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50 anos das “Novas Cartas Portuguesas”

Maria Teresa Horta diz-se “perplexa” com a atenção que a obra tem atraído no estrangeiro. Ana Luísa Amaral diz que em Portugal continua a ser um livro “incómodo” porque “fala contra o racismo, contra o sexismo, contra o fascismo, é um libelo contra a guerra colonial”.
As autoras das Novas Cartas Portuguesas no seu julgamento.
As autoras das Novas Cartas Portuguesas no seu julgamento.

Abril de 1972. Três escritoras, todas elas de primeiro nome Maria, publicam um livro inspirado nas supostas cartas de amor enviadas no século XVII por uma freira portuguesa, Mariana Alcoforado, a um oficial francês. Estas tinham-se tornado um clássico da literatura. As novas cartas também o serão.

O livro “Novas Cartas Portuguesas” de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa denunciava a situação das mulheres na sociedade portuguesa da época e o próprio regime fascista. Foi publicado pela editora Estúdios Cor, sob a responsabilidade de Natália Correia, que assumiu o risco de o colocar no mercado. Três dias depois, todos os exemplares apanhados são destruídos e a obra fica banida pela ditadura salazarista por “conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”.

As escritoras são interrogadas na polícia e têm de enfrentar um julgamento que vai ter ecos internacionais. Simone de Beauvoir divulga a situação. Os grandes meios de comunicação social internacionais cobrem o julgamento. Há manifestações à porta de embaixadas portuguesas e apelos que juntam escritoras famosas como Marguerite Duras, Doris Lessing, Iris Murdoch e Delphine Seyrig. Mas chega o 25 de abril e o julgamento não redunda em condenação.

Volvidos 50 anos, a única das autoras que continua entre nós é Maria Teresa Horta. Em declarações à Lusa recorda que o livro foi ignorado e desconsiderado em Portugal: “ninguém ligou nenhuma às ‘Novas Cartas Portuguesas’ em Portugal” E diz-se “perplexa” com o renovado interesse que tem surgido ultimamente: “agora, de repente, enlouquece tudo”.

Um sucesso de fora para dentro. “Foi no estrangeiro que as coisas se precipitaram e fizeram das ‘Novas Cartas’ aquilo que as ‘Novas Cartas’ são, quanto a mim, lá fora, porque, aqui dentro, nunca vi que ninguém se preocupasse muito com as ‘Novas Cartas Portuguesas’”. A obra tem sido estudada em várias universidades estrangeiras e há diversos estudos internacionais sobre ela.

Em Portugal nem por isso: “no ensino, os professores portugueses não querem ensinar nada que esteja perto das ‘Novas Cartas’, acho eu, mas enfim, querem que as mulheres continuem… se comportem muito bem, um bocadinho mais modernas do que dantes, mas não muito”.

Ana Luísa Amaral, coordenadora de uma edição anotada do livro, corrobora que este “teve um reconhecimento além-fronteiras que nunca foi devidamente assinalado, nem estudado em Portugal, reconhecimento evidente no número espantoso de traduções para outras línguas, que o coloca entre os livros portugueses mais traduzidos no estrangeiro”.

E avança como explicação para isto que este livro continua a causar “incómodo” porque “fala contra o racismo, contra o sexismo, contra o fascismo, é um libelo contra a guerra colonial”. Incomoda assim a direita mas também “as ideologias instaladas da esquerda” que “viram, a seguir ao 25 de Abril, como muito mais importante a construção de uma nação”, desvalorizando o feminismo.

Salienta ainda que este “clássico” continua a ser uma obra “fundamental” que não está datada. Até porque “as ‘Novas Cartas Portuguesas’ tratam de situações humanas básicas quer no campo do social, quer no campo literário. Essas situações humanas básicas são a discriminação, a desigualdade de género, a guerra, só para citar algumas. A desigualdade em termos de classe ou de raça”. Para além disso, “não desafia só a questão do género enquanto categoria sexual socialmente construída, mas desafia também o próprio conceito de género literário”, na medida em que não pode ser catalogado” e “faz explodir o conceito e a estabilidade” dos géneros”.

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