O Zé Mário é, sobretudo, um excelente músico

Em declarações ao esquerda.net, o compositor e intérprete musical Luís Cília refere que Zé Mário era "um excelente compositor de canções": "Isso é o principal. Mas, a vários níveis, o Zé Mário Branco teve um trabalho muito importante", frisa.

20 de novembro 2019 - 16:01
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José Mário Branco e Luís Cília. Regresso a Portugal, em abril de 74. Reprodução de imagem da RTP Arquivo.
José Mário Branco e Luís Cília. Regresso a Portugal, em abril de 74. Reprodução de imagem da RTP Arquivo.

Conheceu o Zé Mário Branco em Paris…

Sim. Conheci-o em finais de 1964. O Zé Mário morava ao pé de um amigo meu, o Fernando Morgado, em Villeneuve-la-Garenne. Começámos a encontrar-nos no âmbito de iniciativas promovidas pelas associações de portugueses, um pouco ligadas aos sindicatos e aos partidos políticos de esquerda, sobretudo, na altura, o Partido Comunista (PC). O Partido Comunista Francês (PCF) era muito importante para a estrutura clandestina do PC em França.

Como eram essas iniciativas?

Onde hoje é a sede do PCF, na Place du Colonel-Fabien, existia um conjunto de barracões onde os portugueses organizavam, ao fim-de-semana, umas festas: com copos, sandes e pastéis de bacalhau, e música. E realizavam-se encontros noutros locais. Era uma forma de falar sobre os problemas de Portugal. Naquela altura, íamos sempre os dois – eu e o Zé Mário, porque éramos os que se encontravam em Paris à data. Depois chegou o Sérgio [Godinho], o Tino Flores, o Fanhais,… Mas ao princípio éramos só os dois que cantávamos nessas festas. Tenho vários papéis por aí dessas agremiações a convocar os encontros. Às vezes, o meu nome aparece como “Luís Silva” e o dele “José Maria” [Risos]. Foi num desses encontros, creio que em 1965, em Champigny, onde ficavam os bairros de lata portugueses, que conheci o Paco Ibáñez.

Quando chegaram músicos como o Sérgio e o Fanhais continuaram a cantar juntos?

Sim, claro. E depois veio o Maio de 68. Cada um de nós fez o que pôde. Cada um de nós integrou-se em grupos ou em estruturas. Por exemplo, eu tinha uma estrutura com a Collete Magny e o Paço Ibañez. Onde nos chamassem, nós íamos: fábricas ocupadas, ocupações de estudantes… Eu fui cantar à Casa de Portugal. Íamos sobretudo aos locais onde existiam imigrantes portugueses, que tinham uma menor politização. Íamos apoiar esses portugueses que ocupavam as fábricas e que, muitos deles, tinham receio de serem expulsos.

Toda essa atividade, essas presenças comuns, mantiveram-se até abril de 74?

Sim. Cada vez que havia sessões de solidariedade com Portugal, organizados por partidos políticos, sindicatos ou associações portuguesas, estávamos lá todos.

Fossem quais fossem as condições…

Eu profissionalizei-me em 67, depois de fazer a música do filme “O Salto”. Entretanto, tentei viver só da música. Fazia espetáculos com o Paco. Tentávamos encontrar-nos: quando havia para um, procurávamos ver se o outro também podia ir. Sempre de uma forma muito precária. As associações não tinham condições técnicas muito boas. Mas, pronto, era o que havia. Era com o que nós cantávamos. Quase até 74, existia a “Cintura Vermelha”. Todas as Comunas à volta de Paris eram de esquerda. Eram nessas que se realizavam muitas festas, muitas sessões de solidariedade.

Houve alguma canção do Zé Mário Branco que o marcasse em especial?

Há uma maquete de um disco, datada de outubro de 1968, que os amigos do Zé Mário me deram, que tem inscrito: “Maquete gravada em casa do Luís Cília”. O Zé Mário queria gravar uma maquete para enviar para Portugal, para o Michel Giacometti, e eu era o único que tinha um gravador, um Revox. Nessa maquete, eu é que apresento as canções. Quando ele canta uma coisa que eu considero lindíssima, que é a “Queixa das Almas Jovens Censuradas”, o poema da Natália Correia, digo no final: “Atenção, esta canção vai ser muito importante!”. Costumo dizer que quem fez essa canção tem mesmo de ter muito talento. O Zé Mário tem uma obra importantíssima, como é óbvio, mas ele podia não ter feito mais nada.

E recorda-se de algum momento em particular durante as sessões em que participaram?

