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Vende-se imóvel: ótimo investimento para visto gold

Na noite escura da Troika e do Governo PSD/CDS, uma casa podia ser tudo: podia ser um hotel (veja-se o nascimento, logo devastador, dos alojamentos locais), uma forma de violência (criação do Balcão Nacional de Despejos que, cinicamente, chamaram do arrendamento), ativo financeiro, mecanismo de lavagem de dinheiro e de favorecimento de práticas de corrupção (vistos gold). Podia ser tudo, menos uma casa.
Passadeiras vermelhas
PSD e CDS tinham um plano para a economia e para as cidades. Os vistos gold seriam uma oportunidade única para criação de emprego e, lateralmente, alguns seriam atribuídos através de compra de habitação. Não tivesse este regime destruído a vida de tantas pessoas e diríamos que era uma anedota.
Os números são devastadores para quem defende os vistos gold. Estes serviram para crime económico, para especulação imobiliária e mais recentemente, já em plena crise da COVID-19, para a comunidade chinesa organizar a quarentena dos recém-regressados naqueles imóveis vazios. Mas vejamos os números: dos 8.125 vistos atribuídos, 7.655 foram através da aquisição de propriedades, 552 através da transferência de capital e 17 pela criação de 10 postos de trabalho ou mais. Tratou-se, portanto, da venda de vistos de residência. Enquanto os imigrantes pobres ou de classe média esperavam pelo calvário burocrático do SEF, as classes ricas aderiam a uma rede de corrupção (que originou a investigação labirinto) que lhes permitia ter este visto de forma célere e, assim, lavarem dinheiro. Estas são as conclusões de um relatório da Comissão ao Parlamento Europeu, onde é pedido o fim dos vistos gold e onde é denunciada a falta de mecanismos de controlo específicos sobre a origem dos fundos investidos e de uma fiscalização da idoneidade ao longo do período de residência.
“Vemos, ouvimos e lemos”
Esta história não surpreende ninguém. Não há uma pessoa que abra a boca de espanto ao saber estes dados. Será que, ao contrário dos versos de Sophia, “vemos, ouvimos e lemos”, mas conseguimos ignorar? Não julgo que assim seja.
A verdade é que tudo se desenrolou no quadro de uma narrativa de promoção da necessidade deste tipo de investimentos, em que as cidades eram um ativo financeiro. Turismo, gentrificação, limitação económica no acesso à cidade, especulação, tudo isto faz parte de um pacote. O jogo da manipulação: “saber-se-á a verdade, mas quando já não for verdade (...), quando tal informação já for inócua e nenhuma revolta suscitar”.[1] A manipulação desta narrativa teve de tudo: a economia – ou a financeirização – e a política do medo a tomar conta das nossas vidas, startups, empreendedorismo, business angels, sair das zonas de conforto, tudo símbolos de uma narrativa liberal que culpabilizou as pessoas pela crise passada e, à cautela, lhes dizia à partida que se não vingassem de aí em diante, também era culpa delas.
Consumado o ato, as elites que beneficiaram deste regime aceitam – sorrindo – que se limitem os vistos gold quando já não há nada a limitar. Sinal de que chegámos à fase do fingimento. Para os partidos que defendem os vistos gold (PSD e CDS, autores da medida, PS e Chega que votaram sempre a favor da sua manutenção, e PAN que, sendo contra os vistos gold, considera que não há riscos se forem vistos green) o fingimento é a salvação. Nenhum quererá dizer que apoiou esta medida. Mas, voltamos a Sophia, “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”.
Emergência habitacional
Na especulação imobiliária, os vistos gold foram uma peça decisiva. Se o que está em causa é comprar um visto de residência, pouco importará o valor do imóvel. Desde que se atinja o valor pedido pela compra desse visto, o negócio faz-se. Num país que não tem parque habitacional público relevante (2% apenas), onde o turismo foi o modelo económico, todas as pessoas sentiram o peso de se venderem casas com um visto de residência incluído. Quem não viu o anúncio que dá título a este texto?
Por incrível que pareça, estamos ainda na fase de exigir o fim dos vistos gold, esse é um enorme consenso nacional que as pessoas impuseram aos mercados. Falta parar essa possibilidade. Depois, teremos de saber o fim dos processos judiciais. Pode um criminoso condenado por crime económico manter um imóvel que esteve no centro do ato criminoso, ou deve o estado assumir a propriedade desse imóvel e colocá-lo ao dispor de quem precisa de casa?
Tudo indica que viveremos tempos difíceis. A crise anterior deu-nos uma lição: colocar direitos fundamentais, como a habitação, à mercê das elites é perigoso; colocar a responsabilidade da crise nos mais fracos é injusto, violento e, como ficou provado, má política económica. Invista-se na habitação, parque público e rendas acessíveis. Este é um investimento certo. Sabem porquê? As pessoas pagam a renda.
Nota:
[1] Francisco Louçã, in A maldição de Midas, a cultura do capitalismo tardio. Lisboa, Editora, ano: 19.
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