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Lingui – Os Laços Sagrados: O corpo e a liberdade de escolha

O último filme do argumentista e realizador Mahamat-Saleh Haroun, exibido no ano passado em Cannes e agora nas nossas salas de cinema, traz uma história de solidariedade feminina. Por Paulo Portugal.
Lingui - Os Laços Sagrados (Leopardo Filmes)

Sim, o título, ‘Lingui’, significa na cultura do Tchad, o tal ‘laço sagrado’, a relação inquebrantável de ajuda mútua capaz de solucionar todos os problemas. Só que a leitura ‘sagrada’ que esse vínculo motiva para a cultura e religião (e até a lei) daquele país da África central, acaba por ser bem diversa quanto a questão do aborto é aflorada. Aliás, é essa mesma comunidade muçulmana que está ainda muito longe de assegurar a proibição da prática de mutilação genital.

O que importa é que há uma valente história de solidariedade feminina em Lingui, o último filme do argumentista e realizador Mahamat-Saleh Haroun, natural do Chad, mas a viver em França desde a guerra civil nos anos 80. O filme foi exibido no festival de Cannes do ano passado e pode agora ser descoberto nas salas de cinema do nosso país. Aliás, este autor africano é ‘amigo’ do festival, recebendo vários filmes seus, sempre aflorando temas da sua terra natal. Seja a guerra civil no Tchad, em Un homme qui cris, em 2010, seja a liberdade artística, em Grigris, em 2013, ou até as sequelas do regime ditatorial em Hissein Habré, une tragédie tchadienne, em 2016.

Em Lingui temos uma história que grita igualdade. Amina (Achouackh Abakar Souleymane) é uma mãe solteira que cedo conheceu o lado mais rude da vida. Ela estripa pneus para retirar o aro metálico com que produz vistosos cestos que transporta à cabeça e vende na feira. É mesmo o rosto dela transpirado, mas ainda assim sorridente, com que Haroun abre este filme sobre as várias leituras da expressão ‘lingui’. Mesmo que recuse qualquer tipo de miserabilismo. O mesmo sorriso que será apagado quando percebe que sente a filha Maria (Rihane Khalil Alio) de 15 anos está grávida, o que provoca a consequente expulsão da escola. A justificação não podia ser mais clara: “não é bom para a nossa imagem”, como sublinha a professora. É aí que tal  ‘laço sagrado’ gera um nó em redor dessa falta de liberdade na escolha. “É o meu corpo! É o meu ventre!”, haverá de insurgir-se Maria quando a mãe lhe pergunta se sabe quem é o presumível pai.

Mesmo diante estes tortuosos indícios, percebe-se depressa que o cineasta de 61 anos não está interessado em pintar uma vinheta de melodrama social. Em vez disso, assina diversos quadros cromáticos tipicamente africanos, pontuados pela afirmação da beleza feminina. Mais do que o problema em si, prefere, parece-nos, aproximar-se de Amina e Maria (ou Mamita como insiste em a chamar carinhosamente, para o desespero dela), dos seus corpos e dos seus movimentos femininos. Seguramente, não da opção formal seguida por Eliza Hittman, há dois anos, em Never, Rarely, Sometimes, Always, uma produção americana a navegar no mesmo quadrante de uma jovem grávida que viaja para fazer um aborto ilegal. Tal como Autumn, também aqui não sabemos exatamente como Maria engravidou. O que sabemos é que também ela decide invocar o seu direito de escolha e optar pela interrupção.

 
Rihane Khalil Alio (Leopardo Filmes)

É precisamente a serenidade e a beleza como esse ato de resistência é transformado em imagens que nos permitem reconhecer o fortalecimento dos laços entre mãe e filha. Aliás, é quase sempre de branco que vemos Mamita. Como que a sublinhar uma pureza que ela deseja manter, apesar de tudo. Ou quando a vemos caminhar à distância, na ponte, mas em sentido inverso do tráfego da cidade. Mas sobretudo quando avança pela água para acabar com a sua sorte e acaba por ser salva por um grupo de jovens, numa cena de um encanto cinematográfico evocador de Mizoguchi. Ela que passará a vestir de cores mais escuras e mesmo de negro após concretizada a intervenção. Mas é sempre a singela beleza que irrompe da fotografia irrepreensível de Mathieu Giombini, colaborador habitual de Haroum (Expectations (2008), Hissein Habré (2016), A Season in France (2017)), que nos acompanha, e que nos devolve cenas marcantes, tanto da mãe como da filha, mesmo em momentos diferentes, em que a luz é cortada de forma a revelar rostos iluminados como verdadeiros halos.

Regressamos ao esboço de sorriso inicial de Amina e aos cestos com o arame que é extraído dos pneus cortados com uma lâmina. Não será esta uma evocação gestual da excisão? Ou quando dança na areia, como forma expurgar os seus demónios. O lingui acaba por se reencontrar entre Mãe e filha no final. Já depois de Amina aceitar ajudar a irmã e a sobrinha a não sofrer mutilação genital. Por fim, o olhar que tudo diz. Como na derradeira cena de Ladrões de Bicicletas (1948), de Vittorio de Sica, quando o filho dá a mão ao Pai. Mas já como iguais. Sim, é o lingui.


Artigo publicado no site Insider.pt

Sobre o/a autor(a)

Jornalista de cultura e cinema, autor do site insider.pt
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