Está aqui

O longo pavor do PS perante o lóbi das plataformas digitais

Prevaleceu o reconhecimento do direito ao contrato de trabalho com as plataformas, incluindo TVDE. A imposição de contrato com intermediários fica sujeita a decisão em tribunal. Empresas são obrigadas a informar trabalhadores sobre uso de algoritmos e inteligência artificial. Marcada pelo intenso lóbi das plataformas, a elaboração da nova lei foi uma novela de avanços e recuos do PS sobre uma questão central: a figura do intermediário, alma deste negócio. PS defendeu nada menos do que quatro posições diferentes. PCP também foi mudando.
Foto de Pedro Gomes Almeida.

A primeira posição do PS sobre a regulação da atividade de plataformas como a Uber, a Glovo ou a Bolt, foi apresentada na versão inicial da Agenda do Trabalho Digno em outubro de 2021, replicando a presunção de laboralidade proposta pelo Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, uma série extensa de indícios para facilitar o reconhecimento do contrato de trabalho com as plataformas digitais. Essa proposta não previa a figura do intermediário. No trabalho em plataformas digitais, o intermediário é uma empresa - muitas vezes a própria unipessoal do estafeta - que assume o vínculo ao trabalhador e assim liberta a plataforma de qualquer responsabilidade laboral e contributiva.

Em junho de 2022, quando entregou no parlamento a proposta de lei da Agenda, o Governo desfigurou os indícios de laboralidade inicialmente previstos, reescrevendo a proposta original e introduzindo nela (sob aplauso das multinacionais do setor) a figura do intermediário. 

Em setembro, o grupo parlamentar do PS propôs uma alteração à proposta do Governo que, mantendo o intermediário, melhorava parcialmente os indícios e introduzia a responsabilidade solidária entre “operadores intermédios” e plataformas - as segunda teriam que responder também por eventuais abusos cometidos pelos primeiros. O Bloco colocou o PS sob fogo, expondo as contradições entre as posições dos socialistas no Parlamento e no Conselho Europeus e as suas posições a nível nacional. 

O PS acabou por entregar, a 15 de dezembro de 2022, uma nova proposta (a quarta versão para o mesmo tema), em que mitiga a presença do intermediário, sublinhando que a relação laboral é, em princípio, com a plataforma e clarificando que, caso esta alegue haver um intermediário, terá de ser um tribunal a decidir qual é, afinal, o empregador.

Bloco consegue incluir TVDE na presunção de laboralidade, clarificar direitos e intervenção da ACT

Depois de adiamentos, foram votadas e aprovadas três propostas importantes do Bloco. A primeira, alarga ao regime dos TVDE a presunção de contrato de trabalho entre plataforma e trabalhador, frustrando assim os esforços dos operadores intermediários que (com a Autoridade de Mobilidade e Transportes do seu lado) tinham defendido que a nova "presunção de laboralidade" não se aplicaria ao sector, por este obedecer a uma lei específica. 

Foi aprovada também uma proposta do Bloco que clarifica direitos resultantes do reconhecimento do contrato: acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho e igualdade e não discriminação. 

Finalmente, uma vez que a aplicação desta presunção e o reconhecimento do contrato dependem da iniciativa do trabalhador ou da inspeção do trabalho, no primeiro ano de vigência da nova lei será realizada uma campanha extraordinária da Autoridade para as Condições de Trabalho, que pode acionar o reconhecimento do contrato no setor das plataformas digitais. Ao fim de um ano, a ACT terá de apresentar um relatório, a discutir publicamente, com número de inspeções realizadas e contratos celebrados.

O PS rejeitou várias outras propostas do Bloco sobre este tema, incluindo a que obrigava as plataformas a terem um espaço físico em Portugal, para atendimento público e com pelo menos um trabalhador para esse efeito.

