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Os “danos colaterais” do joystick ou a alegada “guerra limpa”

O New York Times diz que teve acesso a 1.300 relatórios do Pentágono sobre ataques com drones, no Afeganistão, Síria e Iraque. O resultado arrasa a teoria da alegada “guerra limpa” e dos “ataques de precisão”. Artigo de José Manuel Rosendo, publicado em meu Mundo minha Aldeia
A 29 de Agosto um ataque com um drone matou 10 civis, incluindo 7 crianças. O alvo era um alegado membro do Estado Islâmico, que era afinal um técnico que trabalhava desde 2006 para uma organização com base nos Estados Unidos. Foto publicada em peoplesdispatch.org
A 29 de Agosto um ataque com um drone matou 10 civis, incluindo 7 crianças. O alvo era um alegado membro do Estado Islâmico, que era afinal um técnico que trabalhava desde 2006 para uma organização com base nos Estados Unidos. Foto publicada em peoplesdispatch.org

Desta vez não foi Julien Assange. Edward Snowden também não. A informação não tem origem num órgão de informação russo ou chinês. Nem cubano. Também não vem de fonte jihadista, nem do Irão, nem da “esquerda radical” – referência de sentido desqualificativo muito querida dos que rangem o dente perante evidências difíceis de desmontar. Não, neste caso a fonte é o prestigiado e americaníssimo New York Times (NYT) e vem apenas confirmar o que há muito se sabia através de outras fontes de informação.

O jornal norte-americano diz que teve acesso a 1.300 relatórios do Pentágono sobre ataques com drones, no Afeganistão, Síria e Iraque. O resultado arrasa a teoria da alegada “guerra limpa” e dos “ataques de precisão”, sempre anunciados pelos Estado Unidos desde que o presidente Barack Obama privilegiou esse tipo de arma nas guerras no Médio Oriente.

O NYT refere que nenhum destes 1.300 relatórios conduziu a acusações ou a sanções disciplinares para os militares envolvidos, apesar do resultado ter sido a morte de largas centenas de civis, incluindo muitas crianças. Muitos destes ataques basearam-se em informação deficiente e foram ataques prematuros.

Em cinco anos, os militares dos EUA realizaram mais de 50.000 ataques aéreos no Afeganistão, Síria e Iraque. Admitem ter matado “acidentalmente” 1.417 civis nos ataques na Síria e no Iraque desde 2014. No Afeganistão, os Estados Unidos reconhecem oficialmente a morte “acidental” de 188 civis desde 2018.

Para chegar a estes números e a estes relatórios, o NYT explica que teve de se envolver em diversos processos contra o Pentágono e o Comando Central do Exército dos EUA. Mas a juntar a tudo isto o jornal foi ao terreno – uma centena de locais bombardeados – tentar verificar a informação e a conclusão a que chegou é que os “danos colaterais” estão subestimados. As conclusões dos relatórios assentam em “confirmações enviesadas” e em probabilidades. Muitos relatos de bombardeamentos com vítimas civis foram rejeitados com o argumento de que os vídeos não mostravam corpos nos escombros e não permitiam tirar conclusões.

Muitas vezes, a informação deficiente que determinava os ataques com drones, permitia que pessoas a correr num local bombardeado fossem identificadas como combatentes do Estado Islâmico e não como socorristas a tentarem chegar às vítimas, ou que simples motociclistas a deslocarem-se em simultâneo fossem considerados agentes de um ataque iminente.

Os militares norte-americanos ignoravam, por exemplo, que em tempo de Ramadão, muitos muçulmanos dormem durante a tarde, para melhor passar o tempo de jejum e também para fugir ao calor. Um casa vigiada, que aparenta estar vazia, pode abrigar várias famílias. Imagens de fraca qualidade ou tempo insuficiente de vigilância dos locais-alvo deram origem a ataques mortais.

Apesar da Lei da transparência das administrações, o NYT diz que encontrou opacidade e impunidade. O Pentágono diz que os erros de identificação representam apenas 4% das vítimas civis, mas o NYT contrapõe que tiveram um papel importante em 17% dos incidentes e causaram quase um terço das vítimas (mortos e feridos). O jornal sublinha que, deste trabalho, o que emerge é uma instituição – o exército norte-americano – que aceita a inevitabilidade dos “danos colaterais”. Uma conclusão depois de citar o porta-voz do CENTCOM: “mesmo com a melhor tecnologia do mundo, ocorrem erros, seja por desinformação ou por interpretação incorrecta da informação disponível”.

A guerra dos drones é silenciosa mas terrivelmente letal. Não adianta olhar para o céu à procura de sinais, porque a morte há-de chegar sem anúncio prévio, comandada por um joystick a centenas ou milhares de quilómetros de distância. Quem carregou no botão ainda terá tempo de ir jantar em casa com a família. Afinal, foi apenas mais um dia no escritório.

O último exemplo chegou a 29 de Agosto, já com os militares dos Estados Unidos quase fora do Afeganistão e depois do ataque do Estado Islâmico, 3 dias antes, que provocou a morte a quase 200 pessoas, incluindo 13 militares norte-americanos. O Presidente Joe Biden disse não perdoar e prometeu retaliação. Na resposta, os Estados Unidos utilizaram um drone para atacar um alegado membro do Estado Islâmico que, veio a saber-se, não tinha nenhuma relação com a organização. Era afinal um engenheiro que trabalhava desde 2006 para uma organização com sede na Califórnia. Morreram 10 civis, incluindo 7 crianças. Pior teria sido difícil. A desculpa chegou a seguir: “erro trágico”.

É verdade que, na guerra, vale tudo, por muito que digam que não. Até “danos colaterais”, sem que ninguém seja responsabilizado. Mas é também neste “vale tudo” que se joga, e define, a legitimidade dos envolvidos. E por muito que se reconheçam os erros ou se apresentem desculpas, a memória daqueles que perdem pessoas próximas regista os factos, e as consequências desse registo perduram no tempo.

Artigo de José Manuel Rosendo, publicado em meu Mundo minha Aldeia

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