O Programa das Conferências Democráticas, mais tarde reconhecidas como Conferências do Casino, traz uma declaração de intenções bastante clara, um desafio à sociedade para conhecer e pensar – não doutrinar – sobre as mudanças dos tempos modernos, um objetivo declarado: “preocupar a opinião com o estudo das ideias que devem presidir a uma revolução, de modo que para ela a consciência pública se prepare e ilumine, é dar não só uma segura base à constituição futura, mas também, em todas as ocasiões, uma sólida garantia à ordem.”1 Será importante sublinhar aqui a importância e a pertinência em termos de enquadramento temporal da palavra “revolução”, vocábulo que Antero de Quental recupera para concluir enfaticamente a sua conhecida Conferência “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos Três Séculos”: “o cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a Revolução não é mais do que o cristianismo do mundo moderno.”2 Assinam este programa, a 16 de maio de 1871, um grupo de intelectuais3 de onde se destacam Adolfo Coelho, Antero de Quental, Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga e Teófilo Braga. Grande parte destes intelectuais faziam parte do grupo do Cenáculo – tertúlia que tinha lugar na casa de Batalha Reis – e também outros tantos já tinham estado envolvidos na célebre Questão Coimbrã4, alguns anos antes.

A relação do dealbar do socialismo em Portugal com as Conferências do Casino de 1871 pode ser estabelecida de diferentes formas, neste artigo encetamos com a referência de Eça de Queirós, na sua conferência “A Literatura Nova” a três quadros5 de Gustave Courbet, especificamos aqui “La Retour de la Conférence” (1863). Eça afirma que a nova literatura, tal como a nova pintura (i.e. o realismo), deve retratar a realidade tal como ela é e isso implica olhar para todos os estratos da sociedade, para a luz e para a treva, para o que se quer ver e aquilo que não é desejável ou sequer aceitável. No quadro de Coubert, o pintor, eivado do espírito republicano e anticlerical, retrata um grupo de padres católicos a voltar de uma reunião visivelmente ébrios e sem qualquer pudor em mostrá-lo. Também politicamente o socialismo embasa o seu pensamento nesse desejo de abarcar a realidade, na coragem de criticar o que está errado e dar voz a todas as classes, todos os cidadãos e intervir coletivamente para melhorar as condições de vida, com especial ênfase nas classes trabalhadoras.

O pensamento que grassa as mentes destes ainda jovens conferencistas vem principalmente (embora não só) de França, do republicanismo, do movimento da Comuna de Paris6 que, apesar de falhar nos seus propósitos práticos, reforça a voz dos movimentos operários e socialistas um pouco por toda a Europa. A palavra revolução reverbera nas paredes do Casino Lisbonense várias vezes, a revolução “cujo fim é a liberdade”, como firmaria Condorcet. Não, porém, uma revolução com “barricadas”, tal como acontecia então em Paris, mas com base científica, uma revolução racional e de pensamento, tal como veiculava Proudhon, leitura assídua de alguns elementos do grupo. A iniciativa destes jovens é de resto abrasada pela vivência destes tempos de mudanças e convulsões político-sociais. Há uma influência vívida por parte dos acontecimentos recentes europeus, além da Comuna de Paris, como a existência de uma Associação Internacional dos Trabalhadores, uma experiência governativa de inspiração republicana em Espanha (em consequência da Revolução de 1868) e o fim do processo de unificação italiano.
Desde a primeira conferência, a 22 de maio de 1871, que o impacto se fez sentir na imprensa periódica, o que resultou numa maior adesão do público às conferências seguintes. A discussão estava lançada, um dos principais objetivos declarados deste Programa. Efetivamente, apenas quatro das doze conferências planeadas aconteceram: Antero de Quental (que fez uma apresentação do “Espírito das Conferências” e depois a sua famosa conferência “As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”), Augusto Soromenho (“Literatura Portuguesa”), Eça de Queirós (“A Literatura Nova”) e Adolfo Coelho (“A Questão do Ensino”).
Tal como o quadro de Courbet foi interdito – e esteve até misteriosamente desaparecido durante décadas – também as Conferências do Casino foram proibidas, com edital assinado pelo Marquês de Ávila (então Presidente do Conselho) a 26 de junho de 1871. Dois casos contemporâneos em muito semelhantes, com as forças mais conservadoras a criar atrito ao surgimento e avanço da mudança. Há quem defenda que a proibição se deu não só por toda a agitação que as Conferências já haviam causado (principalmente a de Adolfo Coelho que aviltava os “lentes de Coimbra”) mas também pela que ainda iriam causar, já que a conferência seguinte (que nunca chegou a realizar-se) intitulava-se “Os Historiadores Críticos de Jesus”, por Salomão Sáragga, o que fazia prever um ataque direto à Igreja Católica.

