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Cristiano Lima e os jornalistas contra Salazar

Foi um dos repórteres mais brilhantes da sua geração, dramaturgo, dirigente sindical e associativo e militante antifascista. Mas o 50º aniversário da sua morte passou despercebido. Por Miguel Pereira.
Cristiano Lima [Vida Mundial Ilustrada, 3/1/1946, p.2]
Cristiano Lima [Vida Mundial Ilustrada, 3/1/1946, p.2]

Passou despercebido o recente 50º aniversário da sua morte.

Mas ele foi um grande profissional do jornalismo em Portugal. Porventura, “um dos repórteres mais brilhantes da sua geração”.1

Salientou-se também como militante anarquista, dirigente sindical e opositor à ditadura de Salazar. E ainda como dramaturgo.

Foi presidente da associação mutualista «Casa da Imprensa».

Cristiano Lima era o seu nome.

No jornal A Batalha

Cristiano Lima trabalhou 44 anos na redação do Diário de Notícias. Mas isso foi depois.

Onde ele abraçou o ofício foi no jornal sindicalista A Batalha (fundado em 1919).

Foi um dos “vários jornalistas profissionais que se fizeram” nesse jornal, ao lado de nomes como Mário Domingues, Artur Portela ou David de Carvalho.2

Cristiano Lima foi aliás o último chefe de redação do diário A Batalha. Era ele que exercia essa função “à data da destruição do jornal” pela ditadura militar, em 1927.3

Desempenhou esse papel numa fase de cerco repressivo. A seu lado, como diretor do jornal, estava Mário Castelhano, o secretário-geral da CGT que acabaria morto no campo de concentração do Tarrafal.

No início de Fevereiro de 1927, levantou-se no Porto uma insurreição armada contra a ditadura. Em Lisboa A Batalha tentou furar a censura para informar sobre o curso dos combates. E a ditadura não perdoou: mandou a polícia assaltar a redação, “sendo presas todas as pessoas que se encontravam nela, redatores, tipógrafos e outros visitantes ocasionais, no todo trinta e três pessoas”, segundo o relato de um dos redatores, David de Carvalho.4

A insurreição já baqueava no Porto mas saía à rua em Lisboa. No dia seguinte, uma força revoltosa libertou os presos da Batalha.

Vitória fugaz. A ditadura conseguiu sufocar a revolta tanto em Lisboa como no Porto. E o diário A Batalha quedou suspenso quase um trimestre. Retomou a publicação no 1º de Maio, mas não chegou ao fim do mês.

David de Carvalho recordou assim o momento final:

na manhã de 27 de Maio [de 1927], quando se fechava sem glória o primeiro ano da ditadura reacionária, pudemos presenciar pessoalmente a morte trágica desse jornal”, a “sua destruição a golpes de picareta” por um ”bando de malfeitores”, protegidos por “cordões de polícia armada, pessoalmente comandada pelo tenente-coronel Ferreira do Amaral”.5

O jornal sindicalista A Batalha, do qual Cristiano Lima foi chefe de redação [A Batalha, 23/2/1919, p.1]
O jornal sindicalista A Batalha, do qual Cristiano Lima foi chefe de redação [A Batalha, 23/2/1919, p.1].

Foi depois destes acontecimentos que Cristiano Lima integrou a redação do Diário de Notícias. E aí se manteve até ao final da vida.

Nunca mais voltou a ter liberdade de expressão. Para ele, como tantos jornalistas do seu tempo, a ditadura nunca acabou: ele morreu dois anos e meio antes do 25 de Abril.

Quanto à A Batalha, a ditadura permitiu que renascesse como semanário, em 1930. Mas essa abertura não durou mais de dois meses. O jornal sindicalista foi de novo encerrado e já só conseguiu reaparecer na clandestinidade, depois da revolta de 18 de Janeiro de 1934, mas não sobreviveu à repressão da “Polícia de Vigilância e Defesa do Estado” (a designação inicial da PIDE).

Seria preciso esperar pelo 25 de Abril para rever A Batalha nas bancas de jornais. E persiste hoje como um jornal bimestral de “expressão anarquista”.

União Anarquista Portuguesa

Cristiano Lima era um conhecido anarquista6.

Em 1923, participou aliás na fundação da «União Anarquista Portuguesa», numa conferência realizada em Alenquer7. Esta organização terá chegado a reunir cerca de 600 militantes8 e dinamizou o movimento anarquista neste país, até ser destroçada pela repressão da ditadura militar a partir de 19279.

Na apologia do anarquismo por Cristiano Lima, ressalta o prefácio que escreveu para o livro A felicidade de todos os seres na sociedade futura, de António Gonçalves Correia (1923).10

Aí defendeu que, “por muito que pese aos pessimistas e a alguns céticos, o anarquismo há de escrever na história humana, talvez, as suas mais belas páginas”.

A seu ver, “a sociedade humana que tem vivido sob o arbítrio dos interesses duma minoria, terá fatalmente de se orientar na ciência e guiar-se pelas suas leis”.

