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Plataformas digitais: Não podemos aceitar que trabalhadores sejam “novos escravos virtuais”

Audição parlamentar promovida pelo Bloco contou com intervenções de Marcel Borges, dos Estafetas em Luta, do dirigente sindical Fernando Fidalgo, de Núria Soto, da plataforma Riders X Derechos, da eurodeputada Elisabetta Gualmini, e da co-coordenadora científica do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, Teresa Coelho Moreira.
Fotos Esquerda.net.

Ouça aqui a transmissão integral da audição no podcast Mais Esquerda.

Na apresentação da iniciativa, o deputado José Soeiro assinalou que se estima que 100 mil pessoas trabalhem em Portugal através de plataformas digitais, e explicou que o Bloco quis nesta audição juntar uma experiência internacional muito próxima, do Estado Espanhol, concretamente a de Barcelona, juntar os contributos de pessoas que estejam a organizar estafetas e motoristas de TVDE, seja através de movimentos mais informais ou da atividade sindical, da eurodeputada Elisabetta Gualmini, relatora da diretiva sobre plataformas digitais, e de Teresa Coelho Moreira, co-coordenadora do Livro Verde do Futuro do Trabalho, jurista e uma das maiores especialista neste tema.

O dirigente bloquista expressou a sua preocupação face à nova versão da proposta do governo sobre o trabalho em plataformas digitais: “o que é mais inquietante é que ela está em total contra-corrente quer em relação à jurisprudência, quer em relação à diretiva, quer em relação ao Livro Verde”, frisou José Soeiro.

Em causa está, por exemplo, a introdução, na nova versão, da possibilidade da existência de um intermediário entre a plataforma e o trabalhador – o operador de serviço -, o que, na prática, se traduz na desresponsabilização de multinacionais como a Glovo e a Uber no que respeita às suas obrigações laborais.

“Não é um problema sectorial, é um modelo económico que nos afeta como sociedade”

Núria Soto, da plataforma Riders X Derechos, e que integra a cooperativa de estafetas Mensakas, desmontou a falácia de que a existência de uma relação laboral é contra os interesses dos trabalhadores das plataformas digitais e atenta contra o seu desejo de flexibilidade e liberdade.

“Que flexibilidade e que liberdade? A de poder trabalhar de segunda a domingo 14 horas por dia?”, questionou.

De acordo com Núria Souto, o que as multinacionais do setor pretendem é “legalizar a fraude”. A ativista destaca que a figura de um “autónomo digital” não tem “nada de inovador” e representa um “retrocesso de direitos” ao criar “novas figuras legislativas” em nome da flexibilidade e liberdade que têm como fim livrar as plataformas de todas as responsabilidades. Acresce que o próprio Supremo Tribunal deixou claro que a existência de um vínculo laboral “não é incompatível com certa flexibilidade”.

Núria explicou que a Lei Rider surgiu na sequência de várias greves, protestos e processos judiciais, com mais de 50 sentenças – individuais e coletivas –, uma delas do Supremo Tribunal, a reconhecer o vínculo laboral.

A ativista sublinhou ainda que a precariedade que assola os trabalhadores das plataformas “não é um problema sectorial, é um modelo económico que nos afeta como sociedade” e apontou que, no Estado Espanhol, os estafetas tiveram o “apoio de vários movimentos sociais que também estão a ser uberizados”.

No país vizinho, o movimento dos estafetas não negociou os direitos: “exigimo-los, porque já os tínhamos”, vincou Núria. Sobre a aplicação da lei, explica que o problema reside no facto de as plataformas não cumprirem a legislação e vigorar um sistema de total impunidade.

Não podemos fechar os olhos face a “desumana condição” dos estafetas

Marcelo Borges, do movimento Estafetas em Luta, do Porto, afirmou que estamos a “começar a abrir a caixa de pandora das plataformas digitais de entrega de comida”.

Marcelo fez um breve retrato das condições de trabalho no setor, no qual os trabalhadores “não têm direito a atendimento presencial, ficando à mercê da sorte de um suporte online muito ineficiente para resolver os problemas de trabalho, onde as plataformas bloqueiam os estafetas ao seu bel-prazer e sem justificação ou com uma justificação indevida, sem dar hipótese a qualquer tipo de defesa por parte dos estafetas”.

O ativista mencionou ainda o problema da inexistência de um seguro de vida eficaz, da necessidade dos estafetas comprarem todos os equipamentos de trabalho e de, estando sujeitos a todo o tipo de intempéries, não serem contemplados com uma bonificação justa.

Marcelo explicou, por outro lado, que a Glovo reduziu o valor do pagamento por quilómetro percorrido, que é a base de cálculo para o estafeta calcular quanto vai ganhar por corrida, de 42 cêntimos para 24 cêntimos. Esta foi a forma da multinacional “agradecer o trabalho dos estafetas pelo seu empenho durante a pandemia”, lamentou.

Já a Uber “não reajusta o tarifário há mais de dois anos, sendo que, para qualquer pedido de comida, o percentual do valor cobrado aos restaurantes pode chegar aos 30%”. Recentemente, os trabalhadores tiveram conhecimento de que a plataforma alega que 15% lhe são destinados e os outros 15% pertencem aos estafeta, “mas não é assim”, apontou o ativista.

Sublinhando que as empresas multinacionais aproveitam-se da precariedade dos estafetas, Marcelo exortou o Parlamento a “cumprir o seu papel constitucional e legislar para trazer dignidade aos trabalhadores”.

