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Eleições em Marrocos: grande derrota dos islamitas moderados

As eleições legislativas realizadas em Marrocos, esta quarta-feira, saldaram-se por uma fragorosa derrota do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD), islamita moderado, do primeiro-ministro Saadeddine Othmani. Por Jorge Martins
A União Nacional dos Independentes (RNI) ganhou as eleições em Marrocos, Aziz Akhannouch é o líder do partido e um dos homens mais ricos do país - Jalal Morchidi/Epa/Lusa
A União Nacional dos Independentes (RNI) ganhou as eleições em Marrocos, Aziz Akhannouch é o líder do partido e um dos homens mais ricos do país - Jalal Morchidi/Epa/Lusa

Uma monarquia semiconstitucional

Marrocos foi, durante muito tempo, um regime autoritário, uma monarquia quase absoluta, em especial durante o longo reinado de Hassan II. Quando o atual monarca, Mohammed VI, subiu ao trono, em 1999, houve algumas esperanças de que levasse a efeito uma verdadeira abertura política, mas tal não se confirmou, apesar de se ter verificado algum abrandamento da repressão.

Contudo, em 20 de fevereiro de 2011, os ecos da Primavera Árabe chegaram ao reino, tendo-se registado, nesse dia, grandes manifestações de protesto, que foram crescendo nos dias seguintes, exigindo reformas democráticas. Duas semanas depois, percebendo que estava em causa o seu trono, o rei convocou uma comissão para elaborar um projeto de nova Constituição, que seria submetido a referendo no dia 1 de julho. Apesar de alguns apelos ao boicote, este foi aprovado por esmagadora maioria.

Entre as alterações mais importantes, estão a nomeação obrigatória, pelo monarca, do líder do partido mais votado para formar governo, e a sua impossibilidade de dissolver o Parlamento, prerrogativa que passou para o primeiro-ministro, a possibilidade de a instituição parlamentar decretar amnistias (algo até então reservado ao rei), bem como a consagração da língua berbere como oficial, a par do árabe. Apesar da perda de poderes ditada pelo novo texto constitucional, o monarca continua a ser uma figura chave da política marroquina, com vastos poderes executivos, pelo que se pode considerar o país como uma monarquia semiconstitucional.

Em novembro desse ano, realizaram-se as primeiras eleições de acordo com o novo texto constitucional, ganhas pelos islamitas moderados do PJD.

Um Parlamento bicameral

O reino possui um Parlamento bicameral. Este é constituído por:

  1. Câmara dos Representantes, composta por 395 membros, eleitos por sufrágio universal, direto e secreto, através de um sistema de representação proporcional, para um mandato de cinco anos. É dela que depende o governo.

  2. Câmara dos Conselheiros, composta por 120 membros, dos quais 72 eleitos nas 12 regiões do país por sufrágio universal, direto e secreto, e os restantes 48 numa base corporativa, pelos representantes de associações empresariais, sindicais e profissionais. O seu mandato é de seis anos (nove, antes da Constituição de 2011).

Uma controversa reforma eleitoral

A revisão da lei eleitoral, levada a efeito nesta legislatura, revestiu-se de alguma controvérsia, já que tende a prejudicar o PJD e a provocar uma maior fragmentação parlamentar, o que é do interesse da monarquia, a quem interessa um Parlamento fraco.

A eleição é feita em dois níveis territoriais. Assim, 305 deputados são eleitos a nível local, em círculos cuja magnitude varia entre dois e seis mandatos, através de um quociente eleitoral simples, existindo uma cláusula-barreira nacional de 6%. Antes, e como é normal naquele sistema, a quota era calculada através da divisão do número de votos válidos pelo número de lugares a prover. Porém, a nova legislação estipula, de forma inusitada, que o numerador passa a ser o número de eleitores inscritos na circunscrição, o que desfavorece o PJD.

Por seu turno, os restantes 90 membros (dos quais 60 são, obrigatoriamente, mulheres, e 30 para pessoas menores de 40 anos, sendo que, a partir destas eleições, 15 destes são também atribuídos ao sexo feminino). A cláusula-barreira de 3% dos votos foi abolida pela referida revisão da lei eleitoral.

Administrativamente, o país divide-se em 12 regiões, dotadas de conselhos regionais diretamente eleitos, de acordo com o princípio da regionalização inscrito na Constituição de 2011. Dessas, um situa-se totalmente no ocupado Sahara Ocidental, outra quase totalmente e uma terceira parcialmente.

