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Samuel Chiwale: a autobiografia de um histórico da Unita

O testemunho pessoal do ex-Comandante Geral da UNITA, na altura conselheiro político do presidente Isaías Samakuva, conta quatro décadas de guerra e liga a sua vida à história contemporânea de Angola. Por Marta Lança.

No relato da história de Angola a desconfiança assola-nos sempre. O jogo entre verdade e mentira, o facto das pessoas ainda estarem vivas e de serem episódios recentes, as tensões e violência que os envolvem, a nada democrática conquista do poder, tudo isso dificulta a objectividade. A abordagem comum, entre justificações e acusações, implica sempre uma tomada de posição. Está para vir o livro que consiga a desejada imparcialidade, mas não era isso que esperávamos de Cruzei-me com a História, de Samuel Chiwale, quando o entrevistámos em 2008. O testemunho pessoal do ex-Comandante Geral da UNITA, na altura conselheiro político do presidente Isaías Samakuva, conta quatro décadas de guerra e liga a sua vida à história contemporânea de Angola.

Tratam-no por general ou por “mais-velho” e é com essa reverência que o assistente lhe lembra do casaco de solenidade, que assenta nos 65 anos de uma figura esguia e imponente. Preparado para a entrevista, Samuel Chiwale explica o objectivo maior deste livro: “Reconhecer a contribuição da UNITA para a libertação do país do jugo colonial e para a instauração da democracia multipartidarista em Angola.”

Começado em 1975, “tinha de aguardar até as condições do país estarem reunidas” para publicar. Agora, com a conquista da paz e em véspera de eleições, a 5 de Setembro, está na hora dos angolanos reflectirem sobre o seu passado para se viver um presente sem mágoa.

“A história estava deturpada, só uma parte é que escrevia, omitindo outros que participaram na luta.” A versão que mais conhecemos é, de facto, a do MPLA que, diz-se no livro, “chegou a confundir a história do seu partido com a História do país.” E só no cruzamento dos factos e interpretações se pode fazer o quadro global da história de Angola.

Outra motivação para esta autobiografia: a vontade de desmentir certos equívocos, segundo ele, como as “acusações de a UNITA ter sido um movimento apoiado pelo Exército português ou pela PIDE.” Para além da guerra contra a dominação colonial e o dia-a-dia desta luta, Samuel Chiwale aborda o pós-independência, mas quer desenvolver melhor esse período num segundo livro.

Perceber a injustiça

Nascido em 1943 no concelho de Caála, distrito do Huambo, região centro, do grupo étnico ovimbundu, Samuel Chiwale arranca o livro com o significado do seu nome, Chiwale – o indivíduo encarregue da vestimenta do rei – e da aldeia onde nasceu, Ensenje lio Tulo – as pedras do sono. Foi ali, entre rios e belas paisagens, que absorveu muitos valores morais da sabedoria popular dos mais-velhos sentados à sombra da mulemba, árvore que em África se associa ao conhecimento. Para a sua formação conta a importância da Missão Evangélica do Bailundo, de religião protestante, e a Escola de Lutamo, no Dôndi, onde se rebelou pela primeira vez por razões de injustiça alimentar.

Na altura Samuel ainda só encontrava nos estudos a saída para combater as atrocidades do regime colonial português, que observava no comportamento dos comerciantes, na angariação dos contratados para as fazendas, na repressão aos costumes africanos.

O pai, respeitado soba (autoridade tradicional), promovido a regedor, e comerciante de gado que comprava no Cunene, levou-o em 1959 a Ondjiva na fronteira com o Sudoeste Africano. Para lá da fronteira, Chiwale depara-se com uma novidade: “Falava-se à vontade da libertação do país. Como podiam os negros falar tão livremente de algo tão complicado?”, pergunta o general em 2008, ainda impressionado com aquelas conversas, impossíveis no sistema colonial em Angola, que os elementos da OPO (Organização dos Povos da Ovambulândia, que em 1962 deriva para a SWAPO – Organização dos Povos do Sudoeste Africano) sustinham contra a presença dos bóeres na região, hoje Namíbia.

Depois o pai foi preso pela PIDE, acusado de colaborar com o combatente anti-colonial congolês Patrice Lumumba (1925-61), que nunca conheceu, e com a UPA (União das Populações de Angola) que em 1961 desencadeara os ataques às plantações de café no Norte de Angola, vivendo eles no Planalto Central. Com a personalização da raiva e as desumanidades acumuladas, “o fim disto só podia ser a participação na luta para a independência do meu país”, juntando-se àqueles que lutavam contra a ocupação bóer, que seria só uma ponte para outras lutas. Isto conta o general Chiwale, que pretende a honestidade e fala como se estivesse num comício, apelando à comoção.

