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O novo artigo 12.º-A e a presunção de laboralidade do trabalho nas plataformas digitais

É bastante positivo que o Direito do Trabalho acolha estes novos prestadores de serviços via plataformas no seu seio, construindo um regime laboral próprio e ajustado às características destas novas formas de prestar serviços. Mas, sublinhamos, um regime laboral. Artigo de Teresa Coelho Moreira.
Teresa Coelho Moreira. Imagem Esquerda.net

Atualmente há uma app para tudo ou quase tudo, desde atividades mais simples, como entrega de alimentação, até atividades mais complexas, como prestação de serviços jurídicos, surgindo todos os dias novas plataformas digitais. Na verdade, em teoria, qualquer atividade pode ser transformada numa tarefa que pode ser realizada através de plataformas digitais e vimos isso durante a pandemia. 

Perante esta situação, uma das questões que assume uma enorme importância é a da qualificação das relações existentes entre quem presta a atividade nas plataformas digitais e estas últimas, com inúmeros casos já julgados um pouco por todo o mundo.

Tendo em atenção esta situação, aumenta a importância do estabelecimento de presunções legais. Contudo, a que está prevista no art. 12.º do CT, apesar de positiva, foi perspetivada para as relações de trabalho típicas, para as relações de trabalho na era pré digital. Para as novas formas de prestar trabalho, para o trabalho nas plataformas digitais, importa reconhecer a inadequação da presunção de laboralidade para enfrentar os problemas emergentes das novas formas de trabalhar através de plataformas digitais. Fatores como, inter alia, a propriedade dos equipamentos e instrumentos de trabalho, a existência de um horário de trabalho determinado pelo beneficiário da atividade e o pagamento de uma retribuição certa, são indícios clássicos de subordinação jurídica, mas são indícios escassamente operacionais para enfrentar os novos tipos de dependência resultantes da prestação de serviços para uma determinada empresa, via plataformas.

É neste contexto que o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho 2021 traça uma linha de rumo na qual nos revemos e que consideramos dever ser seguida, podendo ler-se, como uma das linhas de reflexão para as políticas públicas em matéria de plataformas digitais: “Criar uma presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais, para tornar mais clara e efetiva a distinção entre trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria, sublinhando que a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital”.

Na esteira do Livro Verde, foi apresentada na Proposta de Lei n.º 15/XV, o artigo 12.º-A, com a epígrafe Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, que na versão inicial tinha uma redação que, segundo a nossa opinião, não era a melhor porque a presunção era estabelecida em termos iguais entre a plataforma digital e quem presta a atividade na mesma e entre este e o intermediário (não apenas entre os dois primeiros, criando-se, aqui um terceiro ente), o que não estava de acordo com o que tinha sido defendido nas Linhas de Reflexão para Políticas Públicas no Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho 2021.  Entretanto, a 20 de outubro de 2022, foi apresentada uma proposta de alteração a este artigo que melhorou, substancialmente, a redação do mesmo, que foi alterada a 15 de dezembro para uma versão ainda melhor e que é a que consta da versão final aprovada. Reconhece-se que é um artigo muito extenso – 12 números - e complexo, mas bastante melhor do que as duas anteriores versões apresentadas e com um saldo final que nos parece claramente positivo, por vários motivos.

Em primeiro lugar, consideramos de saudar que a presunção consagrada no n.º 1 passe a ser estabelecida entre a plataforma digital e o prestador de atividade que nela opera. Desaparece deste número a figura do operador intermediário. E este é um ponto muito positivo, aliás em conformidade com a Proposta de Diretiva Europeia relativa à melhoria das condições de trabalho nas plataformas digitais, porque a existência deste ente de permeio traduzia uma mudança de visão do legislador e do próprio modelo de negócios da economia colaborativa. 

Na verdade, a existência deste intermediário poderia (e poderá) levantar alguns problemas. Desde logo, porque esta terceira pessoa pode ser quem trabalha na plataforma, mas transvestido/mascarado de pessoa coletiva como acontece em vários casos de motoristas de plataformas, ainda que aí por imposição legal através da lei 45/2018, de 10 de agosto. Contudo, quanto a esta lei, a denominada Lei da TVDE, o legislador também resolveu clarificar, e bem quanto a nós, porque uma questão que se levantava nas anteriores versões era a de saber como conciliar a remissão da lei 45/2018, de 10 de agosto, para o art. 12.º do CT com o atual art. 12.º-A. Ora, agora, o legislador, no n.º 12 do art. 12.º-A, respondeu no sentido de defender que a presunção prevista no n.º 1 deste artigo também se aplica “às atividades de plataformas digitais, designadamente as que são reguladas por legislação específica relativa a transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica”. Isto significa, na nossa opinião, que a lei 45/2018, de 10 de agosto, terá de ser alterada em vários aspetos.

Claro que a figura do intermediário não desaparece totalmente, surgindo no n.º 5 deste artigo, mas apenas a título subsidiário e como uma forma de a plataforma tentar ilidir a presunção. Porém, mesmo nesta situação, a lei clarificou, e bem mais uma vez, que cabe ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora. 

Por outro lado, outro aspeto que nos parece muito positivo e que já estava previsto na alteração ocorrida a 20 de outubro de 2022, é a consagração da responsabilidade solidária prevista agora no n.º 8, assim como o que está no n.º 7, relativamente à igualdade e não discriminação. 

O legislador, ao ter aprovado esta alteração de redação, e, em termos mais gerais, ao ter criado esta presunção, tornou Portugal o primeiro ordenamento jurídico a ter uma presunção tão ampla, porque se aplica às plataformas de crowdwork online e de crowdwork offline, tal como consta da definição de plataforma digital do n.º 2. E isto é muito positivo, até porque de uma coisa temos a certeza. Sem dúvida não temos nas plataformas digitais um trabalhador do século XIX, ou até do século XX, mas com toda a certeza que, em inúmeras situações, temos um trabalhador do século XXI. Temos um trabalhador subordinado de novo tipo, com contornos distintos dos tradicionais, mas, em última instância, ainda dependente e subordinado na forma como desenvolve a sua atividade.

Tendo isto em atenção, um outro aspeto que nos parece positivo é a referência, feita no n.º 9, a que só se aplicarão as normas previstas no presente Código “que sejam compatíveis com a natureza da atividade desempenhada”, tendo-se acrescentado, e quanto a nós muito bem, “nomeadamente o disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação”. Isto é bastante importante porque chama a atenção para um aspeto que é muitas vezes referido pelas plataformas como impedindo a aplicação das regras de Direito do Trabalho e que é a incompatibilidade de vários aspetos das relações de trabalho ditas clássicas com estas novas formas de prestar trabalho. Conforme fomos vendo com a evolução do Direito do Trabalho, ele tem suficiente maleabilidade e flexibilidade para responder a estas situações, por mais disruptivas que elas se apresentem.

O balanço final que fazemos deste artigo, apesar de não ser perfeito (mas temos muitas dúvidas que algum o seja), é bastante positivo porque permite que o Direito do Trabalho possa vir a acolher estes novos prestadores de serviços via plataformas no seu seio, procedendo à devida adaptação regimental, isto é, construindo um regime laboral próprio e ajustado às características destas novas formas de prestar serviços. Mas, sublinhamos, um regime laboral. E foi isto que o legislador começou a fazer ao consagrar esta presunção de laboralidade.


Teresa Coelho Moreira é doutora em Direito. Professora Associada com Agregação da Escola de Direito da Universidade do Minho. Membro integrado do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação e Coordenadora do Grupo de Investigação em Direitos Humanos do mesmo. Coordenadora científica do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho 2021. [email protected]

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