“Temos de acabar com as fronteiras, sejam elas físicas ou mentais”

O Esquerda.net falou com Timóteo Macedo, fundador e presidente da Solidariedade Imigrante-Associação para a defesa dos direitos dos imigrantes, sobre as principais conquistas da luta pelos direitos dos imigrantes e o caminho que ainda é preciso fazer. Por Mariana Carneiro.

22 de fevereiro 2022 - 14:57
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De acordo com Timóteo Macedo, graças à luta do movimento associativo e dos próprios imigrantes, que deram a cara, alcançaram-se conquistas que não podemos, em momento algum, deixar cair. O dirigente associativo alerta que temos de continuar a lutar, a levantar as nossas bandeiras e a exigir mais direitos.

Os imigrantes que chegam à Solim são de que nacionalidades?

Recebemos imigrantes de todas as partes do mundo. Provavelmente, é a única associação na Europa que tem esta diversidade e esta riqueza. Temos quase 44 mil associados de 99 nacionalidades diferentes, o que é espantoso.

Muitos imigrantes recém-chegados vêm à Solidariedade Imigrante porque já sabem que em Portugal existe uma associação que luta muito por e com eles. E que dá a cara. Olhamos para a situação específica de cada imigrante e esforçamo-nos muito para, com o imigrante, e não para o imigrante, resolver aquele problema. E vamos até ao fim. Aqui os imigrantes não estão de mão estendida ou de joelhos em frente de seja de quem for.

Como é que estes imigrantes chegam a Portugal?

Eles vêm para Portugal como sempre vieram, assim como os portugueses foram para os quatro cantos do mundo. Uns pagam para vir, como os portugueses nas décadas de 50 e 60 também pagavam para saltar, para Espanha, França e por aí fora. Só uma minoria consegue vistos. Vêm com visto de turismo e depois acabam por ficar. Muito poucos conseguem entrar com um visto de trabalho, tal como pretendem as políticas europeias e, particularmente, a portuguesa. É raro. Muitos outros vêm em “bateras” [barcos], arriscam as suas vidas.

Já fizemos manifestações que visavam a defesa dos direitos dessas pessoas. Em 2008 chegaram à nossa Associação mais de 400 jovens imigrantes da África subsariana, nomeadamente da Guiné-Bissau, Senegal e Gâmbia. Vieram em bateras, atravessaram o oceano. Uns assistiram à morte dos seus irmãos durante a travessia. Chegaram cá e vieram pedir apoio à Solidariedade Imigrante, que é uma associação de portas abertas para todos e todas que nos procuram. Lutámos com eles para que, efetivamente lhes dessem o estatuto de refugiados e documentos. Eles estiveram nos centros de acolhimento, que eu considero serem verdadeiros campos de concentração instalados no Sul da Europa, nomeadamente na Espanha e Itália, durante 40 a 45 dias, aí foram maltratados como é do conhecimento público, uns foram deportados e outros foram colocados em liberdade e à deriva.

São as políticas desta Europa Fortaleza. Vão buscar os imigrantes a alto mar para os encarcerar em centros de detenção. Depois vão repatriando alguns para cumprirem com as metas de afastamento e de repatriamento impostas por Bruxelas.

Em 2008 promovemos vários plenários e ações de rua bastante participativos e combativos, que culminaram com uma grandiosa manifestação que terminou aqui no Terreiro do Paço. Num combate às políticas da “Europa Fortaleza”, políticas criminosas que levam as pessoas que procuram a sobrevivência para a morte. Ninguém sabe ao certo quantas milhares de homens, mulheres e crianças perderam a vida nesta luta pelo direito à dignidade humana, serão decerto mais do dobro os números oficiais que nos chegam pela comunicação social e pelos governos da Europa.

Os familiares investem tudo para que o imigrante chegue à Europa e possa também contribuir para melhorar as condições de quem fica para trás, no país de origem. E, por isso, os imigrantes arriscam a vida uma vez, duas vezes. Tivemos aqui na Solidariedade Imigrante uma jovem francesa que fez um projeto relacionado com os trajetos que as pessoas migrantes faziam até chegar à Europa. Havia gente que atravessava o deserto e depois iam para a Mauritânia e outros países do norte de África. Os imigrantes ficavam lá 1 ou mais anos a trabalhar até ganharem o dinheiro suficiente, cerca de 700 euros, para terem lugar numa piroga, numa barcaça. Mas havia também quem morresse na também terrível travessia do deserto, muitos deles espoliados e traficados pelas redes de tráfico de seres humanos.

Estas pessoas deviam chegar de avião, seguras e confortáveis.

É verdadeira a afirmação de que “os imigrantes estão a invadir a Europa”?

