Há cerca de duas semanas, as duas principais organizações financeiras multilaterais, o FMI e o Banco Mundial, pediram ao G20 a suspensão temporária da dívida dos países mais pobres para que estes pudessem enfrentar a pandemia. A proposta de “alívio”, apoiada por este grupo de países industrializados e emergentes, beneficiaria os 76 países devedores – a maioria deles africanos – da Associação Internacional de Desenvolvimento, dependente do Banco Mundial e responsável desde 1960 por fornecer empréstimos em condições mais favoráveis para os países mais pobres.
Na América Latina e Caraíbas, uma das regiões do mundo onde a dívida pública mais pesa, a situação financeira é preocupante. O cenário agravou-se ainda mais nesta emergência sanitária, já que os governos estão a levar os cofres do Estado ao limite. Na Argentina, o país mais endividado do continente, as contas não fecham e os dólares não são suficientes. Por isso mesmo, propôs-se a suspensão temporária da sua dívida externa e uma grande reestruturação dos seus juros. Com uma obrigação financeira que representa 89,4% do seu PIB, segundo dados do Ministério das Finanças do país em 2019, o Ministro da Economia afirmou o seguinte há alguns dias: “hoje, a Argentina não pode pagar nada”.
Segundo dados da Comissão Económica para a América Latina e Caraíbas (CEPAL), em média, a dívida da região é de cerca de 43% do seu Produto Interno Bruto. Embora este número não seja elevado comparativamente ao de muitos países desenvolvidos, representa ainda assim um problema sério para as economias periféricas, fracas e dependentes dos ciclos financeiros globais. Hoje, em plena crise do coronavírus, aumentar a dívida soberana pioraria as condições de vida da população, agora especialmente vulnerável devido à informalidade do trabalho, à diminuição dos Estados Sociais e às desigualdades.
Uma dívida de longo prazo
Decorriam os anos 20 do século XIX, quando, em pleno processo de independência contra Espanha e Portugal, os países da América Latina solicitaram o seu primeiro empréstimo. Entre outras coisas, serviu para derrotar as potências colonizadoras que há mais de três séculos se encontravam nos seus territórios.
Segundo o especialista em História Económica da América Latina, Carlos Marichal, a emancipação representou o princípio do endividamento que se estende até aos dias de hoje. Seria a banca de Londres, na época o principal centro financeiro, quem acabaria por financiar esse pedido. Após pouco mais de um século, duas guerras mundiais e a reorganização do mundo, surgia o Fundo Monetário Internacional, que se viria a tornar um dos principais credores da região até hoje.
O endividamento ia e vinha, até que nos anos 70 os países da América Latina, a maioria deles ditaduras, pediram empréstimos como nunca antes visto. O regabofe financeiro levou à “década perdida da América Latina” nos anos 80, em que a dívida atingiu o pior limite da sua história e as organizações financeiras multilaterais começaram a impor políticas de ajuste estrutural, marcadas pelo chamado consenso de Washington: corte de investimentos públicos, privatização de empresas públicas, flexibilização das condições de entrada de investimento direto estrangeiro e desregulamentação do mercado de trabalho interno, entre outras. Esta acumulação de dívida e de neoliberalismo continua a afetar os processos económicos dos países e, de certa maneira, a definir o contexto político e a vida dos seus povos.
Economias impossíveis no Pós-COVID-19
Há um ano, o relatório anual da CEPAL já previa uma desaceleração generalizada na região e no mundo para 2020. A pandemia agravou esse cenário e os prognósticos não são animadores.
Em “apenas três meses serão perdidos 195 milhões de empregos”, calcula a Organização Internacional do Trabalho. Soma-se a isso uma contração na economia de mais de cinco pontos percentuais no continente, que acabará por deixar cerca de 35% da população em situação de pobreza.
A crise do coronavírus põe em xeque as economias da América Latina, sobretudo devido à sua forte dependência do sistema global de exportação, especialmente face à China e aos Estados Unidos, como explica Alfredo Serrano, economista e diretor do Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica (CELAG). “Além disso, são economias extremamente financeirizadas, onde o peso da dívida é relevante”, acrescenta.
Quanto aos direitos sociais, os Estados têm pouca capacidade para garantir as necessidades básicas da população e enfrentar esta situação de emergência sanitária, “são Estados sociais em miniatura”, especialmente aqueles que recentemente implementaram programas neoliberais.
Segundo vários analistas inquiridos, outro fator-chave é a dependência das “economias emergentes” dos ciclos financeiros internacionais. Quando os tempos não são favoráveis, os países periféricos ressentem-se. Os fundos de investimento provêm das economias de maior risco, nas quais haviam investido antes pelo seu potencial e capacidade produtiva e apostando em ativos mais seguros. Nesse caso, o dólar sobe e a moeda nacional deprecia ainda mais, o que gera inflação e desvalorização, que por sua vez se traduz em empobrecimento.
O endividamento massivo do quotidiano
As dívidas públicas assumidas pelos Estados têm algo que ver com as dívidas contraídas pelos lares de cada um? A pobreza e os programas de ajuste produzem endividamento social?
Para as investigadoras e integrantes do movimento feminista argentino Ni una Menos, Verónica Gago e Lucía Cavallero, hoje em dia é impossível não ligar o endividamento que os Estados assumem com o da vida quotidiana que, para além disso, afeta de forma diferente determinados corpos e territórios. “O endividamento de um estudante americano não é o mesmo de uma mulher desempregada na Argentina.”
