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A RTP pública que interessa aos privados

Quando chegou à presidência da RTP pela mão do então ministro Miguel Poiares Maduro, o ex-deputado do PSD, Gonçalo Reis, apresentou um Projeto Estratégico muito explícito: “a RTP deverá produzir internamente a informação, o fluxo do “daytime” e a cobertura de eventos. Para a restante produção deverá ser equacionado o recurso a produção externa de produtores independentes diversificados” (p. 7). Mais: “a RTP deverá privilegiar de forma evidente a contratação de produção independente de stock, original e em português, e posicionar-se como co-produtora ou programadora dessa produção, devendo ser uma referência no respeito pelos direitos de autor em todos os contratos que celebrar”.
A promoção da produção externa da RTP em detrimento de capacidade própria da RTP já vinha das anteriores administrações, mas ganha força determinante a partir desta administração, como é exemplo o memorando entre a RTP e a Federação Portuguesa de Futebol (FPF), revelado em 2019, promovido pelo Conselho de Administração epelo Conselho Geral Independente.
Futebol e telescola, a RTP ao serviço de privados
Nesse memorando a RTP comprometia-se a disponibilizar meios do seu arquivo, instalações e funcionários para o lançamento de um canal televisivo da FPF: permutava valiosas imagens do Arquivo da RTP por programas da FPF que não era possível valorar; permitia a cedência de trabalhadores da RTP à FPF; e cedia as instalações do Centro de Produção do Norte para o funcionamento de um canal privado, entre outros pormenores.
O memorando foi alvo de duras críticas da Comissão de Trabalhadores, sendo exposto no parlamento por Catarina Martins. Os trabalhadores consideravam que o memorando revelava "completa falta de noção do que é, e para que serve, um serviço público de rádio e televisão", e que "dificilmente passaria por um órgão de supervisão de um canal privado, quanto mais de uma empresa pública".
Com a crise pandémica e o encerramento das escolas, a RTP foi chamada para a emissão do “Estudo em Casa”, programa que se veio a revelar essencial e que deverá ser continuado depois da pandemia. Mas, ao invés de ser entregue à produção da RTP (a única empresa com a experiência de ter realizado a telescola), foi externalizado a favor de uma produtora privada que recorre a equipas técnicas precárias a recibos verdes..
Novo contrato de concessão: mais obrigações com menos dinheiro
Esta lógica de externalização surge novamente na proposta de revisão do Contrato de Concessão do Serviço Público, apresentado já em 2021 pelo Secretário de Estado para a Comunicação Social (e ex-administrador da RTP), Nuno Artur Silva. O contratoaumenta as obrigações da RTP para com a produção independente mas não reforça o seu orçamento.
Entre as novidades da proposta do governo destacam-se a criação de dois novos serviços de programas - um canal infanto-juvenil e um canal do “conhecimento” -, a remodelação da RTP Memória na RTP Arquivo Histórico, o reforço da informação na Antena 1 e a introdução da RTP África na Televisão Digital Terrestre. Além disso, o governo pretende ainda retirar a publicidade de todos os canais, exceto a RTP1.
Estas obrigações, nos cálculos da Comissão de Trabalhadores, significam um esforço orçamental de 13 milhões de euros, a que acrescem ainda a redução de receitas publicitárias, de cerca de 3,5 milhões de euros. Ou seja, um défice de 16,5 milhões de euros que o orçamento da RTP não comporta.
“Em parte alguma se encontram verbas que compensem o investimento e cubram a diminuição de receita”, alertam os trabalhadores da empresa em comunicado desta terça-feira. “Em parte alguma se assume se o serviço público prestado pela RTP deve ser amputado, onde e em quê, se os salários congelados devem manter-se assim e durante quanto tempo mais, se os reenquadramentos prometidos devem continuar em espera, se os precários que preenchem necessidades permanentes devem continuar na RTP com falsos recibos verdes”, criticam.
Questionado pela deputada Beatriz Gomes Dias na primeira audição parlamentar do novo Conselho de Administração da RTP, o presidente indigitado, Nicolau Santos, admite que os números não batem certo com o orçamento da empresa. “Se a orientação neste momento é reduzir a publicidade em todos os canais da RTP ficando apenas na RTP1 a publicidade, e se ao lado são aumentadas as responsabilidades com TDT e outras atividades de apoio a produção independente, como é evidente, ficamos perante recursos escassos e despesas a aumentarem para produzir o mesmo ou ainda mais”, explicou.
“Levanta um problema de gestão que terá de ser muito bem acompanhado para chegar a uma resposta. Há poucos recursos financeiros para responder a tudo”, concretizou.
É assim que a meia derrota de Passos Coelho se confirma. Perdeu a privatização, mas ganhou a redução da capacidade da RTP e a sua transformação numa empresa de distribuição de contratos.
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