Após as reformas constitucionais de há dez anos, a população viveu alguns momentos de esperança, mas esta rapidamente deu lugar à desilusão. As desigualdades sociais continuam a ser enormes e a economia continua débil, assentando, essencialmente, no turismo, nas pescas e na mineração. A pandemia da COVID-19, que afetou, fortemente, o setor turístico, prejudicou gravemente a economia marroquina. E se, numa primeira fase, o governo geriu bem a situação pandémica, tal não aconteceu nas vagas seguintes.

A nível internacional, a ocupação do Sahara Ocidental continua a ser condenada por vastos setores da comunidade internacional, apesar de Trump ter reconhecido a soberania de Marrocos sobre o território em troca do estabelecimento de relações diplomáticas entre o reino e Israel. Esse acordo levou ao agravamento das tensões, com a Frente Polisario a romper o cessar-fogo que vigorava desde 1991 e ao corte de relações com a Argélia, apoiante, desde sempre, dos independentistas saharauis.

Os resultados eleitorais

Os resultados provisórios de que dispomos apenas nos dão o número de eleitos na Câmara dos Representantes, não havendo informação disponível sobre as percentagens obtidas pelos diferentes partidos concorrentes.

Depois de, em 2016, ter sido o mais votado, obtendo 122 lugares, sofreu uma verdadeira hecatombe, ficando reduzido a 13 assentos parlamentares e a oitava força política. O PJD pagou, assim, “com língua de palmo”, a desilusão popular face à governação.

Ao invés, a maioria dos seus parceiros de governação acabaram por beneficiar dessa penalização daquele que era o maior partido do governo e tiveram subidas significativas.

A força política mais beneficiada foi a União Nacional dos Independentes (RNI), da direita liberal e pró-monárquica, que venceu as eleições, ao obter 102 lugares, quando, antes, não fora além de 37. Assim, nos termos constitucionais, o seu líder, Aziz Akhannouch, atual ministro da agricultura, empresário e um dos homens mais ricos do país, será o próximo primeiro-ministro.

Em segundo lugar, ficou o Partido da Autenticidade e da Modernidade (PAM), de Abdellatif Ouahbi, principal formação de oposição, que baixou a sua representação de 102 para 87 lugares. Trata-se de um partido que se afirma liberal e progressista, mas que os seus adversários acusam ser uma criação do Palácio real.

O terceiro posto foi para o Partido Istiqlal (da Independência), de tendência nacional-conservadora, o mais antigo do país. Liderado por Nizar Baraka, fazia parte da oposição e registou uma forte subida, passando de 46 para 81 parlamentares.

Na quarta posição ficou a social-democrata União Socialista das Forças Populares (USFP), encabeçado por Driss Lachgar, que, apesar de integrar o executivo, passou de 20 para 34 cadeiras no Parlamento.

Seguiu-se outro partido governamental, o Movimento Popular (MP), liberal-conservador e agrário, abertamente pró-monárquico, liderado por Mohand Laenser, ganhou um lugar: obteve 28, contra 27 há cinco anos.

Já o Partido do Progresso e do Socialismo (PPS), da esquerda, antigo partido comunista, sob a direção de Nabil Benabdallah, registou uma subida apreciável, quase duplicando a sua representação parlamentar, que passou de 12 para 22 lugares, mesmo tendo feito parte do governo cessante.

A última força política do executivo, a União Constitucional (UC), da direita liberal e monarquista, liderada por Mohammed Sajid, perdeu apenas um eleito, vendo a sua representação passar de 19 para 18 membros.

Depois do PJD, de que já falámos, veio o monárquico e conservador Movimento Democrático e Social (MDS), com cinco lugares, a Frente das Forças Democráticas (FFD), da esquerda socialista, que obteve três, e, por fim, a Federação da Esquerda Democrática (FGD), social-democrata, e o Partido Socialista Unificado (PSU), da esquerda nacionalista, ambos com um representante.

A afluência às urnas foi de 50,4%, apesar de tudo uma boa subida face a 2016, em que se quedou nos 43,0%.

Artigo de Jorge Martins

Sobre o/a autor(a)

Professor. Mestre em Geografia Humana e pós-graduado em Ciência Política. Aderente do Bloco de Esquerda em Coimbra
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