUERDA COM MEMÓRIA | Jorge Falcato

Termos relacionados Esquerda com Memória, Sociedade
Comentários (2)