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Crise do coronavírus exige congelamento de rendas e moratória aos despejos

É indefensável que as pessoas devam recear ser despejadas durante uma crise de saúde pública. A crise do coronavírus exige um controlo de emergência do mercado da habitação. Artigo de Peter Gowan, na Jacobin.
Foto 70023venus2009/Flickr

À medida que a realidade do Covid-19 se instala globalmente, a nossa capacidade – ou a falta dela – para lidar com a crise é, de repente, uma questão candente. A segurança habitacional é uma preocupação crescente e sem garantia habitacional muitas pessoas estão em risco.
Disponibilidade de habitação pública ou social de uma forma generalizada, o controle das rendas, a abolição da situação de sem abrigo e uma carta de direitos do inquilino são medidas essenciais para proteger as pessoas do comportamento predador dos senhorios e de despejos injustos. Mas ainda não vivemos nesse mundo, e medidas de emergência na área da habitação serão necessárias para estabilizar e proteger as pessoas no decorrer da crise de saúde pública em desenvolvimento.

Numa crise em que, de repente, temos de trabalhar menos e com isto arriscarmo-nos a uma quebra de rendimentos ou ainda a uma possível situação de suspensão de contrato, muitos inquilinos receiam o despejo e ainda cair em situação de sem abrigo por não conseguirem cumprir com os pagamentos. Isto tem de mudar.
Socialistas e progressistas podem e devem exigir um programa de emergência imediato para estabilizar as pessoas nas suas casas até que a crise passe. Contra os lucros dos senhorios e especuladores, devemos exigir as medidas básicas de apoio à saúde pública, permitindo que as pessoas tirem tempo do trabalho sem recear serem despejados.

As medidas propostas de seguida devem ser consideradas em complementaridade, e não em substituição, às medidas para proteção da suspensão de contrato, ou ao acesso a testes, tratamentos e, por fim, vacinas universais e gratuitas. Devemos também exigir subsídios de doença pagos de forma substancial. No entanto, sem controlo do mercado habitacional, é bem provável que os medos e pressões persistam.

Segurança Habitacional abrangente

Como base, necessitamos de leis que garantam às pessoas o direito de se manterem nas suas casas enquanto este período durar e nos dias imediatamente seguintes. O primeiro passo, deverá ser o de impor um congelamento de todas as rendas, à data de 2019, e uma moratória a todos os despejos, fins de contrato, assim como suspensão da acumulação de juros de hipoteca de casa própria e de habitação destinada ao arrendamento. Isto assegurará a estabilidade das pessoas nas suas casas enquanto a crise durar, independentemente de continuarem a trabalhar.

Um congelamento de rendas a nível nacional significa que não poderá haver lugar a aumento de renda para lá do valor praticado a dezembro de 2019. Qualquer aumento de renda desde aí, ou que seja anunciado antes da publicação da lei, deverá ser revertido para os preços de dezembro de 2019. (Se o arrendamento iniciou depois de 2019, as rendas devem ficar paralisadas no menor valor praticado desde o início do arrendamento). Isto deverá aplicar-se a arrendamentos familiares ou residenciais. Deverá ser aplicado universalmente a qualquer arrendatário habitacional, e deverá ser aplicado na base da unidade ou quarto e não apenas do detentor do contrato, porque se alguém deixar um quarto voluntariamente o senhorio não poderá cobrar mais do que o anterior inquilino pagava pelo aluguer.

Esta medida deve aplicar-se durante a crise de COVID terminando após um período de três a seis meses transcorridos começando a contar do momento em que o número total de casos cai para menos de 1/3 relativo ao pico da crise – e repondo-se automaticamente no caso de as ocorrências voltarem a aumentar e ultrapassarem os valores estabelecidos.

Para prevenir extorsão após este período, os aumentos de renda anuais devem ser indefinidamente indexados ao índice do preço do consumidor local ou 3%, o que se apresentar como o menor valor – como proposto pela Campanha “Homes Guarantee”. Esta deverá ser a norma durante um longo período, idealmente permanentemente.

Enquanto dure esta crise (incluindo a fase de rescaldo), todos os despejos devem ficar suspensos. No entanto deve continuar a solicitar-se que se mantenham as condições do aluguer e que se paguem as rendas congeladas a quem é capaz de o fazer, mas sanções altamente punitivas, incluindo despejos, devem ser totalmente afastados do cenário.

Estas são as medidas necessárias de forma a assegurar que ficar em casa para não ir trabalhar não resulta em despejo e na situação de sem abrigo. Se um “pau” menos rígido resulta em algumas pessoas não pagarem a renda que devem, esta consequência é bem menos grave que as pessoas irem trabalhar com coronavírus. No rescaldo, e para garantir que não existem despejos de retaliação, aos inquilinos deve garantir-se uma legislação apertada, justa e permanente de enquadramento do despejo a nível federal, limitando as razões pelas quais é possível despejar a um conjunto pequeno de circunstâncias e de que se faça prova em tribunal.