Quando é que “a ciência substituirá o empirismo”, e “a justiça a iniquidade”, e “a liberdade a tirania? Eis uma interrogação a que só poderão responder os próprios homens. Da sua vontade depende a alvorada duma vida livre”.11

Mas para lá da sua defesa do ideal anarquista, foi na organização sindical e mutualista dos jornalistas que o ativismo de Cristiano Lima mais se evidenciou.

A Casa da Imprensa e o Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa

Em 1924 houve um renascimento da organização de classe dos jornalistas de Lisboa.

A velha Associação dos Profissionais da Imprensa tinha sido fundada ainda no tempo da monarquia, em 1905. Tinha um carácter híbrido, simultaneamente sindical e mutualista. E estava enquistada numa postura mais conservadora. Os anarquistas Cristiano Lima e o seu camarada Mário Domingues estavam excluídos de ser sócios, por exemplo.

Mas um movimento renovador conquistou então a velha associação e transformou-a num novo Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa e no que é hoje a associação mutualista Casa da Imprensa.

No espaço de apenas um ano, o sindicato duplicou o número de sócios, conseguiu comprar uma sede e concretizou uma primeira versão do que é hoje a Carteira Profissional de Jornalista.

Numa altura em que o movimento sindical português sofria sérias divisões, o novo sindicato dos jornalistas de Lisboa marcou a diferença por conseguir reunir trabalhadores das mais diversas ideologias.

Cristiano Lima foi um dos ativistas que contribuíram para essa renovação, na qual se destacaram vários colaboradores do jornal A Batalha, como Jaime Brasil, Artur Portela, Ferreira de Castro, Alfredo Marques e Julião Quintinha.

Cristiano Lima chegou a ser vice-presidente da direção desse antigo sindicato dos jornalistas.

Mas em 1926 veio a ditadura militar e não gostou deste sindicato livre de jornalistas livres.

Estamos a falar de um sindicato que foi três vezes encerrado pela ditadura:

1) temporariamente em Fevereiro de 1927, acusado de envolvimento na insurreição.

2) de novo temporariamente em Abril de 1929, acusado de ligações à Rússia comunista.

3) e definitivamente, no final de 1933, por recusar submeter-se à tutela estatal e patronal, no sistema corporativo de Salazar.

Este antigo Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa foi porventura o primeiro sindicato a recusar o Estatuto do Trabalho Nacional de cariz fascista, imposto pela ditadura em 1933.

Vários dos elementos deste sindicato foram aliás presos políticos antifascistas, como Jaime Brasil, Julião Quintinha e João Paulo Freire.

Em 1931 os jornalistas de Lisboa tiveram mesmo a ousadia de eleger um preso político como presidente da sua direção: Gustavo Matos Sequeira, um autor célebre pelos seus estudos sobre a história de Lisboa. E marcaram depois presença na oposição a Salazar.

Na resistência antifascista

A imprensa durante o regime de tipo fascista do chamado “Estado Novo” foi uma imprensa mutilada, sem liberdade de expressão. Mas não se confundam os jornalistas desse tempo com a ditadura.

Cristiano Lima é um exemplo de muitos jornalistas que estiveram contra o regime de Salazar.

Em 1934, ele foi um dos iniciadores de um importante foco de resistência cultural antifascista: o jornal O Diabo.

O jornal O Diabo, em cujo lançamento Cristiano Lima colaborou [O Diabo, 2/6/1934, p.1]
O jornal O Diabo, em cujo lançamento Cristiano Lima colaborou [O Diabo, 2/6/1934, p.1].

Em 1935, foi um dos oradores num encontro de uma centena de “jornalistas, professores e homens de letras” que reclamaram pela supressão da censura à imprensa.

Tratou-se na altura de um momento alto da oposição, realçado pelo então secretário-geral do PCP, Bento Gonçalves, no relatório que apresentou ao congresso da Internacional Comunista. Forçou até a ditadura a mobilizar um encontro de intelectuais seus apoiantes.12

Em 1945, Cristiano Lima foi um dos 21 jornalistas do Diário de Notícias que assumiram o seu apoio ao (MUD) Movimento de Unidade Democrática. Quase cem jornalistas de Lisboa deram na altura esse passo. E por sinal na “comissão central” do MUD lá estaria um dos antigos diretores do jornal A Batalha, o anarco-sindicalista e operário da construção civil Alberto Dias (que foi nessa altura preso pela PIDE).

Em 1949, Cristiano Lima deu a cara numa iniciativa da campanha de Norton de Matos: um protesto contra a prisão do prof. Rodrigues Lapa e do escritor Adolfo Casais Monteiro.

Encontro de intelectuais antifascistas no qual discursou Cristiano Lima [O Diabo, 3 de fevereiro de 1935, p.1]
Encontro de intelectuais antifascistas no qual discursou Cristiano Lima [O Diabo, 3 de fevereiro de 1935, p.1] .

Em 1952 e 53, colaborou pontualmente num jornal de cariz antifascista, o Ler, que logo acabou proibido pela censura.