A Europa precisa de imigrantes. Portugal precisa de muitos mais imigrantes.

Há um discurso oficial que é muito utilitarista e economicista em relação à imigração. Sabemos qual a importância dos imigrantes para a sustentabilidade do sistema de Segurança Social em Portugal. Sabemos que houve um saldo extremamente positivo, e nunca visto em Portugal. Foram mais de mil milhões de euros como saldo positivos, entre o dar e o haver que contribuíram decisivamente para a sustentabilidade da Segurança Social. Sabemos que os imigrantes vêm colmatar as necessidades de mão-de-obra, que fazem falta ao país. Veja-se o que se passa na agricultura: se não fossem os imigrantes, muitas empresas fechariam. São os próprios patrões que dizem isso. Estas empresas fechariam e existiria muito mais desemprego, mesmo entre os portugueses.

Temos de continuar a lutar para que a imigração se faça de uma forma segura. Temos de acabar com as fronteiras, sejam elas físicas ou mentais. Os imigrantes não estão a invadir a Europa, é a Europa que precisa deles.

Graças à luta do movimento associativo e dos próprios imigrantes, que deram a cara, foram-se conquistando alguns direitos. Portugal tem tido avanços que, com a nova conjuntura e o novo Parlamento, não podemos nunca deixar cair. Temos atualmente a extrema-direita no Parlamento e o poder absoluto de um partido único, que é extremamente obediente às políticas de Bruxelas, esta Europa que ergue novos muros que matam e que não contribuem para a dignidade e a solidariedade que deve existir entre os povos. É preciso preservar os direitos conquistados, segurá-los, e lutar por mais direitos para os imigrantes. Não podemos, em momento algum, permitir retrocessos.

Qual é a prioridade dos imigrantes logo à chegada a Portugal?

A primeira questão que eles querem resolver é a regularização no país.

Portugal tem um processo sempre em aberto em que a Solidariedade Imigrante se empenhou numa luta dura, para que este processo existisse. O artigo 88º, apesar de ainda ser precário, é uma janela que está permanentemente aberta desde Julho de 2007. Portugal estava habituado a andar de regularização extraordinária em regularização extraordinária: abria-se durante um ano, regularizavam-se alguns imigrantes e depois fechava-se o processo. Entretanto, começavam a surgir muitos indocumentados, voltava-se a abrir e, logo a seguir, fecha-se. Nós reivindicávamos uma regularização permanente, sempre em aberto. E é isso que temos desde 2007. A lei tem defeitos, mas também tem virtudes. Temos de melhorar estas políticas, mas não podemos deixar cair este processo que Portugal tem de regularizar os imigrantes, entre outros, também através do trabalho.

O trabalho está no centro das pessoas que migram, através dele conquistam-se direitos, melhoram-se as suas condições de vida. É através do trabalho que as pessoas conseguem documentação e com ela ter acesso a direitos fundamentais, saúde, educação, habitação e reagrupar a família entre outros direitos, nomeadamente a terem direitos políticos, embora este com limitações.

Portanto, assim que os imigrantes conseguem trabalho, procuram-nos para os apoiar na sua luta titânica pela sua documentação, enfrentando excessos de burocracias, incompetências e mãos tratos de que são vitimas as pessoas junto aos serviços públicos. Também temos assistido a uma enorme quantidade de pedidos de reagrupamento familiar. Há muita gente que, logo que consegue o seu documento, tenta trazer a sua família para cá.

Que tipo de apoio procuram os imigrantes quando se dirigem à Solidariedade Imigrante?

O SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras], às vezes, indefere muitos pedidos, sejam eles pedidos de autorização de residência ou de reagrupamento familiar. Existem também várias situações de conflitos laborais: patrões que não pagam, que não querem fazer contrato entre outras ilegalidades cometidas pelos serviços e pelos patrões e empresas sem escrúpulos que se aproveitam da grande precariedade em que se encontram estes trabalhadores imigrantes.

Para larga dezenas de milhares de imigrantes, encontram na nossa Associação um porto seguro com que podem contar para todas as lutas pelos seus direitos. Exemplo disto, são os lideres da revolta de Odemira que passaram pela Associação e aqui ganharam consciência e coragem para enfrentar as empresas e patrões que os exploram.

Existem muitas situações de abusos laborais?

Sim. Já existiram mais, mas continuam a existir. Basta olhar para a agricultura e ver o que se passa no setor. E não é só ali, é na construção civil também, ou mesmo na restauração e hotelaria. Se olharmos para os restaurantes na zona histórica de Lisboa, quem cozinha são os nepaleses, os indianos e africanos. No entanto, ganham o mesmo que um copeiro.

Há uma diferenciação salarial?

