Os internacionalistas portugueses sob vigilância

por

João Lázaro

Dois anos depois da Comuna, Lisboa pede apoio a Paris para vigiar os militantes portugueses da Primeira Internacional, ligados ao surto grevista. Durante três meses, decorre em Lisboa a “missão Latour”.

10 de janeiro 2025 - 9:57
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Congresso de Genebra da AIT 1866
Congresso de Genebra da AIT 1866

O nascimento do radicalismo no interior do Centro Promotor provocou um enorme desconforto no governo liberal português. Em determinado momento, os liberais perceberam que tinham perdido a influência na direção do movimento operário. As crescentes ligações entre o socialismo português e o internacionalismo, bem como a radicalização da linguagem em torno dos debates sobre a Comuna de Paris, fazem soar os alarmes no governo. De facto, nas sociedades europeias oitocentistas a «Comuna de Paris animava ainda o imaginário da elite política […] e Portugal não é exceção». [1]

Ao contrário de outros regimes liberais, o governo português opta por não proibir as atividades do movimento operário, nem reforçar as medidas de repressão. No entanto, faz questão de monitorizar atentamente o associativismo e os seus principais líderes.

O grande movimento grevista de Lisboa e Porto, impulsionado pela Fraternidade Operária e apoiado pela Internacional no quadro da vaga de agitação social que se espalhava por toda a Europa, leva o governo liberal a reconhecer a sua inexperiência diante da nova postura dos socialistas e a solicitar ajuda à França. É enviado para Lisboa um agente francês de segurança pública especialista na Primeira Internacional e na Comuna de Paris. Este agente deveria elaborar relatórios sobre a situação do internacionalismo em Portugal e identificar refugiados da Comuna de Paris.

O agente vai entrar em Portugal no início de março de 1873, fica hospedado no Hotel Central (um dos hotéis mais emblemáticos da capital) e é colocado em contacto com altos quadros do governo, reportando diretamente ao ministro dos Negócios Estrangeiros português. Paralelamente, envia relatórios assinados com o nome “Latour” à diplomacia francesa.

Nos primeiros tempos, Latour relata ao governo francês rumores sobre a presença em Lisboa de refugiados da Comuna e aponta que, desde dois anos antes, os internacionalistas portugueses tentavam estabelecer a sua organização. O agente destacou a ausência de consenso sobre o número de militantes da Internacional em Portugal.

Nas suas comunicações, Latour destacou que Portugal tinha um regime liberal com uma ampla liberdade de imprensa e de associação. Observou também que, embora a greve fosse proibida pelos códigos penais, a punição limitada a multas funcionava com um incentivo aos trabalhadores a desafiar a proibição.

Sobre o movimento operário português, Latour enfatizou o papel de José Fontana, a quem chamou de “Karl Marx português”, descrevendo-o como o principal líder da Internacional no país e que mantinha contactos com as chefias internacionalistas em Inglaterra. Para o agente francês, os dirigentes da Fraternidade Operária participavam ativamente na Primeira Internacional. Latour demonstrará grande preocupação com a situação das fronteiras portuguesas, que seriam muito permeáveis à circulação de pessoas e ideias.

O agente francês reportou que os internacionalistas portugueses eram conhecidos das autoridades policiais locais. Num dos relatórios, mencionou que José Fontana, Eduardo Maia e Antero de Quental integravam a Internacional, cujas reuniões ocorriam numa sala no primeiro andar do número 50 da Rua Vicente Borga, anteriormente usada para apresentações teatrais. Esta sala era vigiada pela polícia, facto de que os próprios socialistas estavam cientes. Em agosto de 1873, Nobre França relatou a Engels a presença dos polícias que, a partir de uma loja por baixo do antigo teatro [2], espiavam as reuniões.

Alfred Fillon. Por Francisco Pastor Muntó - Biblioteca Nacional de Portugal - "Diario Illustrado", n.º 2979, Domínio público.
Alfred Fillon. Por Francisco Pastor Muntó - Biblioteca Nacional de Portugal - "Diario Illustrado", n.º 2979, Domínio público.

Latour é da opinião que a documentação da secção portuguesa da Internacional estava na posse de Nobre França, José Fontana e Conceição Fernandes.

No final de março, o agente francês recebe informações preocupantes que lhe caberia confirmar em território português. A diplomacia portuguesa em Londres havia relatado que um militante da Internacional, Eugene Peloski, estaria em Lisboa a preparar bombas. Perante a situação, Latour expressou reservas sobre a veracidade das informações.

Em relação aos exilados da Comuna de Paris no território português, Latour informa que Lucien Combatz, o antigo diretor dos telégrafos da Comuna, passara por Lisboa a caminho de Madrid e que, durante a sua estadia, terá conversado com os internacionalistas portugueses. Além disso, descobre Alfred Fillon que tinha uma loja de fotografia em Lisboa, a deixou para ir para Paris participar na Comuna, tendo voltado depois da sua derrota.

lucien combatz
Lucien Combatz

Latour deixou definitivamente Lisboa em junho de 1873. No seu relatório final, destacou que o próprio regime liberal português tinha favorecido o surgimento do internacionalismo. No entanto, o impacto da Comuna de Paris fora limitado e escassas as adesões à Internacional. O agente francês não tinha dúvida: o movimento operário português enfrentava uma grave crise e enormes dificuldades de teor político e financeiro. Segundo os seus cálculos, a Internacional teria então apenas duzentos filiados, um número indicador do declínio da organização em Portugal.


João Lázaro é historiador. Autor de “Na Teia de Aranha - debate público, mobilização e internacionalismo no movimento operário português (1865-1977)”, ed Afrontamento, 2024.


Notas:

1- João Lázaro, Na Teia da Aranha. Debate público, mobilização e internacionalismo no movimento operário português (1865-1877), Edições Afrontamento, 2024, p. 169.

2- Ministério dos Negócios Estrangeiros. Direção Política, L’association international des travailleurs en Portugal, Arquivo Andrade Corvo, 1399, p. 8. Biblioteca Nacional, A.C. 1-A. C. 2090.

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