Segundo as autoras, o empobrecimento que se generalizou nos últimos tempos em alguns países da América Latina provocou um enorme endividamento para as pessoas. É o caso da Argentina, onde a nova dívida soberana contraída em 2018 com os programas de ajuste deixou quase 40% da população em situação de pobreza, fazendo com que milhares de pessoas se endividassem. “Nos últimos tempos vimos que, embora as pessoas tivessem trabalho, o salário não era suficiente para a reprodução da vida e, por isso, tinham que pedir empréstimos”, explicam ao Ctxt. Mas, ao contrário de outros momentos históricos de crise e pobreza, o mal-estar não se traduzia em protestos. Segundo a sua investigação, o endividamento generalizado “amortiza a crise”, as dívidas são um modo de gestão em que nada explode, mas tudo implode nos corpos e dentro das casas.
“Ainda que a população tivesse vivido em situações de necessidade, não chegava ao ponto de explodir nas ruas na forma de reivindicações coletivas como em 2001”, afirmam. As investigadoras associam-no à maneira como os sistemas financeiros operam: “a dívida é um grande mecanismo de obediência, porque promete a solução do problema no futuro e faz com que cada um enfrente individualmente o aumento das taxas e ocupe o seu tempo a trabalhar cada vez mais para ganhar menos dinheiro”.
Nesse sentido, mulheres e pessoas dissidentes sexuais, já por si em piores condições de trabalho e também dedicadas ao trabalho não remunerado, como cuidar de crianças e idosos ou limpar a casa, são as que mais sofrem. “Normalmente, os estereótipos de género fazem com que sejam as mulheres a sustentar a economia doméstica em tempos de crise e isto leva à perpetuação de situações de violência. É o caso de mulheres que, devido a esse endividamento, não podem cortar laços com o seu parceiro”, alertam as autoras. Além disso, muitas vezes essa situação de precariedade e endividamento origina problemas de saúde, esgotamento, ansiedade e piora as relações pessoais com a sua família e o seu meio social.
Dívidas em emergência
Há um ano, o Equador opôs-se ao pacote de ajustes que o FMI pedia em troca de dinheiro emprestado. Na Argentina, protestava-se nas ruas contra os programas de ajuste, que se traduziram num aumento considerável do custo de vida. A macroeconomia e as economias domésticas ressentem-se cada vez mais e as dívidas não parecem ser grande ajuda para a gestão da crise.
Agora, no meio de uma pandemia e uma grave recessão generalizada, de forma a amenizar a situação, os governos são confrontados com duas opções. O não-pagamento da dívida seria uma possibilidade a ter em conta, porém, segundo os especialistas, em vez de beneficiarem os países devedores, as decisões unilaterais tendem a prejudicá-los. Outro caminho pressuporia que os bancos centrais de cada país, com capacidade suficiente para imprimir papel-moeda, pagassem a dívida, mas isso geraria inflação e uma forte desvalorização das moedas nacionais. Dessa forma, parece que, no presente, as regras do jogo levam a um só caminho, o da negociação com os credores.
Nesse sentido, o especialista independente da ONU em Dívida Externa e Direitos Humanos, Juan Pablo Bohoslavsky, assinala a necessidade de alterar os planos de pagamento da dívida para permitir “a sustentabilidade financeira, social e sanitária”. A diretora da CEPAL, Alicia Bárcena, fez referência ao mesmo: “os líderes do G-20 devem pressionar as organizações multilaterais para que estas aliviem a dívida de países altamente endividados, através de adiamentos ou perdões” e convida à cooperação e solidariedade internacionais.
Outros peritos alertam que a não-realização de reestruturações profundas não beneficiaria nem os países credores nem os devedores, porque se os problemas económicos se agravarem e a dívida continuar a pesar, será difícil pagar os empréstimos. A linha de “sustentabilidade” parece ser a do FMI e do Banco Mundial, ainda que não tenham definido exatamente em que consistirá essa “ajuda extraordinária”, nem como será feita a gestão dos empréstimos na América Latina.
Alfredo Serrano, diretor do CELAG, vê com algum receio os anúncios das organizações multilaterais e afirma que, na América Latina em particular, não se estaria a aliviar a situação financeira dos países, mas sim a criar novos endividamentos, como no Equador, Colômbia, Paraguai e Bolívia que, há algumas semanas, assinaram acordos com o FMI. Na ausência de medidas para a região, o CELAG propôs à ONU e às organizações multilaterais o perdão da dívida latino-americana, proposta à qual se juntaram ex-presidentes progressistas, políticos e figuras públicas como Rafael Correa, Evo Morales, Dilma Rousseff, Fernando Lugo, José Luis Rodríguez Zapatero ou Ernesto Samper.
Segundo o Centro, o perdão é uma “solução pragmática” e seria um mecanismo de financiamento direto. Ao não pagar a dívida externa, os governos podem comprar equipamentos sanitários para enfrentar a crise. “Em situações excecionais, não podemos exigir que os países adotem políticas efetivas de saúde pública para enfrentar a atual pandemia e, ao mesmo tempo, esperar que continuem a cumprir com os níveis atuais de endividamento externo", afirma Alfredo Serrano.
O perdão da dívida não é algo inédito, recorda Serrano. Existem vários precedentes na história logo após guerras ou crises severas. O exemplo clássico é o perdão da dívida alemã após a Segunda Guerra Mundial. Mas não só; em 2005, o G8, através da Iniciativa Multilateral de Alívio da Dívida, perdoou a dívida a 18 países e, após a crise de 2008, tiveram lugar reestruturações importantes.
Andrea A. Gálvez é antropóloga e jornalista. Escreve em vários meios de comunicação social como a revista ctxt, El Salto Diário, Tiempo Argentino e Letras Libres.
Artigo publicado em sete de maio de 2020 na revista ctxt. Tradução de Karim Quintino para o Esquerda.net.