Claro, há uma grande discriminação. Na construção civil também vemos muitos imigrantes a trabalhar como pedreiros e a ganhar como serventes. Ou, mesmo que sejam reconhecidos como pedreiros, têm um salário mais baixo do que os trabalhadores nacionais com a mesma categoria profissional e que executam o mesmo trabalho. Esse tipo de discriminação e de exploração continua a existir. Não se pode negar. O mesmo acontece com a falta de pagamento de salários, de descontos para a Segurança Social. A economia informal também funciona aqui. Os patrões são os principais prevaricadores nestas situações.

A associação não deita a toalha ao chão nestes casos. Fazemos um primeiro contacto com a entidade patronal e, se esta não quiser resolver o problema, ajudamos o cidadão a fazer participação junto do Tribunal do Trabalho. Se for necessário, pede-se apoio judiciário à Segurança Social.

Quase todos os casos que vão para tribunal são ganhos pelos imigrantes. Mas é preciso que as pessoas exerçam este seu direito, que exerçam a cidadania ativa e não tenham medo, mesmo que não tenham documentos. Já existe jurisprudência nesse sentido. O que está em causa é a relação de trabalho.

Um grupo de senegaleses no Algarve exigiu o pagamento dos salários ao patrão, ao que este respondeu que eles deviam calar-se porque não tinham documentos. Ameaçou, inclusive, ir à polícia. Os próprios imigrantes disponibilizaram-se para ir à polícia com o patrão. E foram as próprias autoridades que avisaram o patrão que ele tinha de pagar.

A mobilização dos imigrantes é muito importante?

Absolutamente. Quando fizemos as primeiras ações de rua, ativistas da Alemanha diziam-nos que lá não expunham os imigrantes indocumentados na rua, porque eles podiam ser deportados. Nós explicávamos que se as pessoas não se manifestarem, se as principais vítimas não derem a cara pelos seus direitos, não vamos lá. E incutíamos a participação. Víamos mais indocumentados nas manifestações do que pessoas com documentos. Já os portugueses eram uma minoria. Lembro-me de um jovem da Guiné-Bissau muito tímido que, depois de participar na sua primeira ação de rua connosco, foi à associação dizer que agora tinha percebido que não estava sozinho e que tinha-se sentido muito bem.

A habitação também continua a ser um problema?

A habitação é, digamos assim, um cancro das políticas públicas portuguesas. Os imigrantes são duplamente penalizados. São guetizados, acantonados. Eu defendo que não deve haver habitação social, devem existir casas dignas para as pessoas. Tem de haver investimento para habitação, mas não para construir novos guetos. Tem de se construir habitação com qualidade. E precisamos de verdadeiras políticas de inclusão.

Muitos bairros sociais são bonitos por fora. Mas são precários, os materiais de construção são fracos e deterioram-se rapidamente, não existem infraestruturas, escolas. São casas para “pretos”, dizem-nos quem manda e constrói, ponto final.

Há também uma discriminação racista muito forte em Portugal. Se és cigano, negro, ou arrendas uma casa através de um amigo que é branco, ou tens grandes dificuldades em arrendar um espaço para viver. E existe um problema sério de sobrelotação aqui no casco velho da cidade de Lisboa que é necessário resolver.

Quais foram as principais conquistas nos últimos anos no que concerne aos direitos dos imigrantes?

A lei da imigração em Portugal permite, embora a conta-gotas, a regularização de grande parte das pessoas migrantes e algum abrandamento nas políticas repressivas, da caça ao indocumentado como era a prática dos finais dos anos de 90 e princípios de 2000. Mas isso deve-se à luta que o movimento associativo, nomeadamente a Solidariedade Imigrante, e os imigrantes desenvolveram aqui em Portugal. Fomos os principais protagonistas de muitas das manifestações e ações públicas que se fizeram: em frente ao Parlamento, ao SEF, no Martim Moniz, cortes de estrada…

Em 2005/2006 conseguimos travar a perseguição aos imigrantes que não tinham documentos. Chegaram a cercar a cidade de Tomar para “caçar” os indocumentados. Puseram-nos em autocarros, passaram por Coimbra, onde apanharam mais imigrantes sem documentos presos pelas autoridades, e levaram-nos para o aeroporto de Lisboa. Eram cerca de 200. Foi o “verão quente” de 2001. Estivemos na cidade de Tomar e no aeroporto a dar-lhes apoio e a denunciar estes actos criminosos e ilegais por parte do SEF e do Governo da altura. A comunicação social chegou a entrar no avião, alugado à Air Madeira por 5000 euros para deportar os imigrantes para os seus países de origem. Portugal fez uma expulsão coletiva que viola qualquer tratado internacional e viola a Declaração Europeia dos Direitos Humanos que proíbe a expulsão coletiva.

