O que Portugal descobriu é que existiam territórios com recursos naturais apetitosos e/ou com uma importância geo-estratégica significativa. E que os mesmos não estavam desocupados. No contacto com as realidades locais, com os povos desses mesmos territórios, com outra cor de pele, diferentes pertenças étnico-culturais, diferentes crenças religiosas, formou um olhar sobre o outro alicerçado na ideia de superioridade. E usou essa ideia para expropriar, escravizar e explorar.
Servidão e escravidão são a mesma coisa?
Os servos eram trabalhadores das terras dos “senhores”. Viviam nas redondezas da propriedade e estavam vinculados à terra pelo trabalho. Não tinham direito a salário ou benefícios, trabalhavam pelo direito a morar no local e recebiam somente os (parcos) mantimentos necessários à sua sobrevivência. Ainda que fossem sujeitos a repressão e a uma intensa rotina de trabalho, não podem ser simplesmente equiparados aos escravos, na medida que não eram entendidos como uma simples mercadoria. Não existia desumanização dos servos.
Já os escravos eram equiparados a coisas, sendo propriedade do seu senhor. Podiam ser comprados e vendidos, herdados ou até mesmo alugados como mercadoria, mediante preço fixado entre as partes. Os escravos deviam plena obediência ao seu senhor, podendo este fustigá-los como bem entendesse. Eram usados como força de trabalho exclusivamente a favor do seu senhor.
Portugal foi uma potência esclavagista?
Portugal foi o país que mais traficou pessoas de África para as Américas. Portugal escravizou os povos das ex-colónias e manteve um intenso e massivo tráfico de escravos, primeiro para o Brasil e, posteriormente, para o sul dos Estados Unidos e Cuba.
Entre 1501 e 1875, e de acordo com os números conhecidos, que estarão largamente deflacionados, o tráfico português de escravos para o Brasil atingiu 5.848.266 pessoas, um número superior ao tráfico promovido pela Espanha (1.061.524), Grã-Bretanha (3.259.441) e Países Baixos juntos (554.336).
Também terá interesse recorrer ao relato da existência de escravos reprodutores no Paço Ducal dos Bragança em Vila Viçosa, a mais importante casa nobre portuguesa, no século XVI:
“Tem criação de escravos mouros, alguns dos quais reservados unicamente para fecundação de grande número de mulheres, como garanhões, tomando-se registo deles como das raças de cavalos em Itália. Deixam essas mulheres ser montadas por quem quiserem, pois a cria pertence sempre ao dono da escrava e diz-se que são bastantes as grávidas. Não é permitido ao mouro garanhão cobrir as grávidas, sob a pena de 50 açoites, apenas cobre as que o não estão, porque depois as respetivas crias são vendidas por 30 ou 40 escudos cada uma. Destes rebanhos de fêmeas há muitos em Portugal e nas Índias, somente para a venda de crias”. (Fonte: documento que está na Biblioteca Nacional da Ajuda, cópia do século XVIII do original de Venturino, citado no artigo do Expresso “O segredo dos escravos reprodutores”)
A abolição da escravatura no Brasil foi uma benesse?
A abolição da escravatura no Brasil não constituiu, de modo algum, qualquer forma de benevolência da monarquia. Ela resultou do crescimento do movimento abolicionista na década de 1880, de grandes confrontos parlamentares, manifestações artísticas, e de revoltas e fugas massivas de escravos que o regime colonial não foi capaz de conter.
Entre as lutas protagonizados por negros ao longo de séculos destaca-se a Revolta dos Malês, a Rebelião de Santana e a Revolta de Carrancas. Os negros também organizaram quilombos, que albergavam escravos fugidos e eram símbolo de resistência.
Acresce que a abolição da escravatura decorre também do facto de, com o advento da industrialização, passar a ser dispensável aquela dimensão de mão-de-obra de pessoas negras. Tornava-se mais lucrativo manter as pessoas negras em África, incentivando uma produção de matérias primas baratas. Além de que, com o fim da escravatura, esses homens e mulheres passavam a ser potenciais consumidores dos produtos industrializados.
A que é que se referem aqueles que falam de “excecionalidade” da colonização portuguesa?