A longa caminhada

Seguem-se incursões ao Botswana e Tanzânia, para onde convergiam outros nacionalistas de Moçambique, Zâmbia, Namíbia, e uma formação político-militar na China de Mao (Chiwale vai pincelando com explicações sobre o contexto político e histórico das potências que interagiram com Angola). Em 1966 Savimbi e os seus camaradas criam a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) que, além de alternativa à fissura entre MPLA e UPA, afirmava-se um partido à escala nacional e não étnico, operando no interior do país. 

O livro discorre sobre tácticas de guerrilha, inaugurada na Frente Leste, que passavam por reduzir o número de militares coloniais, e por destruir a sua economia, com ataques aos caminhos de ferro de Benguela. É nestas desavenças que Savimbi começa a tornar-se “persona non grata” para a CIA, KGB, PIDE.

Dirigentes da UNITA em TERRA LIVRE DE ANGOLA (Fevereiro de 1978). Savimbi e Shiwale à direita.

Anos a fio de peripécias bélicas, dá-se o 25 de Abril e começa o “bolo envenenado” das conferências de paz em Angola. Chewale afirma que muito antes do 11 de Novembro de 1975 (data marcada para a proclamação da Independência) já estava predestinado pela coligação comunista que o poder iria ser entregue ao MPLA, apesar da UNITA ter tentado outros cenários, inclusive o de ser o povo a escolher. A independência foi um momento conturbado. Paralelamente a um momento de celebração acontecia uma das mais sangrentas batalhas: Kifangondo, onde as tropas de um terceiro movimento político, a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), apoiada na altura pelos sul-africanos, foram derrotadas pelos cubanos, que tinham vindo desde logo em auxílio do MPLA. Para o general, a política externa de Cuba, disfarçada de razões humanitárias, ajudou muito aos problemas de Angola, neste sentido escreve que “o internacionalismo proletário é o pior dos mercenarismos que o mundo alguma vez conheceu, ou seja, o mercenarismo do Estado.”

Em 1976 retiram-se os sul-africanos, a UNITA fica no teatro de guerra a debater-se com o fantasma da URSS, abandona as cidades onde tinha o seu estado dentro do Estado, como o Bié e o Huambo, e inaugura a fuga cuja designação vai beber à “Longa Marcha” chinesa, onde a fome e a exaustão iam fazendo sucumbir alguns. Chiwale lidera tarefas arriscadas e conta vários episódios de valentias e cobardias. Com o Leste cercado, caminham para o centro. Nasce então a Jamba, onde fizeram base, que se “tornou ponto de passagem obrigatório para as entidades do ocidente”, com muitos negócios à mistura. 1985, depois da visita de Savimbi aos EUA, marca a passagem das células de guerrilha da UNITA para um exército regular. E a guerra continuou.

Tensões políticas 

As grandes diferenças dos movimentos começam na maneira de fazer a ‘revolução’. “Se o MPLA a fazia da cidade, onde havia uma classe de assimilados, para o campo, o conceito ideológico da UNITA era do campo para a cidade, pois a esmagadora maioria dos oprimidos se encontram no campo”, explica o general, que defende que a singularidade da UNITA era não estar do lado dos americanos como a FNLA nem dos soviéticos como o MPLA, que viviam ambos numa luta de poder que desejava extinguir a UNITA. O que é certo é que a tensão política destes movimentos está na génese da luta fratricida angolana que se seguiu, “o grande paradoxo da história de Angola e a fissura que levou o país para caminhos sinuosos e imprevisíveis, com consequências nefastas para as suas populações.” Para as quais a UNITA contribuiu.

Chiwale, tentando por várias vezes ser conciliador, faz a distinção, dentro do MPLA, entre os que estiveram na luta, os guerrilheiros propriamente ditos, e os dirigentes que vinham à mata só para “tirar uma fotografia”. Nota-se a tentativa de outros ajustes históricos com os heróis anónimos, salienta por exemplo o trabalho da Liga das Mulheres Angolanas na pessoa da presidente Idalina Kuina, e o sua da esposa, Marta Chilombo, que teve de adaptar-se à vida da guerrilha onde se dedicou ao ensino.  

Também refere várias vezes que a filosofia era a de o inimigo ser o sistema colonial e não o branco. O episódio de trocas de produtos com os madeireiros colaboradores do regime colonial em 1970, surge como uma estratégia possível de resistência uma vez que não tinham apoio de ninguém. Este foi um dos factos que o MPLA pegou para acusar a UNITA de ser uma milícia da tropa colonial e de colaborar com a PIDE, versão que Chiwale recusa totalmente.

