Ucrânia: nem tropas russas, nem fascismo, nem instituições euro-atlânticas

04 de março 2014 - 8:41

A queda de Ianukovitch não é “um golpe” fascista. Mas a composição e as orientações do “governo de união”, apoiado pelas potências ocidentais, vão provocar a explosão da Ucrânia. As explicações de tipo complot e polarizadas ocultam os desafios sociais e democráticos, apoiando-se apenas numa parte da verdade. Por Catherine Samary.

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Do lado da Maidan: Foi um movimento popular, desafiante para todos os partidos por causa dos seus próprios métodos, que fez cair Ianukovitch: mais do que por causa da Europa, a Maidan mobilizou-se massivamente contra a “família” dominante, oligárquica e contra o curso cada vez mais repressivo e personalista do regime, temendo-se que uma integração dos projetos de Putin agrave estas derivas.

Mas isto deu peso ao partido Svoboda – que celebra sempre os batalhões SS e valoriza de momento a “Ucrânia europeia” contra a Rússia. Além disso, os militantes do “Pravyi Sektor” tornaram-se populares, camuflando a sua xenofobia numa lógica “antissistema”[i]. Esta presença ativa da extrema-direita, popular num movimento ideologicamente confuso e de tipo “Indignados”, dividiu e enfraqueceu as forças de esquerda.

Ora, a passagem de um movimento social de rua para um “governo de união” modifica tudo: dá peso aos partidos valorizados em bloco pela UE – muito contente por pôr em cima da mesa o seu projeto de “parceria oriental” ultraliberal. Este projeto apresentado pela UE em contradição com os projetos russos, é destrutivo para a Ucrânia, tanto social como nacionalmente.

Do lado Russo – e russófono. Putin queria, independentemente dos acontecimentos recentes, modificar o tratado assinado com a Ucrânia, a fim de prolongar a manutenção da sua base militar em Sebastopol (que tem um estatuto autónomo no seio da Crimeia, ela própria dotada de um estatuto especial) em troca de uma baixa nos preços do gás russo[ii]. Ele procura hoje – em nome da proteção das populações locais (com 60% de pessoas russófonas) – obter o que negociou com Ianukovitch desde 2010 naquela relação de forças – a saída das tropas da sua base para controlar a Crimeia e contrariar as orientações anti russas, mesmo com risco de uma guerra.

Mas os medos, a mobilização e o apelo à ajuda das populações locais não são, no entanto, uma questão soprada a partir de Moscovo: o primeiro ato do “governo de união”, aprovado após a queda de Ianukovitch, foi pôr em causa o estatuto do russo como língua oficial nas regiões russófonas. Esta medida envenenou imediatamente a situação, assim como a entrada dos ministros do Svoboda no “governo de união”: o derrube das estátuas de Lenine e a proibição do Partido das Regiões e do Partido Comunista nos locais onde dominam o Svoboda e o Pravyi Sektor envolveram na confusão as heranças, os rótulos e memórias sobre a história passada. Compreender isso não é aceitar.

Contra os falsos dilemas, recentragem social e democrática: contra os crimes cometidos é preciso não proibir partidos, mas uma justiça independente dos partidos. É decisivo combater as ideologias racistas e xenófobas: os tártaros muçulmanos da Crimeia, deportados por Estaline, regressados à sua região a partir de 1991 e, como tal, pro-Maidan por medo da dominação grã-russa, serão ameaçados tanto pela ideologia do Svoboda no poder em Kiev como pelo Pravyi Sektor que defende a “cristandade” contra as “burqa”.

É preciso dar primazia ao que aproxima as populações de toda a Ucrânia – o compromisso com a independência adequada da língua ucraniana, mas associada com os direitos culturais e linguísticos tanto dos tártaros da Crimeia como dos ucranianos russófonos; e os desafios sociais, essenciais. A aspiração democrática deve transformar as desconfianças “antissistema em assembleias de cidadãos, como na Bósnia, pondo em causa as privatizações que desmantelaram os direitos sociais. É preciso denunciar a dívida como ilegítima contra os planos de austeridade do FMI.

A autonomia e, amanhã, a desmilitarização da Crimeia, implicam a neutralidade militar da Ucrânia. A sua unidade, e a de todo país, vão a par com a defesa dos direitos sociais e culturais de todos e todas contra o fascismo, contra a dominação grã-russa ou das instituições euro-atlantistas.

 

Artigo de Catherine Samary publicado em cadtm.org.

Tradução de Carlos Santos para esquerda.net



[i]Ler le Monde Diplomatique de março “En Ukraine, les ultras du nationalisme” E. Dreyfus/