Num artigo publicado esta semana no portal ScienceDirect, intitulado "O papel do Estado na turistificação de Lisboa", quatro investigadores das áreas dos estudos geográficos, demográficos e de arquitetura e urbanismo - Ana Estevens, Agustín Cocola-Grant, Antonio López-Gay e Fabiana Pavel - argumentam que o centro da cidade de Lisboa "foi reinventado pelo Estado para servir as necessidades do capital privado", o que contribuiu para deslocações significativas das comunidades num processo financiado pelos contribuintes de forma involuntária e contra o seu próprio interesse.
O trabalho apoia-se na recolha de dados do turismo e das intervenções urbanísticas no centro histórico, nomeadamente nas freguesias de Misericórdia, Santa Maria Maior e São Vicente, que no período entre 2011 e 2021 perderam 18% dos fogos destinados a habitação, em larga medida substituídos por alojamento local. Segundo os Censos 2021, esta zona da cidade perdeu 19% da sua população numa década, enquanto no conjunto da cidade a diminuição foi de 1%.
A construção de 137 novos hotéis entre 2009 e 2021 serviu para consolidar o processo de turistificação e assim afirmar a nova posição de Lisboa na divisão espacial global do trabalho: "um espaço de lazer para consumidores transacionais, sem os quais o setor imobiliário não teria sido estimulado". Lisboa acabou por ultrapassar o Algarve em 2016 como o principal destino turístico e com. a liberalização do alojamento local, as licenças passaram de cerca de mil em 2014 para mais de 19 mil em 2019.
Reabilitação e alojamento turístico nas cinco freguesias do centro de Lisboa, 2009-2021. Fonte: Elaboração própria dos autores do estudo a partir dos dados da Câmara Municipal de Lisboa e do Registo Nacional de Turismo (clique para ampliar).
"O Estado absorveu o custo do reordenamento destes territórios, assegurando assim que o capital privado pudesse extrair os lucros da reabilitação, e permitiu aos promotores construir o produto mais lucrativo sem limitações, o que em Lisboa é em grande medida o alojamento de curta duração, hotéis e casas de luxo para estrangeiros", apontam os investigadores.
Imobiliário e turismo: bóia de salvação da crise ou modelo de acumulação predador?
A forma como os recursos públicos foram usados neste processo de transformação urbana não foi diferente de outros exemplos internacionais no passado: incentivos fiscais, privatização de propriedade municipal, financiamento a juros baixos, parcerias público-privadas e investimento em infraestruturas. Mas o que foi determinante para a atração da procura por parte dos investidores foi a chamada "lei Cristas" que trouxe a liberalização do mercado de arrendamento, o mecanismo que permitiu facilitar o despejo dos habitantes, condição essencial para todo o processo de reabilitação e gentrificação.
Este processo inseriu-se no contexto do pós-crise financeira, em que o imobiliário e turismo foram vistos pelo poder político como as saídas para a crise. As medidas de austeridade impostas pela União Europeia e pela troika aceleram esta liberalização também no setor da habitação, tornando o Sul da Europa no principal destino turístico mundial, com a abertura do mercado imobiliário local aos fluxos de capital internacional, com o Estado a mudar regras urbanísticas para permitir a proliferação de hotéis, alojamento local e segundas habitações. E o crescimento das plataformas digitais como o Airbnb ajudou a que a velocidade da gentrificação no Sul da Europa fosse muito superior à de outras grandes cidades europeias no passado.
Se por um lado o Estado criou as condições e o enquadramento para o desenvolvimento da indústria do turismo, por outro lado também ofereceu condições especiais para criar a procura por parte de compradores internacionais, através de regimes fiscais como o dos vistos gold, residentes não habituais ou isenções para os fundos imobiliários. "O resultado foi uma estratégia de acumulação fundada no nexo entre turismo, procura transnacional e mercados imobiliários", à semelhança do resto da Europa do Sul.
Os investigadores apontam ainda a contradição entre o objetivo anunciado da medida da troika para a liberalização do mercado de arrendamento, argumentando que isso iria incentivar os senhorios a colocar mais casas no mercado, com o resultado oposto que teve no centro de Lisboa, onde a perda de fogos para habitação rondou os 30% numa década na freguesia de Santa Maria Maior e os 18% no conjunto do centro histórico.
"O planeamento urbano neoliberal e a sua retórica de que os mercados imobiliários funcionam melhor quando o Estado permite aos promotores comportarem-se sem serem 'perturbados' por medidas regulatórias, na realidade aumenta os lucros dos promotores e senhorios enquanto exclui os que precisam de um sítio para viver", conclui este estudo, assinalando que a retirada dos constrangimentos regulatórios foi na verdade uma forma de o Estado "regular a favor do capital" num "processo perverso em que os contribuintes subsidiaram involuntariamente a sua própria retirada e a produção de uma cidade que não é para eles".