Neste capítulo da falta de meios sucedem-se outras incongruências. Com a necessidade de armas, apesar de no início usarem apenas catanas, e outras capturadas aos desertores das forças coloniais e do Zaire (onde a corrupção reinava), mais tarde, para contrariar a expansão russo-cubana, aceitavam-nas da mais duvidosa proveniência. Mas o general justifica: “como a arma em si não gera a sua origem, não nos interessa de que país vêm as armas desde que para o benefício do povo. Tivemos de fazer alianças com a África do Sul” que vendia à UNITA, em pleno regime do apartheid de Pieter Botha, armas de países do pacto de Varsóvia. Estas contradições entre ideologias e interesses económicos não parecem afligi-lo: “Aprendemos com o Dr. Savimbi que é mau viver com o diabo mas, se não houver outra solução, nada melhor do que aprender a viver com ele.”

Descrição de Savimbi

São recorrentes as purgas internas nos partidos angolanos. E Savimbi fazia julgamentos violentos para apurar os traidores. Em 1981 Chiwale foi acusado de uma intentona contra o presidente, numa daquelas manobras de invejas para dividir, e sofreu represálias. Sobreviveu à provação e resistiu à acusação de traição a uma causa à qual sempre esteve ligado “com tenacidade, coragem total e convencido de que um dia a verdade viria ao de cima.”

Jonas Savimbi, M. N'Zau Puna e Samuel Chiwale.

Entre as práticas da UNITA que reconhece como excessivas, conta ainda a tenebrosa caça às bruxas que lançava à fogueira pessoas acusadas de feitiçaria, obrigando os familiares, como lhe fizeram, a assistir ao hediondo espectáculo. No entanto, Savimbi era para ele um pai, uma alma gémea, um herói determinado que tombou em combate por um ideal. “Foi ele que me criou, conheci-o com 19 anos e vivi com ele 36 anos de luta. Era um génio e um fenómeno, um intelectual de mente clara e pensamento profundo que foi diabolizado pelos mesmos de sempre que o vêem como terrorista.”

A morte de Savimbi no dia 21 de Fevereiro de 2002, em Lucusse, Leste de Angola, era a grande perda para quem o julgava inatingível, naquele seu gesticulado e hipnótico grito de luta: “o nosso galo voa, o nosso galo voa”, referindo-se à força do movimento do Galo Negro. Foi Chiwale que deu a notícia à tropa e à população, enfatizando o facto de ter morrido em combate, “com a sua arma na mão em nossa defesa, nós os autóctones e desprotegidos.” Mas se havia realmente preocupação com a dimensão humana da Angola profunda, com os desprovidos, abandonados, os combatentes do dia-a-dia de miséria, como fizeram tanta guerra em nome do povo?

Facto é que com o desaparecimento de Savimbi começaram as negociações, no Luena, e deu-se o cessar-fogo com as Forças Armadas Angolanas, em Abril de 2002, quando José Eduardo dos Santos e “Kamorteiro”, o general da UNITA, apertam as mãos, com muitas palmas a assinalar o momento histórico. Para Samuel Chiwale, depois de tantos anos no mato da guerra, seguiu-se a adaptação à vida em Luanda, a reorganização do partido, as imagens das torturas ao pai e outros presos, e todas as diplomacias. É um processo lento, pois “a reconciliação nacional é tal qual uma casa que parte dos alicerces e se edifica pedra após pedra”, uma luta não acabada, portanto. 

Maturidade para as eleições

O que interessa é que a “guerra pertence ao passado” e já ninguém a deseja. Para Samuel Chiwale, que pretende contribuir para que novas versões da História venham ao de cima, “a devolução de Angola aos angolanos (negro, mestiço, branco, e todos os que quiserem adoptar Angola como sua pátria) será a compensação pelos sacrifícios consentidos.”

O ano de 1991 marcou o fim do monopartidarismo e da primeira guerra pós-independência. As tréguas não duraram muito. A UNITA acusa as eleições de fraudulentas e a guerra chega à capital em 1992. Apesar desse episódio traumático da primeira tentativa democrática, Chiwale acha que hoje a maturidade é outra e acredita na inteligência do povo, que já não pode ser calado e que consegue classificar o momento vivido. “Há 15 anos atrás a consciência do angolano não estava tão desenvolvida. Hoje o angolano pensa na mudança, está frustrado com o sistema da governação. Viram que em 32 anos no poder, o MPLA não conseguiu satisfazer as necessidades do povo. Pode alegar o factor guerra, mas Angola tem áreas que nunca foram afectadas pela guerra e ali podia-se fazer a experiência de alguma governação do país.” Chiwale é optimista: “tenho confiança que todas as forças políticas do meu país têm hoje uma missão diferente”, reconhece maturidade nos políticos e na elite angolana, “e são as elites que fazem as políticas e elaboram as estratégias, a administração do país.” Quanto a opiniões sobre a campanha, só depois da mesma começar oficialmente, responde o mais-velho com um sorriso de quem prepara boas surpresas.


Publicado originalmente no Público, em 2008, e reproduzido no portal Buala.

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