Ao contrário do que tem vindo a ser dito, o estafeta esclareceu que, para a grande maioria dos trabalhadores, esta atividade é o principal, ou até mesmo o único, sustento da família.

Marcelo denunciou ainda a intransigência das multinacionais nas tentativas de negociação. Estas negaram-se a comparecer em reuniões na DGERT – Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho e, nas instalações sindicais, não aceitaram qualquer responsabilidade e nem sequer assinar a ata de presença.

O ativista enfatizou que não podemos “fechar os olhos à desumana condição de trabalho dos estafetas em Portugal” e nem permitir que os trabalhadores das plataformas se tornem nos “ novos escravos virtuais”.

“Não somos descartáveis”, vincou, pedindo o apoio inequívoco dos parlamentares “para oferecer mais dignidade e respeito ao trabalhador estafeta”.

É preciso acabar com a “competição selvagem”

Fernando Fidalgo, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal (STRUP), explicou que a partir de 2018 foi possível constituir um grupo de trabalho que elaborou um caderno reivindicativo com base na experiência dos profissionais dos TVDE - Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Eletrónica.

Sobre a “lei uber”, o dirigente sindical assinalou as suas fragilidades, mas referiu que, inclusive, a mesma não é cumprida, nomeadamente no que respeita ao horário de trabalho: “não há qualquer cumprimento e nem qualquer fiscalização”, denunciou.

No modelo atual, existe um intermediário – o parceiro operador –, sobre o qual “recaem todos os custos da atividade”. A plataforma supostamente “não tem trabalhadores ao seu serviço, licencia operadores que contratam trabalhadores”. Mas, na realidade, na maioria dos casos, operador e trabalhador são um só.

Acresce que a legislação parte do princípio que todos os trabalhadores têm um primeiro emprego, o que não é verdade, já que, para a “esmagadora maioria destes trabalhadores, é o seu emprego único, não têm outra fonte de rendimento”.

Fernando Fidalgo abordou também a problemática da avaliação, por parte do cliente, através da atribuição de estrelas, sem que haja lugar a qualquer justificação. Uma avaliação negativa pode traduzir-se em sanções para o trabalhador sem qualquer audição e sem direito de defesa. Sobre a liberdade de estabelecer um tarifário próprio, o dirigente sindical esclareceu que a plataforma atribui os serviços a quem esteja mais próximo com tarifa mais baixa, o que gera uma “competição selvagem”.

O STRUP, que tem vindo a reivindicar abranger os motoristas dos TVDE na convenção coletiva de trabalho do transporte ligeiro de passageiros em vigor, deposita “alguma esperança” no relatório de avaliação à ‘lei Uber’ que foi enviado pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes para a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes. A expectativa é de que o documento possa traduzir-se na revisão desta legislação.

Plataformas digitais utilizam algoritmos que são verdadeiras “caixas negras”

A eurodeputada Elisabetta Gualmini, relatora da diretiva europeia sobre plataformas digitais, avançou que este instrumento legislativo deverá ser “capaz de garantir condições equitativas baseadas num avaliação das condições objetivas de trabalho”.

Elisabetta Gualmini considera que são necessários “bons instrumentos para combater o falso trabalho independente”. A diretiva dá passos importantes em matérias como a presunção de laboralidade e gestão e transparência dos algoritmos, que são hoje verdadeiras “caixas negras”.

De acordo com a eurodeputada, existe um processo de negociações no próprio Parlamento Europeu para melhorar diretiva, nomeadamente no que concerne a evitar a externalização, que está a ser utilizada pelas plataformas no Estado Espanhol como subterfúgio para fugir às responsabilidades legais.

Até ao final de 2022 espera-se que o texto da diretiva seja aprovado e que, até final de 2023, exista uma diretiva vinculativa.

Proposta atual do Governo não corresponde ao proposto no Livro Verde

Teresa Coelho Moreira, ex coordenadora científica do Livro Verde do Futuro do Trabalho, jurista e uma das maiores especialistas neste tema, apontou as diferenças entre a versão da Agenda de Trabalho Digno apresentada em outubro de 2021 pelo Partido Socialista e a versão agora em discussão na Assembleia da República.

Nesta última versão existem alterações quer dos índices de presunção de laboralidade, com a “supressão de índices relacionados com geolocalização e algoritmo, o que tira a força da presunção”, quer na introdução da possibilidade da existência de um terceiro ente, que é “transvertido de pessoa coletiva como vimos acontecer” na lei Uber. Esta nova versão “não é a que corresponde melhor ao que propusemos no Livro Verde”, realçou Teresa Coelho Moreira.

A jurista explicou que no documento da sua co-autoria é proposta a existência de nova presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais para “tornar mais clara e efetiva a distinção entre trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria”. No Livro Verde é defendida a necessidade de “sublinhar que ter instrumentos de trabalho próprios, bem como estar dispensado de cumprir dever de assiduidade, pontualidade e não concorrência não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital, sem qualquer terceira parte, tal como acontece na proposta de diretiva”.

Teresa Coelho Moreira pôs em causa a compatibilidade da nova versão da proposta do PS com a diretiva europeia, já que a mesma prevê uma relação direta entre a plataforma e o trabalhador, e referiu que, no caso da lei Uber, que obriga à “criação de uma pessoa coletiva”, a incompatibilidade é incontestável.

A ex-coordenadora científica do Livro Verde do Futuro do Trabalho também desmentiu o argumento de que flexibilidade não é compatível com a existência de um contrato de trabalho e realçou a importância da representatividade sindical para a luta dos trabalhadores das plataformas.

 

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