Está aqui

Porto: muito mercado, pouca escolha

A pressão turística sobre o imobiliário e a escassez de resposta pública agravou a crise da habitação para quem vive no Porto. Os alertas deixados em 2016 pela Relatora Especial das Nações Unidas para o direito à habitação condigna não foram ouvidos e a situação nas "ilhas" e bairros camarários agravou-se ainda mais. Artigo de Daniela Alves Ribeiro.
Porto
Foto Sergei Gussev/Flickr

Em Dezembro de 2016, a Relatora Especial das Nações Unidas para o direito à habitação condigna, Leilani Farha, visitava Portugal, “com a missão de avaliar o impacto das medidas de austeridade nas populações vulneráveis”. Três anos volvidos da sua visita ao Porto, e decorrido um período para o qual o Governo indica crescimento económico, as questões apontadas à data mantêm-se hoje sem resposta efetiva.

Durante esta visita, a Relatora da ONU foi confrontada com realidades habitacionais particulares da cidade do Porto, mas também com uma série de outras questões que, não sendo exclusivas do Porto, têm vindo a denunciar a dificuldade de salvaguarda ao direito à habitação em Portugal. Referimo-nos à problemática das pessoas em situação de sem abrigo, da pressão exercida pela actividade turística sobre os arrendamentos habitacionais - principalmente no centro da Cidade -, mas também às práticas conduzidas nos últimos anos relativas a despejos e demolições, sem garante de condições dignas de vida.

Foram visitadas “ilhas” em Campanhã que, para além das más condições de habitabilidade que apresentavam, revelam as condições de isolamento em que uma parte significativa da população do Porto ainda hoje vive; também o núcleo da Sé do Porto, onde grande parte dos edifícios de habitação permanente se encontrava em processo de reconversão em alojamento temporário, deixando sem resposta aqueles cujos rendimentos não permitiam fazer frente ao retorno financeiro que o alojamento local assumia já na altura. E por fim, o bairro de habitação social do Aleixo, à época já parcialmente demolido, e no qual conviviam moradores - então na expectativa de realojamento anunciado no arranque da demolição - com o motivo que justificara tal decisão, longe de ser erradicado. Da conversa com as associações locais em torno da problemática das pessoas em situação de sem abrigo, a escassez de resposta para abrigo, numa primeira fase, e para habitação, numa segunda fase de restruturação da vivência, eram já indicados como algumas das principais barreiras à retirada das pessoas da rua.

Dos moradores de “ilhas”, cuja condição habitacional foi reconhecida pela Relatora como de imediata intervenção por parte do Governo, casos houve que morreram sem ter qualquer resposta; mais haviam como os que foram visitados e que se mantêm sem resposta, em condições de segregação socio-espacial, subjugadas a habitações, muitas, insalubres. O número de pedidos para habitação camarária de renda apoiada tem-se mantido próximo do milhar, não pela resposta efectiva a situações como estas, mas por ajuste de critérios de acesso capazes de balizar, de forma mais ou menos restritiva, a possibilidade de efectivar o pedido de habitação camarária. É, também por isso, maior o número de despejos em execução nas habitações camarárias por parte da Domus Social,  empresa municipal responsável pela gestão do parque habitacional do município.

Agravando a capacidade de resposta face aos pedidos também eles exponenciados devido à dificuldade de acesso ao mercado de arrendamento habitacional, 131 das 146 habitações sociais a construir pelo Fundo Imobiliário que ficara na posse nos terrenos do Bairro do Aleixo, estão hoje, já demolidas as habitações camarárias aí existentes, ainda por construir. Manteve-se aí o tráfico de droga, agora alastrado às zonas confinantes do Bairro.

A esta questão não pode deixar de se associar a pressão imobiliária, em parte decorrente da fervilhante actividade turística e que justifica o facto de o maior número de pedidos de habitação camarária provir das freguesias onde tal actividade é mais densa, nomeadamente nas freguesias do Centro Histórico do Porto.