Avanço na presunção de contratos com a plataforma, com manutenção mitigada de operador intermédio

O Bloco votou a favor de todos os números do artigo em causa que previam o contrato de trabalho com a plataforma e votou contra os pontos que mencionavam o intermediário. A direita e o PCP votaram inicialmente contra todas as normas que procuravam regular o trabalho em plataformas, argumentando, em ambos os casos, que a lei existente é suficiente para regular esta nova forma de prestação de trabalho. Nesta perspetiva, bastaria a presunção de laboralidade já prevista no art. 12.º do Código do Trabalho. Mas é sabido que as plataformas escapam facilmente a esses indícios pré-digitais e é por isso que, na realidade, não há contratos. O PSD, além de querer manter a lei atual sem alterações, invocou a necessidade de aguardar pela diretiva europeia antes de qualquer alteração à lei portuguesa. O Bloco opôs-se a estes dois argumentos. 

No início de fevereiro, a proposta de Diretiva Europeia sobre esta matéria foi aprovada no Parlamento Europeu, tendo o voto favorável de toda a esquerda europeia. Na verificação final dos votos no parlamento português, o PCP solicitou a alteração do seu sentido de voto, deixando o voto contra e passando a abster-se nas normas relativas às plataformas. 

Empregadores passam a ter de informar trabalhadores sobre uso de algoritmos e inteligência artificial 

Foi aprovada uma proposta do Bloco que prevê o dever de informação, por parte do empregador, sobre “os parâmetros, os critérios, as regras e as instruções em que se baseiam os algoritmos ou outros sistemas de inteligência artificial que afetam a tomada de decisão sobre o acesso e a manutenção do emprego, assim como as condições de trabalho, incluindo a elaboração de perfis e o controlo da atividade profissional”. Além do Bloco, teve os voto favorável do PS, o voto contra do PCP e a abstenção do PSD. O PCP argumentou ser “contra os algoritmos”, embora depois viesse a mudar o sentido de voto para abstenção, relativamente à inclusão desta norma nos artigos relativos a CT e sindicatos. Ora, é evidente que só pode cumprir-se o direito de informação das organizações dos trabalhadores sobre os algoritmos se houver dever de informação por parte do empregador.

Empresas terão de informar Comissões de Trabalhadores e consultar sindicatos sobre algoritmos 

Foi aprovada, assim, a proposta do Bloco que prevê a inclusão, no direito à informação das comissões de trabalhadores (art. 424.º), os “parâmetros, os critérios, as regras e as instruções em que se baseiam os algoritmos ou outros sistemas de inteligência artificial”, que são crescentemente usados na distribuição da atividade e até na manutenção ou não do emprego. PS votou a favor e PCP e o PSD abstiveram-se. Uma redação no mesmo sentido foi ainda incluída, por proposta do PS, no art. 466.º do Código, relativo à "Informação e consulta de delegado sindical”. Assim, os sindicatos passam a ter de ser obrigatoriamente consultados também nestas matérias da gestão algorítmica da atividade. A proposta foi aprovada com voto a favor do PS e Bloco e abstenção do PSD e do PCP.

(...)

Neste dossier:

Trabalho digno? Mudanças importantes sobre fundo de estagnação

Ao longo de cinco meses e mais de vinte reuniões, o Parlamento debateu a alteração às leis laborais. As confederações patronais mostram-se zangadas com o resultado e ameaçam romper o acordo que António Costa lhes ofereceu, embrulhado numa inédita borla fiscal, em outubro passado. O governo andou aos ziguezagues entre a pressão dos patrões e as exigências da esquerda. O resultado final é agora conhecido. 

Parlamento aprova alterações às leis laborais

A chamada Agenda do Trabalho Digno foi aprovada com votos do PS e abstenção do PSD. Bloco sublinha que voto contra não desvaloriza alterações para as quais contribuiu decisivamente mas “dá expressão política ao repúdio pelo bloqueio do PS a mudanças estruturais” de que depende o reconhecimento da dignidade do trabalho em Portugal.

Algumas mudanças, mantendo o desequilíbrio

O deputado José Soeiro, que conduziu a intervenção do Bloco no processo de alteração às leis do trabalho, apresenta dez notas para um balanço desta reforma laboral.

