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Turquia usa refugiados sírios como moeda de troca no ataque aos curdos

No ataque aos curdos em Afrin, a mensagem da Turquia à Europa é clara: estamos a lidar com as vossas ameaças, por isso devem ajudar-nos e deixar-nos tratar das nossas. Artigo de Ali Bilgic.
O presidente turco Erdogan e o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk. Foto União Europeia ©

Quando as tropas terrestres turcas entraram em Afrin, o enclave curdo no norte da Síria, em janeiro, o regime fez um cálculo político deliberado. A operação, batizada por Ancara de "Ramo de Oliveira", envolve as forças do exército turco e o Exército Livre da Síria, com apoio aéreo, e tem por objetivo expulsar os combatentes das Unidades de Proteção Popular curdas (YPG) de Afrin.

Uma das razões dadas pela presidência turca para esta operação foi que ela permitiria começar a enviar alguns dos três milhões e meio de refugiados sírios a viver na Turquia de volta para uma zona segura na Síria. E estaria a fazê-lo em nome da “segurança europeia”.

Isto assinala um regresso à retórica em que a Turquia se apresenta como sendo útil à segurança da Europa. Esta retórica marcou a cultura de segurança da Turquia durante a Guerra Fria, quando estava alinhada com o Ocidente contra a União Soviética, mas foi depois abandonada nos anos 1990 e 2000, quando o país começou a desenvolver relações com a Rússia e os estados do Médio Oriente.

Uma vez mais, o presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, defende que o país pode ajudar a combater o terrorismo na Europa ao travar a imigração irregular em curso. Agora, a mensagem da Turquia à Europa é clara: estamos a lidar com as vossas ameaças, por isso devem ajudar-nos e deixar-nos tratar das nossas.

Esta nova operação não é a primeira vez que o regime de Erdogan usou estrategicamente os refugiados sírios nas suas relações com a Europa. Após o colapso das negociações de paz entre o governo da Turquia e o movimento curdo em 2015-16, as Forças Armadas turcas lançaram operações militares no sudeste da Turquia contra o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que está ligado ao Partido União Democrática curdo (PYD). Segundo o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, mais de 2.000 civis foram mortos e 355.000 foram deslocados no âmbito dessas operações. Várias cidades foram riscadas do mapa, incluindo a cidade histórica de Sur.

O regime jogou a carta dos refugiados sírios para acalmar as críticas vindas da Europa. O resultado foi o acordo UE-Turquia sobre refugiados em março de 2016, em que os migrantes em situação irregular que cheguem à UE vindos da Turquia são devolvidos – com um compromisso de 6 mil milhões de euros da UE para a Turquia. O acordo foi negociado enquanto jornalistas e intelectuais, críticos das operações militares contra os curdos, eram alvo dos ataques das autoridades turcas.

Ligar refugiados à segurança da Europa

Erdogan voltou a jogar a carta dos refugiados em novembro de 2016, quando o Parlamento Europeu votou para congelar as negociações de adesão da Turquia à UE. Percebendo o quão importante seria para a Europa que os refugiados sírios ficassem na Turquia em vez de arriscarem a travessia perigosa por mar para a Grécia, ele disse: “se forem mais longe, estes portões fronteiriços irão abrir-se”. Em julho de 2017, o Parlamento Europeu apelou à suspensão do processo de adesão. A questão da adesão turca tornou-se um assunto quente das eleições alemãs de setembro de 2017, quando a chanceler Angela Merkel disse que iria defender o fim das conversações.

Com a Operação Ramo de Oliveira, os refugiados sírios estão a ser usados para o avanço dos interesses turcos para além das suas fronteiras – com uma referência explícita, ao mesmo tempo, a tornar a Europa “segura”.

Nos primeiros dias da operação, a conta oficial no Twitter do presidente turco explicou que um dos seus objetivos era “garantir o regresso seguro dos deslocados  sírios às suas casas” e que ela iria “travar o fluxo de elementos terroristas e migrantes sem documentos para a Europa”. A lógica era que assim que a operação estivesse concluída, ela permitira “o regresso de 500.000 refugiados a Afrin”.

Operation Olive Branch: Kurdish refugees hope to return home to Afrin

A este propósito, o representante em Bruxelas do partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) disse a 30 de janeiro que “a operação vai levar ao regresso dos refugiados curdos na Turquia. Quanto menos refugiados estiverem na Turquia, menos migrantes entram na Europa”.

O regresso da retórica da Guerra Fria

Não é claro se o relativo silêncio da UE e os seus estados membros sobre a operação em Afrin está ligada à utilização estratégica dos refugiados pela Turquia. No entanto, dada a prática do regime de Erdogan nos últimos anos, parece que a Turquia vive de novo a mentalidade que dominou a sua cultura de segurança durante a Guerra Fria: uma Turquia segura significa uma Europa segura, e por arrasto, a NATO.

A UE reconhece que a sua segurança está sob ameaça dos “migrantes ilegais” e do terrorismo. A operação militar da Turquia na Síria contra a região autónoma curda – que é em si uma ameaça à Turquia – também ajudará a Europa a tratar da sua própria ameaça. O serviço de notícias de um think-tank do regime, SETA, escreveu isto com todas as palavras: “Se a Europa e a UE querem proteger os seus valores, então devem apoiar esta operação da Turquia”.

Ao estabelecer uma relação entre migração sem documentos e terrorismo, Erdogan usa um tema que capturou a mentalidade de segurança da UE desde a era do pós 11 de Setembro. A Turquia percebeu bem que ligar qualquer assunto à migração lhes dá vantagens nas negociações com a UE. Sendo um país de passagem para migrantes sem documentos, é provável que peça à UE o lançamento de novos mecanismos e ajuda financeira na área da cooperação contraterrorista em troca de impedir a migração irregular no futuro.

A Turquia precisa de se posicionar como o fornecedor de segurança à Europa, de forma a alcançar os seus próprios interesses no enfraquecimento da região autónoma curda na Síria e substitui-la por uma administração pró-turca ou uma “zona de segurança” neutral. E precisa de o fazer sem levantar grandes ondas na Europa.

A Turquia assumiu o posto de guarda fronteiriço da UE. O regime entende que os migrantes bloqueados na Turquia serão úteis para os seus interesses tanto ao nível interno como internacional. E a Europa parece satisfeita, por enquanto, em entrar no jogo turco da neo-Guerra Fria.


Ali Bilgic é professor de Política e Relações Internacionais na Universidade de Loughborough, Inglaterra.

Artigo publicado no portal The Conversation. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net

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