Nas últimas semanas regressaram em forma as marchas do orgulho LGBTI+, com a mobilização a bater recordes em relação às marchas de antes da pandemia. E a cobertura geográfica também não parou de crescer, com novas cidades a desfilarem sob a bandeira arco-íris. O Esquerda.net falou com Fabíola Cardoso, fundadora do Clube Safo e ativista da causa LGBTI+ há várias décadas, que esteve envolvida na realização das primeiras marchas do orgulho em Portugal, sobre o que mudou nas mentalidades e na composição deste movimento que considera ser "o que mais tem contribuído para mudar a sociedade nos últimos anos".
Este ano as marchas do orgulho têm batido recordes na mobilização. Como explicas esse fenómeno de participação na causa LGBTI+?
A causa LGBTI+ é, e bem, uma causa que chega a cada vez mais pessoas, porque é fácil de entender que se trata de um assunto essencial para a democracia e a liberdade. Que cada pessoa possa ser quem é, livremente e amar quem ama, em segurança é uma condição essencial para todes! Em especial para as pessoas mais jovens, que já não pactuam com o medo e o silenciamento. Muito pelo contrário, exigem as mudanças reais que lhes garantam a possibilidade de um dia a dia com melhores condições de vida. O fim do confinamento causado pelo Covid e a consequente vontade de voltar aos atos coletivos também deu uma ajuda, na minha opinião.
Além da energia da juventude, o que trouxe esta nova geração ao movimento?
A chegada de novas gerações, com acesso a outra informação e formação, alarga a sigla e amplifica a luta. Termos como Pansexual ou Pessoa Não Binária fazem parte, não só da terminologia usada pelas mais novas, mas também das suas vivências pessoais e coletivas. A sigla do arco íris cresce, abrangendo mais pessoas e aprofundando a reflexão sobre as diferentes componentes da sexualidade humana: orientação sexual, identidade e expressão de género e características sexuais.
Há também uma maior consciência da relação entre a luta LGBTI+ e outras, como por exemplo o feminismo, o antiracismo, o acesso a cuidados de saúde universais e inclusivos ou a condições de trabalho dignas. A interseccionalidade das lutas, a sua capacidade de reforço mútuo é fundamental para responder a ideologias e práticas que procuram dividir para mais facilmente controlar.
Sou bastante otimista sobre a evolução deste que tem sido o movimento social que mais tem contribuído para mudar a sociedade nos últimos anos, mesmo face aos avanços de uma extrema direita populista e LGBTI+fóbica a nível nacional e internacional. As vidas e as lutas LGBTI+ são vacinas poderosas contra esses retrocessos civilizacionais.
Fabíola Cardoso. Foto de Ana Mendes.
A cada ano cresce também o número de cidades portuguesas a organizar estas marchas do orgulho, incluindo algumas onde ainda reina o conservadorismo. Há 30 anos isto seria impensável?
É indispensável que o número de cidades com Marcha do Orgulho continue a aumentar. As pessoas LGBTI+ existem em todos os locais do nosso país e não apenas em Lisboa ou no Porto. E não existem só em Junho, mas durante todo o ano!
Fizemos um grande caminho desde a primeira Marcha, em Lisboa, nas temos ainda muito que andar até chegar à igualdade real vivida no trabalho, nas escolas, no acesso à saúde ou habitação. Se essa igualdade ainda é uma miragem em Santarém, a apenas 80Km de Lisboa, imaginemos como será difícil em Vila Real. O grande desafio para os próximos 30 anos será alargar a possibilidade de uma vivência queer a ambientes rurais e não apenas às maiores cidades! A diversidade sexual é um valor a cultivar com carinho também no campo.
Como é que essa participação nas marchas pode transformar-se em ativismo organizado no dia a dia?
Seria desejável que da organização das Marchas nascessem associações e coletivos capazes de assegurar uma resposta de proximidades às pessoas LGBTI+ nos múltiplos locais onde há Marchas. Ativistas organizados que pudessem depois questionar as instituições locais com responsabilidades no combate às desigualdades e discriminaçoes, nomeadamente escolas, poder local, saúde.... E contribuir para a criação de uma rede nacional de resposta às comunidades queer.
Será também necessário que a colaboração e articulação entre as várias Marchas seja melhorada. A net e as suas ferramentas poderão ser aliados poderosos nestes processos de agregação de vontades e disponibilidades.