É neste contexto de pressão imobiliária que, em 2017 e agora em 2020, a Porto Vivo – Sociedade de Reabilitação Urbana da Baixa Portuense (SRU) promovera concurso para a atribuição, no Morro da Sé, de 28 e 15 habitações, respectivamente. Estas últimas a rendas acessíveis indexadas ao valor de mercado (20% abaixo) e por isso, inflacionadas face ao primeiro concurso[1].

Não acompanhada pelo aumento de rendimento mediano na Cidade, esta inflação no mercado de arrendamento habitacional tem conduzido a um grande desfasamento entre o que as famílias podem despender para arrendar uma casa e o que por ela é pedido.

Não sendo esta uma realidade única do Porto, a Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) (2018) criara o Programa de Renda Acessível (PAA) (2019) no intuito de “contribuir para dar resposta às necessidades habitacionais das famílias cujo nível de rendimento não lhes permite aceder no mercado a uma habitação adequada às suas necessidades”. No entanto, é notável que os 20% abaixo do valor de mercado em que o PAA se suporta não são suficientes para mercados  imobiliários “sobreaquecidos” como o do Porto, deixando antever dificuldades de acesso por parte da maioria das famílias aos empreendimentos programados pelo Município em tal regime, à semelhança do que se tem verificado com o programa Porta 65 (NGPH), sendo apresentada como medida local alternativa aos programas de apoio às rendas que, cada vez mais concorridos, de medida de emergência, passaram a ser procurados como resposta recorrente devido a inacessibilidade directa ao mercado,  e sem nele introduzir alterações significativas no mercado.

Não quer este desfasamento dizer que nada se tem feito relativamente à salvaguarda do direito à habitação nos últimos anos. Na verdade, talvez seja neste período, o que decorre desde a visita da Relatora, aquele no qual mais atenção tivera a questão da habitação, nas últimas décadas. Não chega, se pensarmos que é também este o período em que maior pressão se fez sentir sobre o imobiliário, em particular sobro o mercado de arrendamento e face ao qual o Município do Porto, em particular, não pode desresponsabilizar-se.

Foi referida a NGPH, um pacote de medidas a nível nacional para “garantir o acesso à habitação a todos os que não têm resposta por via do mercado”,  para a qual se procedeu ao levantamento das necessidades habitacionais do País, e que é agora acompanhado de uma Lei de Bases da Habitação (2019). Serão estas medidas de reconhecimento e regulamentação importantes para a salvaguarda do direito à habitação.

No contexto local local, as Estratégias Locais de Habitação (ELH), que determinadas legalmente como condição de acesso a fundos para intervenções direccionadas para as “pessoas que vivem em condições habitacionais indignas”, onde se inserem as “ilhas”, aqui revisitadas como oportunidade, ou as pessoas em situação de sem abrigo como beneficiários, constituir-se-iam oportunidade para um efectivo reconhecimento da realidade habitacional de cada município e, acima de tudo, para a delineação de uma política habitacional capaz de dar resposta às especificidades de cada município.

No Porto, a ELH (2019) não se constituiu como tal, assumindo-se não ser necessário desenvolver uma estratégia pública para a habitação. Poderá ter sido por se considerar que não há problemas de habitação na Cidade, por se considerar que não é o público que lhes deve responder, ou porque cada caso é um caso e melhor do que definir uma estratégia conjunta é ir adaptando as soluções aos problemas individualizados. Ou até mesmo porque se os fundos para a habitação pública têm que vir do Estado Central, também a estratégia para a Cidade deverá desenvolvida por uma entidade central. Não sabemos. Sabemos sim que o que se constituiu como oportunidade para se pensar na Cidade se transformou num mero instrumento de acesso a fundos para o programa 1.º Direito. Ficaremos pois - os que conseguirem- mais uns anos à mercê da estratégia de “outros”, e para os quais, isso é certo, contamos muito pouco… Talvez perante os –“nossos”  também!


Daniela Alves Ribeiro é arquitecta e investigadora.


Nota:

[1] Os valores de renda subiram do primeiro para o segundo concurso, sendo no segundo rendas acessíveis; o T2 triplex com 104,78m2 de área útil que em 2017 era disponibilizado por uma renda mensal de 523,90€, está agora em concurso por 768,77€, portanto, quase 50% acima do seu valor em 2017. 

(...)