Em 1956, e ao lado, entre outros, de Manuel Alpedrinha (antigo dirigente do PCP e ex-prisioneiro do campo de concentração do Tarrafal), Cristiano Lima foi um dos organizadores da homenagem ao jornalista democrata e ex-preso político Julião Quintinha.

Ao longo de quase toda a década de cinquenta, Cristiano Lima esteve ainda entre os mais assíduos colaboradores de um espaço de expressão cultural antifascista, a página literária semanal do jornal O Primeiro de Janeiro, do Porto. O responsável por esta página era então o anarquista Jaime Brasil, antigo colaborador da Batalha e do Diabo.

Dramaturgo

Outra faceta na biografia de Cristiano Lima é o seu trabalho literário, como dramaturgo, biógrafo e tradutor. Uma faceta que inaugurou em 1921, com uma “novela vermelha” de cariz anti-militarista que foi publicada pela secção editorial do jornal A Batalha.

No seu trabalho como tradutor avulta a sua contribuição à difusão em Portugal da literatura húngara. Traduziu e prefaciou uma antologia de contos húngaros. E traduziu também uma peça de teatro da atriz e escritora húngara Lili Hatvany, a qual acabou por ser proibida pela censura.

Como dramaturgo, Cristiano Lima teve uma peça representada no Teatro Nacional D. Maria II, em 1935, intitulada O Inimigo, e na qual abordou um tema que permanece muito atual: os banqueiros sem escrúpulos.

Depois de um longo interregno, Cristiano Lima conheceu algum sucesso em 1948 e 1949 com duas peças que subiram ao palco do antigo Teatro do Ginásio (que ficava na Rua Nova da Trindade, em Lisboa). E que o crítico literário João Pedro de Andrade inseriu no tipo de “teatro de crítica social”.13

Anúncio de uma peça de teatro de Cristiano Lima [Diário de Lisboa, 9 de julho de 1948, p.3]
Anúncio de uma peça de teatro de Cristiano Lima [Diário de Lisboa, 9 de julho de 1948, p.3].

Cristiano Lima explorou também o género biográfico em vários livros.

Durante a 2ª Guerra Mundial, escreveu duas biografias de figuras da aliança contra a Alemanha nazi: Anthony Eden (então ministro dos negócios estrangeiros da Grã-Bretanha), e Vladislav Sikorsky (chefe do governo polaco no exílio).

Publicou depois A vida amorosa dos homens célebres e Quatro calvários sentimentais, abordando figuras como Rousseau, Napoleão e Alexandre Dumas.

Publicou ainda, em parceria com Almeida e Sousa, uma História da Mentira Através dos Tempos – talvez uma boa leitura neste nosso tempo de fake news, em que tantos fazem descaso do valor da verdade e da informação verificada.

Cristiano Lima nasceu em Lisboa, a 24 de Dezembro de 1887 e nessa cidade faleceu no dia 28 de Novembro de 1971.

Texto de Miguel Pereira.

Notas:

1O Século, 29/11/1971, p.11

2Vieira, Alexandre (1950), Em volta da minha profissão, subsídios para a história do movimento operário no Portugal continental, Lisboa: edição do autor, p.116

3Baptista, Jacinto (1977), Surgindo vem ao longe a nova aurora... - Para a história o diário sindicalista A Batalha/1919-1927, Lisboa: Livraria Bertrand, p.182

4Carvalho, David (1977), Os sindicatos operários e a república burguesa, Lisboa: Edições Seara Nova, p.245

5ibidem, p.247

6Botelho, Adriano (1989), Memória & ideário (antologia de textos), Ponta Delgada: Direção Regional dos Assuntos Culturais, p.85; Fonseca, Carlos (1988), Para uma análise do movimento libertário e da sua história, Lisboa: Edições Antígona, p.55; Rates, Carlos (1929), O Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa e a neutralidade sindical, Lisboa: edição do autor, p.4

7A Capital, 20/03/1923, p.3; Rodrigues, Edgar (1981), A resistência anarco-sindicalista à ditadura – Portugal 1922-1939, Lisboa: Editora Sementeira, p.215

8Brandão, Raul (1984), Os operários, Lisboa: Biblioteca Nacional, p.285

9Sousa, Manuel Joaquim (1989), Últimos tempos de acção sindical livre e do anarquismo militante, Lisboa: Edições Antígona, pp. 96-105

10Texto de uma conferência realizada no 5º Congresso dos Trabalhadores Rurais, realizado em Évora, em 1922. Uma obra mencionada em Abreu, Carlos (1987), 100 anos de anarquismo em Portugal 1887-1897, Lisboa: Biblioteca Nacional, p.89

11Correia, Gonçalves (1923), A felicidade de todos os seres na Sociedade Futura, Escoural: Tipografia A Racional, p.4

12Gonçalves, Bento (1976), Bento Gonçalves, Porto: Iniciativas Editoriais, p.114

13Seara Nova, 17/09/1949, p.162

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