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I
O surgimento da Primeira Internacional provocou um grande alarme na esfera pública europeia. A pioneira organização, fundada em Londres, em 1864, sob o nome International Working Men’s Association, pretendia estabelecer as bases pragmáticas e organizacionais para a transformação das sociedades capitalistas. Na lógica da Primeira Internacional, era impreterível lançar os alicerces para uma revolução em diversos Estados europeus. De facto, como aponta o historiador Eric Hobsbwam, verificou-se em vários países um «maciço movimento industrial e sindical, que a Internacional ajudou sistematicamente a formar, pelo menos a partir de 1866». [1]
A associação constituía, de facto, um espaço para distintas correntes políticas do socialismo. Entre os líderes e ideólogos do movimento estavam seguidores de Pierre-Joseph Proudhon, de Robert Owen, Mikhail Bakunin, Ferdinand Lassalle, Giuseppe Mazzini e Karl Marx. Apesar da partilha de certos objetivos concretos, estas figuras apresentavam diferenças significativas nas suas linhas ideológicas. Assim, a Internacional não foi apenas um ponto de encontro, mas também um campo de partida para as divergências políticas.
II
A Primeira Internacional chegou tardiamente a Portugal, intimamente ligada ao contexto espanhol. Em 1866, há registos de que o Conselho Geral pretendia estabelecer ligações com os dirigentes socialistas de Espanha e de Portugal. [2] Este contacto deveria ser conduzido pelo dirigente Orsini. No entanto, não existem evidências de que tenha havido tentativas junto do socialismo português nessa época. Mais tarde, durante um congresso operário realizado em Barcelona, em 1870, foi publicado um apelo público dirigido aos socialistas portugueses: “Irmãos portugueses […] construamos a Internacional e a nossa emancipação chegará».[3] O próprio Friedrich Engels, a 13 de fevereiro de 1871, escreveu aos internacionalistas espanhóis a solicitar ajuda na fundação da Internacional em Portugal. [4]
Ainda em 1871, três dirigentes espanhóis ligados à Internacional – Francisco Mora, Anselmo Lorenzo e Tomás Morago – deixam a Espanha rumo a Lisboa. Na prática, a vinda para Portugal foi uma forma de fuga das perseguições políticas que o regime espanhol promovia contra os militantes da Internacional. De facto, a perseguição à Internacional foi mais severa em Espanha do que em Portugal. [5]
III
Os três espanhóis chegam a Lisboa em junho de 1871 e vão encontrar uma sociedade atenta e debates sobre as transformações no movimento operário português. Logo em 5 de julho de 1871, escrevem ao Conselho Geral a informar que estavam lançados «os primeiros passos para constituir a Internacional em Portugal». [6] O momento é oportuno para as ambições políticas dos espanhóis, que contactam os socialistas portugueses no Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas, a principal organização de trabalhadores desde sua fundação, em 1852. Contudo, duas décadas depois, uma nova geração de socialistas começa a questionar o comportamento do Centro Promotor, promovendo uma rutura com o regime liberal. A principal organização do movimento operário português estava em decadência e havia um crescente distanciamento entre os liberais progressistas – que moderavam cada vez mais o seu discurso – e um novo grupo de socialistas que radicalizava as suas posições. Dirigentes como José Fontana, Nobre França, Azedo Gneco, João Bonança e Antero de Quental procuraram reconfigurar o movimento operário. Diante do fracasso dessas tentativas, optaram por abandonar o Centro Promotor e criar um modelo de associativismo, denominado de “resistência”. Foi nesse contexto que surgiram, em Lisboa, a Associação Protetora do Trabalho Nacional e a Associação Fraternidade Operária.
É nessa realidade que se estabelecem os primeiros contactos entre os socialistas portugueses e a Primeira Internacional, encontros descritos no livro do socialista português Jaime Batalha Reis. Os três espanhóis dialogaram em diversas ocasiões com Batalha Reis, Antero de Quental e José Fontana. Por sugestão de José Fontana, as reuniões ocorreram em embarcações ancoradas no Rio Tejo. Enquanto Jaime Batalha Reis remava, «Antero discutia, com os emissários socialistas, a revolução operária que já lavrava na Europa». [7]
Estes encontros são determinantes para a construção da Primeira Internacional em Portugal. Em 12 de agosto de 1871, Francisco Mora comunicou a constituição do núcleo iniciador, responsável por preparar a criação da Federação Local de Lisboa da Associação Internacional dos Trabalhadores. Figuras como Eduardo Maia, Nobre França, Tedeschi, Soares Monteiro, Gonçalves Lopes, João Bonança e Azedo Gneco foram convocadas para as reuniões.
A presença dos espanhóis vai impulsionar o aparecimento de diversos grupos, mais ou menos secretos, que se apresentavam como legítimos representantes da Internacional. Esses núcleos incluíam tanto aliados do Conselho Geral quanto da Aliança da Democracia Socialista, liderada por Mikhail Bakunin. Particularmente na zona de Alcântara, onde se destacam grupos ligados à figura de João Bonança.