Há quem nos queira convencer que a colonização portuguesa teve o mérito da miscigenação e que não foi pautada pela violência e opressão características de outros regimes colonialistas. Esta retórica, apoiada na teoria lusotropicalista enunciada por Gilberto Freyre, promove a defesa acrítica da excecionalidade do projeto colonial português. E a partir daí foi construída a narrativa, que continua a vigorar, de que Portugal teve um colonialismo brando e de que promoveu um harmonioso encontro de culturas. Ao longo deste artigo verás o quão falsa é a afirmação da “excecionalidade” da colonização portuguesa.
É verdade que existiu uma longa pax imperial portuguesa em África?
Não. Este é um mito que visa branquear o que foram, de facto, as campanhas militares de pacificação. Estas nunca visaram a pacificação, mas sim a conquista e usurpação territorial, à custa da escravização e da matança de populações africanas. Desde o início do povoamento branco até ao último dia da descolonização existiu uma permanente guerra de opressão. O colonialismo português foi uma ocupação, foi expropriação, foi violência atroz.
Não existiu resistência à ocupação portuguesa?
Existiu, pois. Os povos negros promoveram uma luta férrea contra o jugo colonial, muitas vezes esmagada mediante o poder dos canhões e das metralhadoras.
Em Moçambique, a insurgência dos vátuas, no distrito de Gaza, iniciada com as revoltas de 1822, é disso exemplo. E os combates prolongam-se até às batalhas que, entre 1894 e 1913, portanto ao longo de 19 anos, opõem as forças expedicionárias enviadas por Portugal e os chefes militares das “campanhas de pacificação”, como Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro, Caldas Xavier e Eduardo Galhardo, e as companhias de combate dos vátuas e aos soberanos do império vátua, Gungunhana e depois Maguigana. Mas, ao longo de quase 80 anos, existiram muitas outras guerras contra diferentes etnias, como é o caso da “guerra dos Bongas” (1841 a 1888), das campanhas contra os namarrais (1896 a 1913), das operações na Zambézia contra os maconde, ou dos ataques de Serpa Pinto aos macololos, no Chile.
Já em Angola os combates da “ocupação efetiva” arrastam-se ao longo de 88 anos, entre 1848 e 1926. No que respeita especificamente às “campanhas de pacificação”, são de assinalar as campanhas militares nos Dembos, Malange e Luanda, os combates contra a “República de Sanga”, os bailundos, os indígenas de Seles, os cuamatos e cuanhamas e as operações militares na Lunda.
A “Guiné Insubmissa”, por sua vez, só foi “pacificada” já no século XX, com o poder letal dos canhões e das metralhadoras. Até lá, ocorreram as revoltas dos “grumetes”, em 1842, as “três guerras de Bissau”, revoltas dos papeis entre 1844 e 1894, as guerras com os mandingas nos finais do século, o “desastre de Bolor” e as campanhas de 1913-1915 contra balantas, grumetes, manjacos e papeis.
O colonialismo português foi brando?
Não. A não ser que consideremos que a brandura é sinónimo de um regime de permanente violência contra as populações africanas e de brutal violência repressiva da polícia política do Estado Novo nas colónias.
A esse respeito, além dos episódios já referidos na questão anterior, convém também relembrarmo-nos da existência de massacres que são ilustrativos do recurso sistemático a uma violência atroz e indiscriminada na gestão e domínio dos territórios colonizados. São exemplo disso os massacres de Batepá (1953), em São Tomé e Príncipe, que vitimou um número indeterminado de ‘filhos-da-terra’, que, por não estarem abrangidos pelo Estatuto do Indigenato, recusaram o trabalho a contrato nas roças de cacau e café; de Pindjiguiti (1959), em Bissau, com a repressão violenta de marinheiros, estivadores e trabalhadores das docas, que viria a resultar em cinquenta mortos e cerca de uma centena de feridos; de Mueda (1960), em Moçambique, contra aqueles que reivindicavam Uhulu (liberdade para a terra).
Já o relato do massacre de Wiryamu, Chawola e Juwau (1972), no distrito de Tete, em Moçambique, levado a cabo por tropas coloniais portuguesas e pela PIDE-DGS, dá-nos conta das atrocidades, dos crimes hediondos cometidos durante a Guerra Colonial, com a exterminação de comunidade inteiras – incluindo crianças, mulheres, idosos – com requintes de uma perversidade sem limites.
O colonialismo teve “rosto humano” e temperança cristã?