Com a perspetiva histórica que o tempo atual possibilita, pode dizer-se que o Programa das Conferências Democráticas de alguma forma se cumpriu: fez a sociedade portuguesa olhar para si própria e refletir sobre os acontecimentos recentes. A iniciativa destes jovens causou um debate político intenso, ressoou na imprensa e na opinião pública, e levou, em última análise, à queda de um governo já fragilizado.
Rosa Fina é investigadora doutorada em História.
Bibliografia:
Carlos Reis, As Conferências do Casino, Lisboa, Publicações Alfa, 1990.
João Medina, As Conferências do Casino e o Socialismo, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1984.
José-Augusto França (apresentação e notas), As “Conferências do Casino” no Parlamento, Lisboa, Livros Horizonte, 1973.
Maria Filomena Mónica, «O Senhor Ávila e os Conferencistas do Casino», in Análise Social, vol. XXXV, nº 157, 2001.
https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/Conferencias-do-Casino-1871.aspx
Notas:
1 “Programa das Conferências Democráticas” in Carlos Reis, As Conferências do Casino, Lisboa, Alfa, 1990, p. 92.
2 Ibidem, p. 128. Das quatro conferências que aconteceram (Antero Quental, Augusto Soromenho, Eça de Queirós e Adolfo Coelho, apenas os textos de Antero Quental e Adolfo Coelho são conhecidos na íntegra atualmente.
3 Além destes, fazem parte do grupo Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Germano Vieira de Meireles, Guilherme de Azevedo e Salomão Sáragga.
4 A Questão Coimbrã ou Questão do Bom Senso e Bom Gosto foi uma polémica literária que se desenvolveu entre os anos 1865 e 1866 que opunha alguns jovens intelectuais de Coimbra (nomeadamente Antero de Quental e Teófilo Braga) e a escola ultrarromântica conservadora liderada por António Feliciano de Castilho. Esta polémica marcou uma irreversível clivagem entre a nova geração e a antiga, que se fez sentir ainda no pensamento da Geração de 70 e das Conferências do Casino.
5 Os outros quadros são Un enterrement à Ornans (1849/50) e Les Casseurs de pierres (1849).
6 O próprio Eça de Queirós reserva as últimas páginas do seu romance O Crime do Padre Amaro (1876) para falar sobre a Comuna de Paris e a reação em Lisboa às notícias deste acontecimento. Sublinha-se aqui apenas uma curta passagem – um diálogo entre o Padre Amaro e o Cónego Dias – eivada da ironia habitual queirosiana e bem informativa da sua posição: “Então indignaram-se contra essa turba de mações, de republicanos, de socialistas, gente que quer a destruição de tudo o que é respeitável – o Clero, a instrução religiosa, a Família, o Exército e a riqueza… Ah! A sociedade estava ameaçada por monstros desencadeados! Eram necessárias as antigas repressões, a masmorra e a forca. Sobretudo inspirar aos homens a fé e o respeito pelo sacerdote.” (Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro, Lisboa, Livros do Brasil, 2001, p. 496)