IV
Os encontros com os espanhóis deram aos socialistas portugueses, pela primeira vez, acesso direto aos principais centros políticos da Primeira Internacional e possibilitaram a fundação das primeiras secções da organização em Lisboa. Assim, Portugal tornou-se mais um palco para o confronto entre anarquistas e Conselho Geral. Os trabalhadores portugueses passaram a integrar a teia de aranha internacionalista que cobria grande parte da Europa.
Durante março de 1872, o Conselho Geral recebeu a comunicação de que a secção portuguesa da Internacional estava pronta para aderir formalmente. A carta foi assinada pelo secretário da secção portuguesa, Nobre França, e pelo secretário para o exterior, José Maria Tedeschi. Nobre França afirmava que existiam 400 membros em Portugal e uma íntima ligação com o associativismo de resistência. Os estatutos da Internacional e das secções da região portuguesa são impressos em 1872 pela tipografia Futuro, propriedade de Francisco Gonçalves Lopes, tipógrafo e militante socialista.
O trabalho dos socialistas portugueses foi amplamente elogiado pelo Conselho Geral, especialmente por Friedrich Engels, que destacou a qualidade de O Pensamento Social, «um excelente jornal». [8]
No mês de agosto de 1872, Paul Lafargue e Laura Marx visitam Portugal com o objetivo de garantir a adesão dos socialistas portugueses às teses do Congresso de Haia. O genro e a filha de Karl Marx conseguiram convencer os socialistas portugueses a apoiar as deliberações contrárias às da Aliança da Democracia Socialista. Lafargue passa a ser indicado como delegado representante de Portugal.
V
Entre 1872 e 1873, a Fraternidade Operária, liderada por José Fontana, organizou o primeiro grande movimento grevista em Lisboa e no Porto. Publicamente, as greves foram conduzidas sob a responsabilidade da Fraternidade Operária, mas, em privado, mantiveram-se contactos com o Conselho Geral em Londres. José Fontana utilizou esses canais de comunicação privados para escrever a Engels e Marx. Entre os pedidos, destacava-se a solidariedade para com os trabalhadores portugueses e o apoio a uma fábrica que estava a ser construída por grevistas despedidos por motivos políticos.
Em 1873, o movimento operário português está degastado e em decadência. A necessidade de repensar a sua estrutura tornou-se evidente e chegou-se a considerar a fundação de um partido socialista. Contudo, a ideia não encontrou força suficiente para se concretizar naquele momento, sendo apenas realizada em 10 de janeiro de 1875.
Durante esse período, a secção portuguesa da Internacional passou por uma reformulação forçada e Azedo Gneco assume a direção política, substituindo Nobre França. Estas mudanças ocorreram em plena crise na Primeira Internacional. Nesse contexto, os socialistas portugueses retomaram a aproximação com os anarquistas espanhóis, em grande parte influenciados pelos acontecimentos revolucionários de 1873 na localidade de Alcoy.
A nova geração socialista que consegue integrar o movimento operário português na Internacional acaba capturada numa densa teia de aranha internacionalista com diversos fios, uns quase invisíveis e outros visíveis, que ligavam diversos pontos da Europa ao Conselho Geral em Londres, mas também aos lugares dominados pela Aliança. [9]
João Lázaro é historiador. Autor de “Na Teia de Aranha - debate público, mobilização e internacionalismo no movimento operário português (1865-1977)”, ed Afrontamento, 2024.
Notas:
1- HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 126.
2- AAVV. Documents of the First International. The General Council of the First International, 1864-1866. The London Conference 1865. Minutes. Moscovo: Foreign Languages Publishing House, 1964, p. 173.
3- Citado em, ANSELMO, Lorenzo. El Proletariado Militante. Memórias de un Internacionalista. 2008, p. 140. Disponível aqui.
4- AAVV. «Friedrich Engels to the Spanish Federal Council of the International Working Men’s Association». Em: Marx & Engels Collected Works, Volume 22 Letters 1870-71.
Lawrence & Wishart Electric Book, 2010, p. 279.
5- João Lázaro, Na Teia da Aranha. Debate público, mobilização e internacionalismo no movimento operário português (1865-1877), Edições Afrontamento, 2024, p. 83.
6- Carta de Francisco Mora ao Conselho Geral da AIT, 12 de agosto de 1871. Transcrita em, CASTILLO, Santiago. Friedrich Engels, José Mesa, Pablo Iglesias, Paul Lafargue…, p. 45.
7- REIS, Jaime Batalha. «Anos de Lisboa. Algumas lembranças». Em: em Antero de Quental in memoriam, Porto, Mathieu Lugan editor, 1896, p. 466.
8- AAVV. «Frederick Engels to the General Council of the International Working Men’s Association. London 15th April 1873». Em: Marx & Engels Collected Works, Volume 23, Marx and Engels 1871-74. Lawrence & Wishart Electric Book, 2010, p. 438.
9- João Lázaro, Na Teia da Aranha. Debate público, mobilização e internacionalismo no movimento operário português (1865-1877), Edições Afrontamento, 2024, p. 300.