Está aqui
Viemos de muito longe…

Da Mãe África, através de savanas e desertos, cruzámos mares e espalhámo-nos pela Eurásia. Escalámos montanhas e atravessámos estepes infinitas, resistindo a frios glaciais e cobrindo-nos com peles de animais que aprendemos a caçar e/ou domesticar.
Pelo caminho fomos perdendo melanina, ganhando novos tons de amarelo e rosa mais ou menos pálido a que, por defeito, chamaram branco. Os cabelos clareando até se confundirem com o brilho do sol ou com as cores do fogo.
De olhos em bico, não nos detivemos nas margens dos grandes oceanos, a leste e a oeste. Há sempre um estreito, nos mares da Gronelândia, de Bering ou de Magalhães, para chegar às Américas de costa a costa… Até que esquecemos a nossa matriz comum em África.
Eis, em traços largos, a saga do chamado Homo Sapiens, apesar da pouca sapiência com que temos lidado com as outras espécies e connosco mesmos – esta é outra conversa que nos levaria ao estudo dos diferentes modos de produção e dos sistemas sociais que fomos construindo.
Uma coisa é certa: não saímos de nenhuma costela de Adão. Até o mais empedernido racista, machista ou eurocêntrico é devedor de tributo genético à grande avó africana Lucy, Mtoto ou aos mil nomes propostos por antropólogo/as.
A História da humanidade confunde-se, em larga medida, com a história das migrações. Estas só irão parar se e quando já tivermos dado cabo do planeta.
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O título deste artigo remete intencionalmente para o poema “Eu vim de longe, eu vou p’ra longe” de José Mário Branco, ele próprio um andarilho da canção de resistência. Como muitos portugueses que tentavam escapar à fome e à guerra colonial e colocaram a vida nas mãos de passadores que, a troco do vil metal, tantas vezes os abandonaram aquém ou além dos Pirenéus. Com sorte, conseguiam chegar ao “Eldorado” de Champigny ou a outro bidonville para construírem a Europa dos “trinta anos gloriosos”.
As mil e uma estórias e dramas que podemos ler neste dossier sobre imigração representam uma parte essencial da nossa História, tantas vezes varrida para baixo do tapete por quem mais lucra com a exploração desenfreada de seres humanos obrigados a deixar tudo para trás, na esperança sempre renovada de um futuro melhor.
Como aquela funcionária dos Registos de Beja que, ao balcão, se permite “dar a sua opinião”: “Eu não quero cá essa gente, são nojentos, o meu marido tem lá uns 30 ou 40…”. Esta estória, que me foi relatada na primeira pessoa, não acaba aqui; por muito que possamos compreender, não podemos ignorar, sob pena de nos tornarmos cúmplices da “minhoca que se infiltra na maçã”.
Por experiência própria, ao longo de 20 anos de ativismo na SOLIM, podia acrescentar milhares de estórias, mas optei por refletir um pouco sobre o sentido profundo das migrações.
Nestas duas décadas assisti a diversas vagas de imigração no Alentejo: do Leste europeu, maioritariamente ucraniana, nas grandes obras públicas (Alqueva, A-2) do início do século; do Brasil, na construção até à crise de 2008, na hotelaria e já na agricultura que nunca parou de crescer, mesmo nos anos da troika; da Ásia e da África, de onde provêm as legiões que alimentam as praças de jorna da moderna escravatura.
Um traço comum a todas as vagas migratórias: os primeiros anos de trabalho destinam-se quase exclusivamente a pagar o “tributo às máfias”, verdadeiras transnacionais da escravatura que os seguem desde a origem até ao destino e cobram até à última gota de suor e, por vezes, de sangue.
Como a transnacional israelita do trabalho temporário que trouxe os primeiros tailandeses para o Brejão, useira e vezeira em transformar mulheres filipinas em escravas domésticas para todo o serviço nos palácios do Médio Oriente.
No escândalo mediático de Odemira, despoletado pela Covid-19, ouvimos de viva-voz quem pague 15 ou 18 mil euros, na Índia ou no Paquistão, pelo “privilégio” de vir trabalhar para a Europa. As máfias não fazem descontos e, mantêm as famílias como reféns.
Nos olivais e amendoais de Alqueva e nas estufas de Odemira, a regra é a subcontratação de mão-de-obra. As explorações agrícolas em modo intensivo e superintensivo empregam pequenos grupos de trabalhadores permanentes. Recorrem por sistema a empresas de trabalho temporário ou “prestadoras de serviços”, constituídas na hora e que podem desaparecer num minuto. Os donos da terra, principais beneficiários do dumping salarial, multiplicam lucros e lavam as mãos de qualquer responsabilidade social.
Este modelo agrícola, além dos danos ambientais, nivela por baixo salários e direitos laborais. O objetivo do lucro fácil e imediato sobrepõe-se a critérios de qualidade e até à saúde dos trabalhadores e consumidores, com recurso intensivo a produtos químicos e fitofármacos.
Este sistema só é viável à custa da sobre-exploração dos imigrantes e do trabalho não declarado, da fuga ao pagamento de impostos, da segurança social e, por vezes, dos próprios salários – não são raros os casos em que os engajadores recebem o dinheiro da empreitada e “dão às de Vila Diogo”, sobretudo no final das campanhas.
À exploração laboral somam-se margens de lucro de 200% ou 300% no aluguer de “quartos” ou contentores sobrelotados – um prédio onde são forçados a coabitar 50 ou 60 homens, a 50 euros por cabeça, não custará mais de 1000 euros. O transporte de e para o trabalho, em carrinhas de 9 lugares que chegam a transportar 15 pessoas, é descontado até ao último cêntimo do salário mínimo, que pode ficar reduzido a 200 ou 300 euros.
Já vi numa folha salarial, ao fim de dois meses, um saldo negativo de 16 euros para a trabalhadora – é o esquema das cantinas em África, após a abolição oficial da escravatura: os trabalhadores eram livres, mas não podiam sair da fazenda, pois a dívida não parava de aumentar...
No limite, os documentos podem ser retidos pelos engajadores. Muitas destas situações enquadram-se na definição de trabalho escravo, adotada pela ONU e pela OIT e que se aplica a “qualquer sujeito que trabalhe forçado, por dívidas, em situação degradante e em jornada exaustiva”.
Por fim, uma nota de esperança no horizonte: há dias, 300 trabalhadores da Sudoberry, em Odemira, ao saberem que o administrador estava na empresa, dirigiram-se ao escritório. Reclamavam das 12 horas de trabalho diário, com apenas 30 minutos para refeição; de não terem água para beber no ambiente escaldante das estufas; e da falta de transparência da folha salarial: as horas-extra, ao fim de semana e aos feriados, são pagas pelos mesmos 6,22 euros.
Um jornal diário chamou-lhe “A revolta dos imigrantes de Odemira que perderam o medo”. Fixem a data: 11 de Fevereiro. Parece banal mas é uma gritante novidade que pode frutificar na selva laboral da imigração.
Termino invocando mais uma vez o poeta de tantas partidas e chegadas, desta vez no genial “FMI” de 1982:
“Neste cais está arrimado o barco sonho em que voltei
Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grândola Vila Morena”
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