Não. O poder colonial foi sustentado pela discriminação jurídica e racial do estatuto do indígena, pelo trabalho forçado e uma política de terras expropriadas em favor dos colonos.
O que foi o Ato Colonial?
O Ato Colonial veio integrar a futura Constituição de 1933. Este Ato sintetiza e consolida a nova orientação política colonial iniciada pela Ditadura Militar. É adotado um regime de estrita centralização política, económica e administrativa ferreamente controlada a partir de Lisboa. O conjunto dos territórios ocupados são assumidos como elementos constituintes do “Império”. A colonização era vista como um desígnio divino para a nação e a obra civilizadora passaria a assentar, não na educação ou religião, mas no trabalho.
Lê-se no seu artigo 2.º:
“É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas”.
O trabalho forçado era uma forma disfarçada de escravatura?
Sim. O longo sistema de Códigos do Trabalho Indígena e de Estatutos do Indígena visam discriminar racial e culturalmente a figura do “indígena”. O “indígena” não era titular dos direitos civis e políticos dos brancos e podia ser compelido pelas autoridades a trabalhar, seja para fins públicos ou privados (como é o caso das minas da Diamang ou das explorações de algodão da Cotonang). Os abusos no âmbito do trabalho forçado eram recorrentes. O Estatuto do Indígena e o trabalho forçado foram basilares para a exploração colonial.
Portugal tinha condições para ganhar a Guerra Colonial?
Não. Era fundamental manter o delírio de uma guerra ganha à partida e não permitir a desmobilização dos militares e o descontentamento generalizado da população. Mas a convicção de que militarmente a guerra podia ser indefinidamente prolongada – seja em termos económicos, morais, e contra a conjuntura internacional – era uma enorme falácia. Este era um conflito perdido a dois níveis: ao nível da moral e ao nível da razão. A nível militar, os relatórios dos comandantes-chefes sobre o estado psicológico das tropas e quadros e sobre o nível de instrução, a qualidade do comando e a motivação das unidades chegadas da Metrópole aos Teatros de Operações traçam, a partir de 1972, um quadro deplorável da sua disposição para combater.
Os movimentos de libertação nacional tiveram, na realidade, um papel decisivo no rumo que nos levou ao 25 de Abril de 1974.
O racismo é uma herança colonial?
É. A ocupação colonial foi derrotada, mas a colonialidade permanece e traduz-se nas gritantes desigualdades económicas, sociais e políticas de que são alvo as comunidades racializadas em Portugal. O racismo no nosso país é estrutural e institucional e nega às pessoas afrodescendentes e de outras comunidades racializadas o exercício de direitos fundamentais.
A nossa relação com as pessoas racializadas parte de uma ideia de superioridade, e essa ideia é herdada do colonialismo. A pessoa racializada é incivilizada, deve ser contida nas periferias da cidade.
Continuamos a ser incapazes de abdicar do nosso lugar de privilégio e o combate ao racismo é travado pelo “estado de negação” em que nos encontramos.
Fontes:
História a História – África, de Fernando Rosas, realização de Bruno Moraes Cabral
https://gardenfilms.net/project/historia-a-historia-africa/
“A Guerra Inútil” (Documentário - 1979), da série “Os Anos do Século” da RTP, do realizador José Elyseu, com textos do historiador César Oliveira
https://arquivos.rtp.pt/
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Dundo, Memória Colonial, de Diana Andringa
http://www.cinept.ubi.pt/pt/filme/8653/Dundo%2C+Mem%C3%B3ria+Colonial (link is external)
As duas faces da Guerra, de Diana Andringa e Flora Gomes
http://www.cinept.ubi.pt/pt/filme/8636/As+Duas+Faces+da+Guerra
Quotidiano Colonial I - Episódio nº 51 Programa O País em Memória, Coordenação: Samuel Costa, António Louçã; Produção: Elsa Estrela
https://www.rtp.pt/programa/tv/p17628/e51 (link is external)
Quotidiano Colonial II - Episódio nº 52 Programa O País em Memória, Coordenação: Samuel Costa, António Louçã; Produção: Elsa Estrela
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CAHEN, Michel. Uma boa consciência colonial ainda necessária num país europeu moderno? Arquivo. Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique, Moçambique, n. 9, p. 59-68, abril, 1991.
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