PS e direita juntos contra mudanças de fundo

No essencial, permanecem intocados os cortes da troika nas férias, no trabalho suplementar e no descanso compensatório. O mesmo para bancos de horas e adaptabilidades de horário, exceto para trabalhadores com filho menor até três anos ou com filho com deficiência ou doença crónica. PS e PSD voltam a adiar aplicação das 35 horas semanais no privado.

Patrão dos patrões despede-se com carta a atacar as propostas do Bloco nas leis laborais

Na carta enviada aos empresários, o líder da CIP aponta baterias às propostas que o Bloco conseguiu aprovar na discussão na especialidade da Agenda do Trabalho Digno. A irritação de António Saraiva "mostra que os patrões estão muito mal habituados pelo Governo", diz o deputado bloquista José Soeiro.

O longo pavor do PS perante o lóbi das plataformas digitais

Prevaleceu o reconhecimento do direito ao contrato de trabalho com as plataformas, incluindo TVDE. A imposição de contrato com intermediários fica sujeita a decisão em tribunal. Empresas são obrigadas a informar trabalhadores sobre uso de algoritmos e inteligência artificial. Marcada pelo intenso lóbi das plataformas, a elaboração da nova lei foi uma novela de avanços e recuos do PS sobre uma questão central: a figura do intermediário, alma deste negócio. PS defendeu nada menos do que quatro posições diferentes. PCP também foi mudando.

Parlamento Europeu aprova negociação sobre regulação laboral das plataformas digitais

A maioria dos eurodeputados votou a favor do mandato de conversações com os Estados-membros sobre o vínculo laboral dos trabalhadores das plataformas digitais. "A diretiva estabelece o que todos sabíamos: o trabalho de plataformas é trabalho. Agora tem de ser trabalho com direitos", afirmou o eurodeputado do Bloco José Gusmão.

O novo artigo 12.º-A e a presunção de laboralidade do trabalho nas plataformas digitais

É bastante positivo que o Direito do Trabalho acolha estes novos prestadores de serviços via plataformas no seu seio, construindo um regime laboral próprio e ajustado às características destas novas formas de prestar serviços. Mas, sublinhamos, um regime laboral. Artigo de Teresa Coelho Moreira.

Teletrabalho: contratos definirão despesas a reembolsar

Foi uma das vitórias do Bloco neste processo. O acréscimo de despesas do trabalhador em teletrabalho terá, por regra, uma compensação mensal fixa, inscrita no contrato, individual ou coletivo. Se for aferido por comparação de faturas, esse valor resultará da comparação com o mês homólogo em trabalho presencial e não com o do ano anterior. Pagamento obrigatório de subsídio de alimentação não foi aprovado.

Compensações por despedimento: PS cede aos patrões

Com o apoio da direita, PS chumbou as propostas para reposição da regra de 30 dias de compensação por cada ano trabalhado. Única mudança já era curta - aumento de 12 para 14 dias - e ficou insignificante quando o PS cedeu aos patrões, e recuou na sua própria proposta de aplicação dos 14 dias ao trabalho prestado desde 2014. Mantém-se a regra indigna que impede o trabalhador de contestar um despedimento ilícito se já tiver recebido a compensação. 

360 graus: após tentativa de recuo, PS regressa a medida do Bloco

Depois de ver aprovada a proibição da renúncia dos créditos sobre salários ou subsídios por parte dos trabalhadores no fim do contrato, o líder dos patrões protestou e o PS voltou atrás. Depois prometeu voltar a aprovar a medida, com uma nuance.

Contratação coletiva alargada aos trabalhadores em outsourcing, mas caducidade continua

PS remete tudo para arbitragem: sem acordo, as confederações passam a poder requerer que a convenção coletiva se prolongue até decisão em tribunal arbitral; este validará, ou não, os fundamentos invocados pelos patrões para a denúncia da convenção. Chumbada a reposição da regra, em que, na ausência de acordo, mantinha-se as convenções em vigor, a caducidade dos contratos permanece, embora mitigada pela possibilidade de evitar vazios através de arbitragem.