O Governo deveria oferecer-se para adquirir propriedades, das quais os senhorios não desejem continuar a ser proprietários, com um desconto significativo, e converte-las em arrendamento compatível com os rendimentos, através da aplicação de um limite baseado numa taxa de esforço, de forma a assegurar que as pessoas que perderem o seu trabalho ainda são capazes de pagar as suas rendas sem entupir os serviços disponíveis. Também deverá, provavelmente, estabelecer um fundo para compensar os senhorios a quem os inquilinos não estejam a pagar as rendas, estabelecidas com os limites definidos, por dificuldades de rendimento. Se os senhorios em geral não são um grupo muito empático, isto poderia ajudar a aliviar o fardo para aqueles agentes mais simpáticos, que de outra forma poderiam afundar a proposta. A limitação de renda baseada numa data anterior assegura que este fundo não pode ser explorado por senhorios que aumentem a renda artificialmente para extorquir dinheiro do Estado, o que de outra forma poderia ser uma preocupação muito real. Os pedidos no âmbito deste fundo devem ser feitos mediante prova de que a propriedade está de acordo com o regime do edificado e com licença habitacional – qualquer obra legalmente exigida deve ser feita recorrendo ao valor da compensação atribuída.

A acumulação de juros hipotecários em habitações, ocupadas pelo proprietário ou alugadas para habitação própria e permanente, afetadas pela limitação de rendas deve ser temporariamente suspensa, e os donos devem ser protegidos da retaliação que possa resultar da suspensão dos pagamentos durante a crise (apesar de que lhes deve ser permitido continuar a pagar se assim escolherem). Execuções em habitações ocupadas pelo proprietário devem também ser suspensas – incluindo a suspensão de processos pendentes no momento.

Estas medidas pretendem mudar o custo da crise para montante, dos proprietários e pequenos senhorios para os bancos e fundos de investimento, que podem, se necessário, aceder a recursos públicos criados para assegurar a estabilidade financeira. O meu colega Thomas Hanna do Democracy Collaborative propõe que bancos requerentes de resgates devem ter como condição a transferência permanente para a propriedade pública.  

Estas medidas devem conter o impacto geral da crise na classe trabalhadora – não apenas os mais pobres, mas também pessoas com rendimentos médios a médio-altos que provavelmente estarão a sofrer dificuldades ou doentes em resultado do impacto do coronavírus nos seus locais de trabalho.

Uma suspensão dos despejos deve estender-se para uma proibição de encerramento das residências estudantis e uma reabertura daquelas que se encontram já encerradas. Muitos dos estudantes que já pagaram os seus quartos estão a ser forçados a sair sem ter para onde ir. Se as cantinas são vistas como um risco, deve encontrar-se uma alternativa para a manutenção de canais estáveis de alimentação. As aulas podem e devem manter-se suspensas enquanto necessário.
As pessoas nas prisões estão muito provavelmente sob grande risco, resultado da alta concentração de população a viver em frequentes condições de insalubridade em equipamentos frequentemente subfinanciados e sobrelotados. Devem fazer-se esforços para rapidamente reduzir a população e para assegurar habitação acessível e segura para os que sejam libertos. O mesmo se aplica para os equipamentos de detenção de imigrantes – deixando de parte os argumentos morais, pessoas amontoadas em campos e celas podem exacerbar uma situação de crise de saúde pública.

Um risco sério é a concentração de pessoas em situação de sem abrigo em equipamentos sem condições sanitárias, albergues e abrigos. Estas pessoas precisam da sua própria habitação, mas uma solução provisória poderia ser a utilização de quartos sobrantes e casas vazias para encaminhar esta população para respostas com condições sanitárias até que a crise passe.

Proprietários de casas devolutas e de múltiplas propriedades, assim como aqueles donos de mansões com muitos quartos, devem ser chamados a ajudar a apoiar esta população, muita da qual está atualmente concentrada em abrigos ou respostas de emergência, garantindo que são albergadas em locais que não permitam o contágio generalizado. Ás pessoas em situação de sem abrigo deve ser garantido um quarto privado enquanto durar esta crise. Um programa de abrigo voluntário deve ser instalado, mas se não for suficiente, proprietários e senhorios abastados devem ser compelidos a providenciar esse abrigo para a manutenção da saúde pública. A longo prazo deve ser adquirida ou construída habitação permanente para a população em situação de sem abrigo.

Enquanto movimento, os Socialistas Democráticos da América (DSA) devem exigir que os custos do coronavírus não são impostos na classe trabalhadora. Esta exigência tem diferentes aplicações conforme o setor, mas as medidas acima propostas são uma extensa garantia para trabalhadores arrendatários ou hipotecários.

Podemos reconhecer que é pouco provável que estas medidas sejam implementadas a nível federal – mas os representantes socialistas devem advogá-las. A nível local e estadual, os nossos representantes eleitos devem seguir o exemplo de Dean Preston, membro do Conselho de Supervisores do DSA de São Francisco e fazer tudo ao seu alcance para implementá-las.


Peter Gowan é um investigador irlandês e colaborador residente no Next System Project do Democracy Collaborative. Artigo publicado no portal da revista Jacobin. Traduzido por Maria Manuel Rola para o esquerda.net.

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