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Descobrimentos? Sim, nós descobrimos, sim senhor!

Mais do que descobrir, inventámos viagens low cost! Elas começaram nos séculos XV/XVI. Por José Falcão, dirigente do SOS Racismo.
Ilustração de José Torres.

Como assim?

Viagens a toda a hora;

Sem Bagagens no Porão (era aí que iam os "turistas da época");

Sem ar condicionado: nessa altura já existiam restrições energéticas por causa do ambiente;

Sem direito a refeições: para evitar enjoos com tempestades e ondulações;

Trabalho garantido à chegada. Sim, que estes turistas estavam era a tentar enganar o SEF da altura. Eles e elas queriam era ir trabalhar e por isso se ofereciam para estas viagens.

Queriam trabalhar? Ofereciam-se?

Bom, o salário não era lá grande coisa e talvez tenham sido um pouco empurrados para esses cruzeiros mas, à época, ou era isso ou iam a nado.

Grande coisa?

Quer dizer, era pouco, pois já se começava a sentir a crise.

Pouco?

Pronto, OK! Não recebiam nada. Mas também quem é que, à época, se podia dar ao privilégio de saltar de continente em continente? E mais, quem é que agora consegue visitar o Amazonas, o Pantanal, os Andes? Ou mesmo estar com os Incas, os "peles vermelhas" e outros  grupos, tipo ciganos? Pois agora já desapareceram, ou quase. Aí está, esses turistas puderam conviver com toda essa gente que hoje já só se vê nos filmes. Essa possibilidade, esse privilégio, não tinha nem tem preço. Além de que, muita sorte tiveram em terem sido evacuados de onde viviam. 

"Evacuados"?

Sim... O que é que aconteceu aos que lá ficaram? Perguntem à rainha Ginga, ao Gungunhana. Além de que, deste lado do Atlântico, era só febres, epidemias, doenças. E fome, muita fome (Biafra). E, aos que bazaram, ninguém lhes cortou as mãos, pelo menos até chegarem ao outro lado.

Hoje fala-se de grandes feitos na retirada de milhares e milhares de pessoas deste ou daquele lugar por causa deste ou daquele vulcão, guerra ou outra coisa qualquer. Mas nessa altura, e com os parcos meios de que dispunham, foi comovente ver países em guerra uns com os outros, unirem as armas, digo, as mãos e ajudarem estes pobres milhões sem educação, cultura, religião e capacidade (primitivos mesmo) a fugir de uma morte certa e a morrer longe. 

"Descobrimentos"

E ainda há gente que diz que não se "descobriu" nada? Então não? Em síntese e brevemente vejam só:

"Descobrimos" que havia dezenas de milhões de povos de diferentes cores e em vários continentes, africanos, asiáticos e americanos dispostos, desejosos mesmo de trabalhar à pala.

"Descobrimos" que viviam sobre ou entre dezenas, centenas de produtos que eram importantes para o desenvolvimento das economias de alguns países cultos, educados, inteligentes, amantes de Deus (o nosso) e da vida, incapazes de matar uma mosca e muito menos roubar o que quer que fosse, pois ambas as coisas, (matar e roubar) eram pecado. Depois... fomos confessar-nos.

"Descobrimos" como chegar lá.

"Descobrimos" como os tirar de lá e os colocar noutro sítio, mesmo que não tivessem muita vontade de o fazer.

"Descobrimos" como chegar à Índia, às Américas, a África, até ao Japão, coisa que imensa gente já estava farta de saber (sobretudo os que lá viviam), mas nós ainda não tínhamos "descoberto".

"Descobrimos" que havia bué de religiões espalhadas por esse mundo fora, mas a nossa é que era a TAL... e tratámos de agir como tal!

"Descobrimos" que, apesar de termos "Descoberto" isto tudo, havia gente do "nosso" lado mais, digamos, empreendedores, e mesmo sendo do mesmo credo, não se preocupavam de ir ficando com "alguma" mais-valia desse pessoal.

E estamos a "descobrir" agora que talvez, talvez se não tivéssemos "trabalhado" tão bem nesses séculos, se não fossemos autores de práticas tão inspiradoras para os ditadorzinhos do século passado e mesmo deste, as nossas crises políticas, demográficas, ambientais (e outras) não seriam tão graves e as nossas vidas poderiam ter algum futuro. 

Terão?


Nota - Quero agradecer, sobretudo ao Observador (e a outros), por albergar no seu seio os novos cruzados que, com tanta incapacidade, incompetência e falta de vergonha, vêm combatendo os novos hereges, aqueles que ousam contestar "verdades absolutas" com tantos séculos de Encobrimentos.

Tráfico escravo entre 1501 e 1875:

 

Espanha / Uruguay

Portugal / Brasil

Grã-Bretanha

Países Baixos

EUA

França

Dinamarca / Báltico

Totais

1501-1525

6.363

7.000

0

0

0

0

0

13.363

1526-1550

25.375

25.387

0

0

0

0

0

50.762

1551-1575

28.167

31.089

1.685

0

0

66

0

61.007

1576-1600

60.056

90.715

237

1.365

0

0

0

152.373

1601-1625

83.496

267.519

0

1.829

0

0

0

352.844

1626-1650

44.313

201.609

33.695

31.729

824

1.827

1.053

315.050

1651-1675

12.601

244.793

122.367

100.526

0

7.125

653

488.065

1676-1700

5.860

297.272

272.200

85.847

3.327

29.484

25.685

719.675

1701-1725

0

474.447

410.597

73.816

3.277

120.939

5.833

1.088.909

1726-1750

0

536.696

554.042

83.095

34.004

259.095

4.793

1.471.725

1751-1775

4.239

528.693

832.047

132.330

84.580

325.918

17.508

1.925.315

1776-1800

6.415

673.167

748.612

40.773

67.443

433.061

39.199

2.008.670

1801-1825

168.087

1.160.601

283.959

2.669

109.545

135.815

16.316

1.876.992

1826-1850

400.728

1.299.969

0

357

1.850

68.074

0

1.770.978

1851-1875

215.824

9.309

0

0

476

0

0

225.609

Totais

1.061.524

5.848.266

3.259.441

554.336

305.326

1.381.404

111.040

(...)

Neste dossier:

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