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Serviço Doméstico: ainda fora do Código mas com menos discriminações

O “regime jurídico das relações de trabalho emergentes do contrato de serviço doméstico” vem do início da década de 1990 (Decreto-Lei n.º 235/92). É importante lembrar que o trabalho doméstico assalariado foi historicamente invisibilizado, menorizado do ponto de vista do seu reconhecimento social e económico, mas também marginalizado na lei. Até 1980, ao contrário do que acontecia com outros trabalhos, o serviço doméstico continuava a ser regulado pelo Código Civil de 1867. Mesmo a Lei do Contrato de Trabalho, de 1966, não incorporou esta atividade. Quando se definiu uma lei para o trabalho doméstico assalariado, considerou tratar-se de um regime especial, com lei própria. Quando, em 2003, se unificou várias leis laborais num Código do Trabalho, o serviço doméstico manteve-se à parte.
O que sabemos sobre serviço doméstico em Portugal?, estudo de Manuel Abrantes
Além de existir como um regime especial (o que acontece também, por exemplo, com trabalhadores marítimos ou com o regime dos trabalhadores desportivos), é sobretudo o conteúdo discriminatório da lei do serviço doméstico que choca. Pela lei atual, parcialmente alterada neste processo, as trabalhadoras do serviço doméstico (em 98% dos casos são mulheres) têm por lei um período normal de trabalho superior aos trabalhadores em geral (44 horas semanais, em vez das 40 horas). Só têm direito a receber metade do subsídio de natal (e pago até 22 de dezembro!). As causas para o despedimento são muito mais amplas do que as aplicáveis aos trabalhadores em geral e nem precisam de um comportamento culposo por parte da trabalhadora. Em caso de cessação de contrato a prazo a compensação nem sempre se aplica. Não são definidas condições mínimas de habitabilidade no caso das trabalhadoras alojadas. O tempo de disponibilidade não é contabilizado para as “internas” (ou seja, só é contado o tempo de trabalho “efetivamente prestado”) e o seu repouso pode ser interrompido com uma grande latitude. O salário mínimo, instituído em 1974, era diferente para as “empregadas domésticas”. Até 2004 havia em Portugal o salário mínimo geral e um outro, mais baixo, para estas trabalhadoras. Que a correção destas gritantes injustiças tenha merecido pouca atenção ao longo de décadas é sinal do apoucamento destas trabalhadoras na nossa sociedade e no ordenamento legal. Mesmo sendo uma realidade que abrange, de acordo com as estimativas da OIT, 109 mil trabalhadores em Portugal.
Chumbada inclusão do serviço doméstico no Código do Trabalho. Clarificada aplicação subsidiária do regime geral.
O Bloco propôs uma mudança paradigmática no enquadramento do trabalho doméstico assalariado: já não uma lei especial, mas sim inclusão no Código do Trabalho, como uma modalidade específica de contrato, salvaguardando algumas particularidades que existem nesta atividade, desde logo, o facto de os empregadores serem famílias, e não empresas, e do local de trabalho ser um domicílio privado, o que coloca a necessidade de adaptação de algumas normas gerais. Mas acabando com a lógica de marginalização legislativa e passando a integrá-las na lei geral, sendo aplicáveis as regras gerais, exceto em situações em que tal se justifique. Esta mudança de fundo, que só o Bloco propôs, foi rejeitada por PS e PSD, tendo o PCP (cujas propostas de alteração eram relativas à lei especial) acompanhado a iniciativa do Bloco com o voto favorável.
A manutenção de um regime especial tem originado debates sobre os casos que não estão definidos pela lei do serviço doméstico. Por regra, o entendimento é que se aplicam, nesses casos, as disposições do Código. Ainda assim, para sanar essa questão, foi aprovada por unanimidade uma proposta do PCP que estabelece que “às relações emergentes do contrato de trabalho de serviço doméstico aplicam-se as normas do Código do Trabalho em tudo o que não esteja previsto no presente regime”.
Melhorias na lei do serviço doméstico e fim de algumas discriminações
Foi eliminada a regra discriminatória sobre subsídio de natal, aplicando-se a regra geral (valor correspondente a um salário mensal, pago em novembro). O período normal de trabalho passa para as 40 horas semanais. O repouso noturno passa das oito para as onze horas consecutivas, como no regime geral. No regime do serviço doméstico aplicam-se os mesmos feriados que no regime geral. À cessação de contrato a prazo no regime de serviço doméstico aplica-se o que está no Código de Trabalho, que dispõe que há direito a compensação quando o contrato termina por observação do seu termo. Para que haja justa causa de despedimento por comportamento do trabalhador, este passa a ter de ser considerado culposo. A generalidade destas alterações foram aprovadas por unanimidade, registando-se apenas a abstenção do PSD sobre feriados.
Tempo de disponibilidade continua a não contar para trabalhadoras alojadas
Contudo, algumas propostas importantes do Bloco, para além da mudança paradigmática de inclusão no Código, foram rejeitadas, o que motivou a abstenção do Bloco (e do PCP) no art. 28.º (sobre cessação de contrato) e o voto contra do Bloco no n.º 2 do art. 14.º (tendo PS e PSD votado a favor e o PCP optado pela abstenção). Esta posição do Bloco, acompanhada de uma declaração de voto, prende-se com o facto de, na “duração de trabalho”, se definir que “no caso dos trabalhadores alojados apenas são considerados os tempos de trabalho efetivo”. Esta norma, que vem da lei de Cavaco de 1992, é, no nosso entendimento, incompatível com a Diretiva Europeia de 2003 sobre tempos de trabalho, que preconiza a contabilização do tempo de disponibilidade como tempo efetivo de trabalho, e também da Convenção da OIT sobre trabalho doméstico. O caso é particularmente grave porque os trabalhadores alojados podem, por lei, ver o seu tempo de descanso interrompido quando tenham sido contratados para assistir a doentes ou crianças até aos três anos, o que significa que o seu tempo de disponibilidade é, potencialmente, ilimitado e até, neste sentido, não remunerado integralmente.
Mantém-se regime discriminatório de proteção social e subsídio de desemprego no serviço doméstico
O Bloco propôs a revisão do regime de segurança social no serviço doméstico (um novo art. 26.º-C a incluir na proposta de lei do Governo). O objetivo era rever um regime totalmente discriminatório que se aplica às empregadas domésticas. Para lá da questão da informalidade, o que obviamente desprotege estas trabalhadoras, mesmo quando as suas relações de trabalho estão formalizadas e elas fazem descontos, na esmagadora maioria não têm acesso ao subsídio de desemprego. No atual regime específico de proteção social destas trabalhadoras, elas precisam de ter um contrato mensal a tempo inteiro e de não optar pelo chamado “regime convencionado" (descontos mais baixos, em função do indexante de apoios sociais e não do salário). Ora, a esmagadora maioria das trabalhadoras não tem um contrato a tempo inteiro, mas trabalha com vários empregadores, e em geral optam pelo regime com contribuições menores. Esta situação coloca-as numa situação de imensa desproteção, o que aliás motivou já a crítica da OIT sobre esta matéria e obrigou a que, no período pandémico, fossem criados apoios extraordinários para estas trabalhadoras. A proposta do Bloco foi rejeitada com os votos contra do PS, os votos a favor do PCP e do BE e a abstenção do PSD.
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