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Mais habitação social: imprescindível, mais que nunca

São completamente erradas as ideias que ainda persistem na sociedade portuguesa contra a habitação social, entendida por alguns como habitação “para os mais pobres”, “sem qualidade”, em vez de assumirem a definição da própria OCDE: habitação social é a que é disponibilizada com rendas abaixo do mercado e com regras específicas de atribuição, fora dos mecanismos de mercado. Artigo de José Castro.
Bairro da Bouça, no Porto
Bairro da Bouça, no Porto, projeto de habitação social desenhado por Álvaro Siza Vieira na década de 1970 no âmbito do plano do Serviço Ambulatório de Apoio Local (SAAL). Foto Wojtek Gurak/Flickr

Em Portugal a oferta de habitação social não é suficiente.

É esta a conclusão do relatório do Comité Europeu dos Direitos Sociais do Conselho da Europa, recentemente publicado. Embora o relatório não tenha ainda em conta legislação mais recente, como o 1º Direito (para o qual o BE deu o principal impulso), fica claro que a situação no nosso país não respeita, entre outros, o artigo 31º da Carta Social Europeia que o Estado português se comprometeu a cumprir, há quase 18 anos.

Não é novidade esta constatação por instituições internacionais da escassez de habitação social em Portugal. Na verdade, mesmo após a baixa significativa do investimento público nos países da UE na construção de novos alojamentos (a parte da despesa pública consagrada ao alojamento passou de 40 mil milhões a 27 mil milhões de euros entre 2007 e 2016), a proporção de habitação social no conjunto de todos os alojamentos representa 30% na Holanda, seguida da Áustria com 24%, Dinamarca com 20%, Suécia com 19%, França com 17% (State of Housing in the UE 2019).

Já o parque habitacional público em Portugal é escandalosamente exíguo, existem 1.157 fogos de habitação social por 100.000 habitantes. São cerca de 120.000 fogos, apenas 2% dos quase 6 milhões de alojamentos existentes em todo o país. Destas 120.000 habitações sociais, cerca de 100.000 fogos são propriedade dos municípios e outros 12.000 são ainda geridos pelo IHRU.
 
Se a comparação entre os 28 Estados da UE coloca Portugal entre os 6 países com menor quota de habitação social (inferior a 2,5%), então se avançarmos para uma análise mais fina, a nível de cidades, as diferenças são também expressivas. Linz (Austria) tem mais de 50% de fogos sociais no conjunto do parque habitacional, Roterdão tem 44%, Viena tem 43%, Amsterdam tem 42%, Haia tem 31% e em Manchester 30% dos alojamentos são habitação social. E se focarmos, a título de exemplo, cidades da França com população entre 400.000 e 800.000 habitantes (Toulouse, Lyon e Marselha), todas têm mais de 18% de alojamentos sociais. Aliás para os municípios franceses com mais de 3.500 habitantes, o artigo 55º da lei SRU (Solidariedade e Renovação Urbana) impõe desde 2000 uma meta de 20%, alargada em 2013 para 25% de alojamentos sociais no conjunto do parque habitacional. A cidade de Paris colocou até como objectivo habitacional alcançar 30% de alojamentos de iniciativa pública em 2030.

Estes números sobre o alojamento social em cidades europeias mostram como são completamente erradas as ideias que ainda persistem na sociedade portuguesa contra a habitação social, entendida por alguns como habitação “para os mais pobres”, “sem qualidade”, em vez de assumirem a definição da própria OCDE (Divisão de Política Social): habitação social é a que é disponibilizada com duas condições - 1) com rendas abaixo do mercado e 2) com regras específicas de atribuição, fora dos mecanismos de mercado.   

As políticas neoliberais na UE têm vindo a reduzir o parque habitacional público nos diversos países, também pela privatização e consequente venda de milhares de fogos a fundos imobiliários. Cada vez mais pessoas, mesmo as que trabalham, não conseguem pagar uma habitação adequada. Em 2017, quase 16% da população da UE vivia em fogos sobrelotados e segundo números da FEANTSA, haverá quase 9 milhões de agregados familiares na Europa sem alojamento digno.

O brutal aumento das rendas habitacionais, o negócio do “alojamento local” e a expulsão de muitas famílias dos centros das cidades, situações que se agravaram nos últimos anos, vieram tornar ainda mais imprescindível a disponibilização pelos poderes públicos, incluindo os municípios, de milhares de habitações sociais. Não apenas para o realojamento das 25.762 famílias indicadas pelas Câmaras no inquérito realizado pelo IHRU, mas também para fornecer habitação a muitas outras pessoas, cuja indicação não foi abrangida pelos apertados critérios daquele inquérito. E ainda para, através de oferta pública, combater a ganância dos senhorios e a especulação imobiliária. E sobretudo, para dar satisfação ao artigo 65º da Constituição o qual, contrariamente à leitura enviesada de muitos autarcas, nunca deixou, nas suas diversas formulações após 1976, de atribuir aos municípios responsabilidades próprias na disponibilização de habitações sociais.

Para alcançar estes objectivos, com a urgência que se impõe, acabe-se com o monopólio privado da oferta de habitação e com o abuso que isso representa para milhares de famílias necessitadas. Aos municípios, que após a elaboração e aprovação das Estratégias Locais de Habitação podem ter acesso a comparticipações financeiras não-reembolsáveis e à bonificação da taxa de juro de empréstimos contraídos para a promoção de diversas soluções habitacionais (como a reabilitação, construção e aquisição de fracções ou prédios habitacionais, arrendamento de habitações para subarrendamento, aquisição de terrenos para construção habitacional, construção de prédios, etc.), impõe-se também que usem os supéravites das contas municipais.  

E há também que lançar mão de todos os instrumentos legais e financeiros disponíveis. Atribuam-se adequadas verbas específicas nos próximos orçamentos do Estado e dê-se concretização ao Decreto-Lei nº 37/2018 de 4 de Junho que prevê a disponibilização, a quem delas necessite, de mais 170.000 habitações sociais até 2025. Como apontam os dados de março de 2020 do Comité Europeu dos Direitos Sociais, todas e todos temos que ser mais exigentes com os decisores públicos!

Sobre o/a autor(a)

Jurista. Membro da Concelhia do Porto do Bloco de Esquerda
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