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Na procura de uma vida melhor... Décadas de espera por leis mais justas

O tema do serviço doméstico, desde há muitos anos, tem sido objeto de discussões, mas, tal como quando a minha mãe chegou a Portugal, foi alvo de poucas alterações para melhorar as condições de trabalho. Por Anabela Rodrigues.
Foto publicada em esquerdadiario.com.br

Sou uma pretoguesa e, por isso, o meu texto está impregnado de subjetividades naturais e explicáveis pelo facto de ter nascido em Portugal e ser filha de mãe e pai naturais da antiga colónia portuguesa chamada Cabo Verde. Recordo que a nossa democracia é jovem e que temos ainda resquícios em muitas mentes do regime político de Salazar e Marcello Caetano, que consideravam que esses territórios não eram colónias, mas sim parte integrante e inseparável de Portugal, considerando-o como uma Nação Multirracial e Pluricontinental.

Como mediadora Cultural na associação Solidariedade Imigrante - Associação para a defesa dos Direitos dos Imigrantes e Artivista no GTO LX - Grupo de Teatro do Oprimido, diariamente sou confrontada com histórias sobre o trabalho ou emprego e as suas condições que, em certa medida, vão moldando a sua vida e o “sonho” que os fez migrar.

A Solidariedade Imigrante, desde janeiro de 2021, voltou a ter um espaço dedicado ao Emprego. Criado na sequência da pandemia, utilizada como desculpa para manter o atropelo aos direitos dos trabalhadores. Durante este atendimento e trabalho cooperativo de ultrapassar obstáculos com os e as associadas, decidimos ir  aprofundando o tema do serviço doméstico que, desde há muitos anos, tem sido objeto de discussões, mas que, tal como quando a minha mãe chegou a Portugal, foi alvo de poucas alterações para melhorar as condições de trabalho.

É um sector sobretudo marcado por mulheres, e não vamos negar que, talvez devido ao patriarcado, a alguns setores contra a imigração, existe pouca vontade política de efetivamente alterar esta situação. Em Portugal, neste momento, o serviço doméstico nas grandes cidades, como Lisboa, Porto e Algarve, é feito por mulheres negras, mulheres imigrantes, mulheres que fizeram o êxodo rural e/ou de classe económica dita de baixo rendimento. É um sector marcado pela precariedade ao nível da proteção social. O Decreto-lei nº 235/92, de 24 de Outubro, é considerado uma lei especial, e tem ainda de forma gritante atropelos às garantias das trabalhadoras e alguns trabalhadores (há muito poucos homens) de outros sectores. As formas de compensação, as causas de despedimento e a forma como a ACT [Autoridade para as Condições do Trabalho] pode inspecionar deixam muito a desejar. Já para não falar que a grande maioria não tem direito ao subsídio de desemprego.

No meu trabalho com o Teatro do Oprimido, o espectáculo dos DRK- Grupo de Teatro Fórum da Cova da Moura e ainda com um grupo montado na SOLIM (nome que muitos sócios dão à associação Solidariedade Imigrante), levamos a palco cenas que invocam um tempo que vai desde a colonização à independência de um povo natural de Cabo Verde. Foi escravo, depois submisso. É convidado a ser mão-de-obra agrícola, industrial, serviçal, a fiscalizar os outros. Cidadãos que não ascendem na hierarquia social. Ganham independência. O que era português vira estrangeiro. Sonha-se a aventura da imigração. Deixa-se a terra. Em Portugal, as mesmas áreas de trabalho. Não há tempo para sonhar. Os sonhos são adiados. É preciso trabalhar. A luta vai ficar para depois. Os filhos veem a vida dura dos pais. O exemplo dos filhos é a exploração, os  obstáculos à documentação, a falsa integração/melhoria de vida, o apelo para ser alguém, tendo por base a economia, a ostentação. Vivem a pobreza. (parte da Sinopse de Sonhos de Papel dos DRK).

Parece condição sine qua non o processo de regularização, de legalização. É um caminho pelo qual os imigrantes e seus descendentes têm de passar, mesmo se muitos desses filhos e filhas tenham nascido, estudado e crescido em Portugal. Os obstáculos resultantes da legislação, modelo administrativo e falta de informação, dificultam o processo e acesso ao pleno exercício de uma cidadania participada. É preciso pagar para ser imigrante. Aparentemente trata-se apenas de um papel, mas é um papel que transforma a vida das pessoas. A dependência de um contrato (um papel cheio de letras que deveria ser uma garantia) nada mais é do que algo para mostrar ao SEF, à Segurança Social, à ACT, mas que, no fundo, quando se querem valer dos seus direitos, poucas vezes têm-se resultados positivos. A ida ao tribunal é um último recurso. A justiça é lenta. É preciso dinheiro no imediato para pagar as contas. Este sistema cria imigrantes e trabalhadores e trabalhadoras de 1ª, 2ª e 3ª Categoria. Mas porquê? E a que preço para muitas e muitos? Até quando ouvir “Sou empregada interna e o meu quarto é uma arrecadação”; “A minha patroa não pagou os descontos e o SEF diz que não posso ter residência”; “Eu trabalhei 14 anos para a patroa e a segurança social diz que não tenho direito a desemprego”; “A empregada do serviço doméstica é a primeira a levantar e a última a deitar e, mesmo durante o seu período de descanso, se a patroa ou o patrão chamar tem de se levantar”?

Eu trouxe algumas palavras sobre as histórias das mulheres do serviço doméstico, que resultam do atendimento e do encontro de mulheres do serviço Doméstico em Dezembro de 2021, na associação. Era como ouvir as palavras da minha mãe que chegou em Portugal em 1971, foi logo trabalhar e só passado duas semanas teve direito a meia tarde de folga. Ou ouvir a atriz de teatro Fórum dos Jeitosos dos Loios dizer que quando saiu da terra e veio servir para Lisboa, comia-se de pé porque não havia tempo para sentar.

Mas poderia ter trazido as palavras daqueles que vivem na agricultura, daqueles que foram explorados ou morreram na construção civil, daqueles que se levantam de madrugada para limpar escritórios, hospitais e afins, dos e das cuidadoras familiares, mas que parecem invisíveis aos discursos políticos do Teletrabalho. Em krioulo de Cabo Verde. por favor, senhores fazedores de lei “ka nhos kába ku nos mundo de imigraçon Pamodi N sta mutu nobu”. (Não terminem com o nosso mundo de sonho de imigração porque somos muitos novos”).

Ensinaram-me nas bancadas da escola que terminar com uma citação é sempre bom. Escolhi Stokely Carmichael. "I maintain that every civil rights bill in this country was passed for white people, not for black people". Escolhi esta frase porque sei que as leis do serviço doméstico, da imigração não foram feitas pelas oprimidas ou pelos oprimidos.

A luta continua.

Belinha (pretoguizar)

(...)

Neste dossier:

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