Também em Lisboa, o SEF, a GNR e a PSP cercaram um espaço à entrada da Expo, que foi cedido pela Câmara de Lisboa para albergar as pessoas que dormiam debaixo da ponte 25 de Abril. A autarquia queria “limpar a cara” da cidade. Na altura, as autoridades prenderam várias pessoas que não tinham documentos. Levaram-nas para prisões como a de Monsanto. Estivemos lá a dar-lhes apoio, e assistimos a condições totalmente infra-humanas. Estavam amontoadas, sem espaço sequer para se estenderem no chão. Às vezes as condições eram piores do que no tempo da PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado].

Nessa altura, os imigrantes eram presos, expulsos, maltratados, torturados, espancados. Desenvolvemos uma luta tremenda contra a prisão e expulsão das pessoas por não terem documentos. Não ter documentos não é crime. À época chamavam-lhes ilegais, agora já têm o cuidado de lhes chamar indocumentados. Atravessámos o deserto, fizemos um longo caminho para que hoje essas prisões não aconteçam, salvo algumas exceções. Andamos de norte a sul do país a prestar apoio a milhares de imigrantes nos tribunais e nas prisões

Hoje em dia há a notificação de abandono de 20 dias, quando a polícia verifica que o imigrante não está em processo de regularização. Isso é um “convite”, apenas. As pessoas tratam da sua documentação e acabam por ficar.

Acabar com a perseguição e criminalização explícita foi uma grande conquista.

A outra conquista deu-se em 2007, com a abertura de um processo permanente de regularização dos imigrantes.

Foram ainda feitas recentemente alterações ao artigo 88º, acabando com o poder discricionário do SEF. Passou a ser um processo de iniciativa do próprio imigrante. Antes, era preciso um parecer do diretor do SEF ou do ministro da Administração Interna para aceitar o pedido. Essa também foi uma vitória do associativismo encabeçado pela Associação Solidariedade Imigrante e dos imigrantes. Bem como a alteração das regras no que respeita à prova de entrada legal no espaço europeu que deixava mais de 90% dos imigrantes sem acesso aos documentos em plena clandestinidade, sem direitos básicos e elementares. Atualmente, se o imigrante não tem visto, mas tiver um ano de descontos, pode entrar no sistema. Um ano é tempo demais, é um castigo, temos de melhorar a lei. Abriu-se mão da obrigatoriedade da prova de entrada legal.

Por outro lado, que caminho ainda é necessário fazer?

Temos de preservar todas as conquistas alcançadas até ao momento e temos que continuar a luta, ir mais longe. Nomeadamente no que concerne à transformação do SEF, é necessário avançar com a sua restruturação, os imigrantes não têm de estar sujeitos e tratados por entidades policiais. Não podemos tratar os imigrantes como potenciais criminosos, terroristas ou outra coisa qualquer. A imigração não deve estar ligada à polícia.

Avançar com a restruturação do SEF, implicará necessariamente a criação de um Serviço Público de asilo e imigração, para que as pessoas possam dirigir-se à administração pública e ali possam regularizar a sua situação. Temos de estar muito atentos.

Só assim acabaremos com o sofrimento dos imigrantes e com a tortura pela qual passam em Portugal. As maiores ilegalidades que se cometem dizem respeito aos prazos que os imigrantes enfrentam para verem a sua situação regularizada. Esperam um ano, três anos, às vezes, até mais.

Continua a não haver a perceção de que a lei impõe prazos que o Estado não cumpre?

Exatamente. Portugal é um mau exemplo nesse aspeto. Os imigrantes desesperam. Têm a vida suspensa apesar de cumprirem todos os requisitos que lhes são exigidos. E falamos de requisitos bastante exigentes. Muitas vezes, as pessoas submetem-se a verdadeiros abusos e aguardam pela regularização para se libertarem de situações de trabalho forçado ou de habitação insalubre.

A luta pelos direitos dos imigrantes continua, portanto, a ser necessária?

Claro! São necessárias políticas públicas decentes em relação à habitação, não queremos o apartheid dos vistos gold. Queremos que o trabalho seja um bem central das pessoas que migram e que haja trabalho condigno para todos. Queremos serviços públicos de qualidade a que os imigrantes acedam em igualdade de circunstância. Não podemos abrir mão das conquistas alcançadas na lei de imigração, mas é preciso torná-las mais justas e humanas. Os tempos de espera têm de ser resolvidos com a maior urgência possível. E as máfias que vivem da exploração de imigrantes têm de ser combatidas e as vitimas protegidas.

Temos de continuar a lutar, não baixar os braços. É preciso continuar a levantar as nossas bandeiras e exigir mais direitos, igualdade e dignidade.

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