Neste dossier:

"Em cada esquina um amigo"

Respostas à crise na habitação

A pandemia do coronavirus provocou o colapso do turismo e a paralisação de muitos setores da economia. Para já, o importante é travar os despejos e assim evitar que as pessoas fiquem sem teto. Mas o regresso da crise global exige uma resposta que passa pela defesa do direito à habitação e pelo controlo dos preços especulativos. Dossier organizado por Luís Branco.

Bairro da Bouça, no Porto

Mais habitação social: imprescindível, mais que nunca

São completamente erradas as ideias que ainda persistem na sociedade portuguesa contra a habitação social, entendida como habitação “para os mais pobres” e “sem qualidade”. Para a OCDE, habitação social é a que é disponibilizada com rendas abaixo do mercado e atribuída fora dos mecanismos de mercado.  Artigo de José Castro.

Casas sim, despejos não!

Habitação há. Não há é vontade política

No momento que todas nos refugíamos do perigo de um vírus em casa, compreendemos também o problema que a crise habitacional representa na saúde pública. Artigo de Maria Manuel Rola.

Que impacto da pandemia no mercado imobiliário?

Nos últimos dias começam a sair as primeiras notícias do impacto que a Covid19 está a ter no mercado imobiliário. Já não há dúvidas: o preço das casas vai cair e as rendas vão baixar. Artigo de Ricardo Moreira.

Altbau por renovar e renovado. Até finais dos anos 1990, grande parte do centro de Berlim tinha o aspeto da esquerda. Hoje, tem o aspeto da direita. A par da renovação, veio a especulação. Foto: Kaspar Metz/Flickr.

Berlim: a capital "pobre mas sexy" radicaliza-se contra a especulação

Berlim acabou de congelar e impor tetos às rendas. Uma vitória para os movimentos de moradores, cuja mobilização despertou um debate que vai mais longe, chegando a ideias de expropriar os grandes senhorios. A história da cidade ajuda a compreender como se encontra hoje na dianteira das lutas pela habitação. Por José Borges Reis.

Habitação: uma questão europeia?

Embora as crises da habitação que se espalham pela Europa fora, inclusive a portuguesa, tenham as suas raízes históricas nas dinâmicas específicas de cada Estado, podemos concluir que a Europa pouco fez para preveni-las; antes pelo contrário. Artigo de Simone Tulumello.

Porto

Porto: muito mercado, pouca escolha

A pressão turística sobre o imobiliário e a escassez de resposta pública agravou a crise da habitação para quem vive no Porto. Os alertas deixados em 2016 pela Relatora Especial das Nações Unidas para o direito à habitação condigna não foram ouvidos e a situação nas "ilhas" e bairros camarários agravou-se ainda mais. Artigo de Daniela Alves Ribeiro.

Crise do coronavírus exige congelamento de rendas e moratória aos despejos

É indefensável que as pessoas devam recear ser despejadas durante uma crise de saúde pública. A crise do coronavírus exige um controlo de emergência do mercado da habitação. Artigo de Peter Gowan, na Jacobin.

 

A finança e a habitação no capitalismo

Houve períodos históricos, como agora, em que os custos da habitação como meio de reprodução da força de trabalho foram deixados exclusivamente sobre os ombros dos trabalhadores. Nesses momentos, eles foram explorados como trabalhadores que produzem mercadorias a serem vendidas no mercado e como pessoas que precisam garantir a sua própria reprodução através de dívidas. Excerto da brochura sobre financeirização da habitação, lançada pela European Action Coalition for the Right to Housing and to the City e Fundação Rosa Luxemburg.

Habitação em Lisboa: um problema coletivo

A crise financeira que se aproxima não pode ser uma crise novamente paga pelos de sempre. O acesso a uma habitação é a garantia de um direito fundamental. Cabe aos poderes públicos não deixar ninguém para trás. Artigo de Catarina Silva.

Vende-se imóvel: ótimo investimento para visto gold

A crise anterior deu-nos uma lição: colocar direitos fundamentais, como a habitação, à mercê das elites é perigoso; colocar a responsabilidade da crise nos mais fracos é injusto, violento e, como ficou provado, má política económica. Artigo de Vasco Barata.