Os "Uber Files", uma investigação de um consórcio de jornalistas sobre o lóbi agressivo da Uber para romper a regulamentação do setor do táxi em França e entrar à força nesse mercado, divulgou dados das comunicações entre os lobistas da multinacional Uber e elementos do executivo, nomeadamente o então ministro da Economia Emmanuel Macron. Segundo o ex-lobista e lançador de alerta dos Uber Files, Mark MacGann, Macron teria afirmado a vontade de "fazer com que a França trabalhe para a Uber, para que a Uber possa trabalhar na e para a França". E no que toca à primeira parte, a multinacional pôde contar com o empenho de Macron: primeiro enquanto ministro, ao chegar a um acordo com os seus dirigentes, apesar de promoverem a gritante violação da lei francesa com a introdução de um serviço de TVDE ilegal; em seguida na Presidência, com os seus governos a contrariarem as decisões judiciais para vincular os trabalhadores das plataformas.
Em seis meses de atividade, a comissão de inquérito realizou 67 audições com 120 pessoas, entre os quais três antigos chefes de governo, vários ex-ministros e deputados, atuais e ex-dirigentes da Uber e de outras plataformas de estafetas e TVDE. O relatório final, com mais de 500 páginas, foi aprovado com 12 votos a favor e 11 abstenções.
A relatora foi Danielle Simonnet, da França Insubmissa, que explica como "a plataforma escolheu a ilegalidade como estratégia de crescimento". Um dos documentos mais eloquentes dessa estratégia foi o da apresentação interna intitulada "Pirâmide de merda", que simbolizava as leis e regulamentações que a Uber iria contrariar, ou a utilização do software Casper que permitia acionar um "kill switch" para impedir o acesso aos dados em caso de fiscalização.
Après 6 mois de travail, voici le rapport de la commission d'enquête sur les #Uberfiles
Les révélations sont édifiantes ! Macron a non seulement aidé une entreprise hors la loi à s'implanter, mais il continue à défendre le modèle Uber afin de poursuivre sa casse du salariat ! pic.twitter.com/lx1y2U4QZV
— Danielle Simonnet (@SimonnetDeputee) July 18, 2023
"Estamos verdadeiramente perante uma empresa totalmente fora da lei e que disso faz gala, e que apesar disso vai obter apoio junto do aparelho de Estado na pessoa de Emmanuel Macron enquanto ministro da Economia", refere a deputada, recorrendo aos documentos divulgados por Mark MacGann. O relatório deixa em aberto quais terão sido as contrapartidas obtidas por Macron, referindo a participação de dirigentes da Uber no financiamento da primeira campanha presidencial em 2017.
Entre as principais conclusões do relatório está a de que a Uber "impôs, ao arrepio da lei, um facto consumado ao Estado de direito", graças a uma estratégia de lóbi agressivo junto dos decisores políticos que encontrou aliados dentro do Governo, com Emmanuel Macron a ser o seu apoio mais valioso. O relatório dá como provado um acordo entre Macron e a Uber, em que a empresa se comprometia a acabar com o seu serviço ilegal de TVDE Uberpop, em que basicamente qualquer pessoa podia transformar o seu carro em TVDE, em troca da redução das horas de formação necessárias para aceder à profissão de motorista destes transportes de 250 horas para apenas 7 horas, o que permitiu à Uber inundar o mercado de novos motoristas formados em apenas um dia.
O relatório aponta que a empresa operou na ilegalidade também noutros domínios, como no que toca ao pagamento de impostos, à lei laboral, ao pagamento das contribuições para a Segurança Social, mas também quanto à lei da concorrência ou da proteção de dados, sem que o Estado tenha agido para pôr cobro a essas situações.
Governo francês continua a alinhar com o regime de precarização do trabalho das plataformas
Mas a comissão debruçou-se também para o que aconteceu nos últimos anos, com a entrada de novas plataformas com os mesmos métodos em vários setores. E voltam a confirmar a ausência de reação do Estado para fazer respeitar a lei, nomeadamente no que toca a reconhecer o vínculo laboral dos trabalhadores das plataformas. O governo francês fez sua a estratégia da Uber em defesa da presunção de independência, chegando mesmo ao ponto de contestar nas reuniões dos governos da UE a presunção de laboralidade proposta pelo Parlamento Europeu e pela Comissão Europeia.
Quanto às recomendações da comissão, elas passam pelo reconhecimento da presunção de laboralidade dos trabalhadores das plataformas, a criação de uma autoridade independente para vigiar o cumprimento das leis, o reforço dos meios de fiscalização do setor e outras medidas com vista à transparência fiscal destas empresas e o respeito pelos direitos dos seus trabalhadores. Quanto à atividade dos lobistas, propõe a obrigação destes declararem os seus contactos com decisores políticos, bem como a obrigação dos políticos divulgarem as suas agendas de reuniões, incluindo o nome da organização, o motivo da reunião e as propostas transmitidas pelas empresas em questão. Mas também a criação de uma plataforma que permita não só aos lobistas mas também às ONG, sindicatos e cidadãos em geral publicarem as suas propostas de alteração às leis em discussão pública. A comissão pretende igualmente que o Parlamento discuta e vote a posição francesa no debate sobre a diretiva europeia das plataformas digitais, defendendo a presunção de laboralidade.