Houve um momento um bocado triste, que foi a tal história do concerto na Mutualité, em que cantava o Tino Flores, o Sérgio, o Zé Mário, eu e o Zeca. Esse foi um aspeto negativo. Chegou um grupo de cretinos, a quem eu chamava os ‘Guerrilheiros do Quartier Latin'. Eles não me gramavam. Diziam-me que as minhas canções não eram para a classe operária e que os operários não entendiam a poesia. Eu perguntava: “Tu entendes?”, ao que me respondiam que sim. E eu continuava e gozava com eles: “Ah, pois. Eles são uns burros…”.

Eles fizeram um panfleto horrível contra o Zeca para distribuir no concerto que dizia: “Chora camarada, chora”. Esse espetáculo acabou muito mal, porque eles foram lá só para provocar.

Em termos de ativismo político, tu e o Zé Mário fizeram o mesmo percurso?

Não. E foi isso que fez com que não nos déssemos mais, porque existia um grande clima de sectarismo político à época. Eu fui expulso do PC em 67, porque me apresentaram uma lista de pessoas que não eram do PC e que não podiam entrar em minha casa. Eu disse “Em minha casa entra quem eu quero”, e fui expulso.

O Zé Mário alguma vez constou dessa lista?

Não. Até porque, na altura, ele morava lá no norte de Paris e tinha o seu emprego, não frequentava a minha casa.

Mas esse clima de sectarismo custou-me imenso, como também custou o sectarismo que existiu a seguir ao 25 de Abril. E haviam também umas pessoas, ligados aos pró-chineses, que se davam muito com o Zé Mário, e aquilo criava um clima um bocado chato. Mas o Zé Mário esteve sempre disponível para cantar nas sessões para as quais o convidavam, fossem organizadas pelas associações, pelo PCF…

Regressou a Portugal, em abril de 74, no mesmo avião que o Zé Mário

Sim. E também veio connosco o Cláudio Torres, que é algo que muita gente desconhece.

No pós-25 de Abril, o convívio com o Zé Mário manteve-se?

Não. O grande intelectual espanhol Max Aub, que viveu no México, escreveu a seguinte frase quando regressou a Espanha: “Vim, mas não voltei”. Foi quando regressei a Portugal que tive o meu verdadeiro exílio: o ambiente de sectarismo total. Eu era militante do PC e os meus grandes amigos na música eram o Zeca, o Sérgio, o Fausto… que não eram cantores do PC. Eu levava pancada do PC e depois dos outros também, porque era militante do PC. De repente, com a explosão de Liberdade do 25 de Abril, 99% das pessoas não eram politizadas e começaram a entrar em partidos de esquerda como se entra em clubes de futebol. Em vez de existir discussão e adesão ideológica, parecia que existiam discussões futebolísticas. O clima tornou-se um bocado intolerável. Era impensável, em 74 ou 75, que eu fosse cantar numa coisa do Grupo de Acção Cultural – GAC, e que o GAC fosse cantar numa coisa do PC. Era algo que me custava muito. Em França eu estava habituado a cantar onde me chamavam. Eu e o Paco Ibáñez íamos todos os anos cantar à festa dos lambertistas. Era uma questão de solidariedade. Aqui era completamente impossível.

Neste contexto, eu e o Zé Mário não tivemos muito contacto. Mas eu tenho todos os discos do GC e gosto imenso do GAC. Acho que tem muita qualidade. Há um elemento do GAC de que as pessoas falam pouco, e que eu não conheço pessoalmente: o Luís Pedro Faro. É um excelente músico. O GAC fazia um grande trabalho. Mas havia aquele clima de sectarismo. Isso entristeceu-me muito.

Que características do Zé Mário destacaria?

O Zé Mário é, sobretudo, um excelente músico. Um excelente compositor de canções. Isso é o principal. O Zé Mário tem canções lindíssimas, importantes. Gosto também muito dele como intérprete, da sua voz. E tem o trabalho como produtor. Depois do Marceneiro, o cantor de quem mais gosto é o Camané. E ali também está o dedinho do Zé Mário. Ele fez um trabalho com muita qualidade. Para não falar dos discos emblemáticos do Zeca que o Zé Mário produziu em França.

Por outro lado, o Zé Mário tem o trabalho no teatro, com a adaptação de coisas do Brecht, quando colaborou com a Comuna.

A vários níveis, o Zé Mário teve um trabalho muito importante.


* Luís Cília - compositor e intérprete musical português.

Testemunho recolhido por Mariana Carneiro, por telemóvel, a 19 de novembro de 2019.

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