Contratação coletiva e arbitragem na “Agenda do Trabalho Digno”

Jurista e professor da Universidade de Coimbra, João Leal Amado valoriza duas alterações à lei: a obrigatoriedade de fundamentação da denúncia da convenção coletiva, que passa a precisar de confirmação por tribunal arbitral, e a atribuição às associações sindicais ou patronais do direito de, na ausência de acordo para nova convenção, requererem a arbitragem necessária e assim manter a sobrevigência da convenção até decisão arbitral.

Trabalho temporário e contratos a prazo: precariedade não se resolve com ajustes

As agências de trabalho temporário lucram com o aluguer de trabalhadores a outras empresas. É uma atividade que não deveria existir, nem estar legalizada. A informação sobre necessidades de mão de obra deveria ser prestada como serviço público, a partir de  instituições como o IEFP, que deveriam ser reconfiguradas para a poderem realizar sem prejuízo para os trabalhadores. São, por isso, positivas todas as medidas que introduzem formas de controlo e limitações às ETT. Compensações por contrato a prazo voltam a valor pré-troika.

Serviço Doméstico: ainda fora do Código mas com menos discriminações

Apesar de chumbada a necessária integração no Código do Trabalho, a revisão da lei do serviço doméstico eliminou discriminações sobre subsídio de natal, horário semanal, repouso noturno, feriados e compensação na cessação de contrato a prazo. Discriminação mantém-se na proteção social e no subsídio de desemprego.

Trabalhadores por turnos e noturnos ficam sem resposta

Quase um quinto das pessoas que trabalham fazem-no por turnos mas o PS recusa qualquer mudança na lei que regula este pesado regime de trabalho. Quanto à licença para laboração contínua, são permitidos motivos que qualquer empresa poderá alegar. Portugal continuará a ter fábricas de rolhas ou de batata frita a operar 24/24 horas.

Cuidadores: nova licença anual de cinco dias terá regras muito apertadas

A licença anual, não remunerada, terá de ser marcada com antecedência de dez dias e gozada numa única vez. Outras normas reconhecem direitos: a horário flexível, a proteção em caso de despedimento, a dispensa de prestação de trabalho suplementar e ao trabalho a tempo parcial, embora por apenas quatro anos.

Reforma das leis laborais: um balanço provisório

Henrique Sousa regista que esta reforma não elimina ou enfraquece direitos dos trabalhadores - dado o histórico -, embora falhe numa ambição reformista mais exigente. A crítica maior é ao que não está e devia estar e à oportunidade assim perdida de se ir mais longe. Agora será preciso vencer, pela acção colectiva, muita inércia, rotina e a resistência patronal nas matérias em que há avanços.

Sindicatos com mais direitos, novos mecanismos de inspeção

Sindicatos poderão entrar nas empresas mesmo que lá não haja sindicalizados. Autoridade para as Condições do Trabalho, Fisco e Segurança Social poderão cruzar dados no combate à precariedade. ACT e Ministério Público passam a poder suspender despedimentos ilícitos. Mesmo depois dos escândalos sobre abusos contra trabalhadores imigrantes na agricultura, PS chumba proposta que responsabilizaria empresas utilizadoras pelos abusos cometidos por intermediários sobre trabalhadores ao serviço daquelas.

Proibidos estágios abaixo do salário mínimo

Estagiários passam a beneficiar de cobertura integral na segurança social. Em contrapartida, mantém-se o alargamento do período experimental - símbolo do compromisso de António Costa com a precariedade -, apenas com mínimas alterações. Mais informalidade também na contratação de estudantes em período de férias, ficando dispensado qualquer escrito.

Mais uma oportunidade perdida no apoio à parentalidade

PS fez um truque de publicidade enganosa sobre o aumento da licença parental exclusiva do pai. PS e direita chumbam propostas para promover amamentação e proteger pais de bebés prematuros.