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A Turquia e a sua “bomba humana”

A rápida escalada da tensão política entre a União Europeia (UE) e a Turquia, embora silenciosa, teve uma viragem perigosa nas últimas semanas. Por Baher Kamal, da IPS.
Centenas de refugiados num barco pesqueiro, pouco antes de serem resgatados pela marinha italiana na sua operação Mare Nostrum, em junho de 2014. Foto: MassimoSestini/Guarda Costeira italiana. Fonte: Centro de Notícias/ONU
Centenas de refugiados num barco pesqueiro, pouco antes de serem resgatados pela marinha italiana na sua operação Mare Nostrum, em junho de 2014. Foto: MassimoSestini/Guarda Costeira italiana. Fonte: Centro de Notícias/ONU

Será possível que Ancara lance uma “bomba humana” contra a Europa e abra as suas fronteiras, permitindo a passagem de refugiados para a Grécia e outros países do bloco?

A pergunta pode ser tudo, menos trivial, e, de facto, o assunto preocupa enormemente as agências humanitárias e a Organização das Nações Unidas (ONU), que realizam incansáveis esforços para cobrir as enormes necessidades de assistência provocadas pela aparente grande indiferença das potências, as principais responsáveis pela atual crise sem precedentes.

As potências - concretamente Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, com apoio de outros países ocidentais e de ricas nações árabes - estão à frente de coligações militares que invadiram o Afeganistão e o Iraque e, juntamente com a Rússia, fornecem armas à maior parte dos grupos que se enfrentam na Síria. É irónico que essas quatro potências também sejam membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e com direito a veto.

Nesse contexto, a pergunta inicial não é simples especulação alarmista. De facto, o presidente turco, Recep Tayyib Erdogan, fez ameaças concretas contra a Europa, se esta continuar sem cumprir os dois compromissos que assumiu no contexto do acordo que assinou com Ancara, no dia 22 de março, para administrar o fluxo de refugiados, que muitos rotularam de “vergonhoso”.

Refúgio de Al-Riad na cidade síria de Alepo. A população civil continua a sofrer violência e horríveis privações na Síria, segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários. Foto: Josephine Guerrero/Ocha

Refúgio de Al-Riad na cidade síria de Alepo. A população civil continua a sofrer violência e horríveis privações na Síria, segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários. Foto: Josephine Guerrero/Ocha

O acordo consiste em que a Turquia volte a receber centenas de milhares de solicitantes de asilo, que chegaram ao seu território procedentes, principalmente, de Síria, Iraque e Afeganistão, e que seguiram para a Europa através de países fronteiriços, especialmente a Grécia. Então a UE “selecionará” um número determinado deles, concretamente de origem síria.

Em troca, a UE se comprometeu a pagar 3 mil milhões de euros por ano, a partir de novembro de 2015, a Ancara como forma de compartilhar uma relativamente pequena porção do grande custo económico que implicará dar lugar para viver, alimentos e cuidados médicos aos solicitantes de asilo repatriados. O bloco também se comprometeu a permitir a entrada de cidadãs e cidadãos turcos no seu território sem exigência de visto.

Na Turquia residem atualmente três milhões de refugiados. As tensões entre a União Europeia e a Turquia ficaram claras durante a Cimeira Humanitária Mundial, organizada por esse país nos dias 23 e 24 de maio, assumindo uma grande parte do seu custo.

A cimeira procurou ressaltar o facto de que o sofrimento humano alcançou níveis assombrosos sem precedentes, como escreveu para a IPS o secretário-geral adjunto da ONU para Assuntos Humanitários, Stephen O’Brien, político e diplomata britânico nascido na Tanzânia, além de convocar os governantes do mundo a mobilizarem os tão necessários recursos para aliviar o drama humano.

Menina num centro de receção de refugiados em Roma, na Itália. Foto: Rick Bajornas/ONU

Menina num centro de receção de refugiados em Roma, na Itália. Foto: Rick Bajornas/ONU

Por ocasião do encontro, a ONU reuniu uma série de dados impactantes. O mundo é testemunha de necessidades humanitárias com não se via desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e experimenta uma catástrofe humana “de proporções titânicas”, como disse à IPS o porta-voz da cimeira, HervéVerhoosel. Há 125 milhões de pessoas com uma necessidade extrema de assistência, mais de 60 milhões de deslocados pela força e 218 milhões afetados em cada ano por desastres, nas duas últimas décadas.

A ONU também quantificou a necessidade de recursos, que situou em 20 mil milhões de dólares, para ajudar 37 países afetados atualmente por desastres e conflitos. Além disso, destacou que, se não forem tomadas medidas imediatamente, 62% da população mundial, quase duas em cada três pessoas, viverão em condições consideradas frágeis até 2030.

Apesar desses espantosos factos, nenhum dos governantes dos países mais ricos do Grupo dos Sete (G-7) mais industrializados, ou dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, participou na Cimeira Humanitária Mundial. A única exceção foi a chefe de governo da Alemanha, Angela Merkel, que viajou a Istambul com Erdogan, mais para aliviar a tensão política do que para participar no encontro de alto nível.

A ausência dos governantes dos países mais ricos foi amplamente criticada, começando pelo secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, que lamentou o facto publicamente, no dia 24 de maio. Por sua vez, Erdogan expressou profunda deceção pelo boicote dos líderes mundiais. E, numa entrevista coletiva no final da cimeira, queixou-se de que a Europa não cumpriu os seus compromissos porque não forneceu os fundos prometidos, nem parou de pedir visto aos cidadãos turcos para poderem entrar nos países da União Europeia.

O presidente turco expressou a sua enorme indignação pelas 72 novas condições que a UE impôs a Ancara em troca de isentar de visto os cidadãos do seu país, as quais implicam, entre outras coisas, que a Turquia mude as suas leis antiterroristas.

Nesse contexto, Erdogan ameaçou a UE dizendo que, se não cumprir a sua parte no acordo de refugiados, o parlamento turco também não ratificará o documento. Isso significa que a Turquia não só impedirá a repatriação forçada de refugiados para o seu território, como permitirá que cada vez mais pessoas nessa situação atravessem as suas fronteiras com países da União Europeia.

Além disso, cada vez mais organizações acusam a UE de selar com a Turquia um acordo imoral, pouco ético e, sobretudo, ilegal no tocante ao tratamento dos refugiados. Ao mesmo tempo, na Europa crescem rápida e perigosamente os movimentos e partidos de extrema direita que alimentam o ódio, a xenofobia e a islamofobia. E, enquanto isso, dezenas de milhares de refugiados e migrantes continuam a tentar chegar à Europa, muitos deles morrendo no mar, vítimas de práticas desumanas e da manipulação de contrabandistas.

Menino afegão mostra os haveres da sua família em frente a uma tenda de campanha, perto de Röszke, na Hungria. Foto: Zsolt Balla/© Alto Comissariado para os Refugiados

Menino afegão mostra os haveres da sua família em frente a uma tenda de campanha, perto de Röszke, na Hungria. Foto: Zsolt Balla/© Alto Comissariado para os Refugiados

Organizações e agências humanitárias como Médicos Sem Fronteiras, Save The Children, Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Agência das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), entre outras, alertam que um número crescente de meninas e meninos menores de idade sem acompanhantes adultos cruzam o Mar Mediterrâneo e as fronteiras europeias, e constituem uma em cada três pessoas nessa situação, segundo estimativas atuais.

Dois dias antes do Dia Mundial dos Refugiados, celebrado no dia 20, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, visitou a ilha grega de Lesbos, convertida no ponto de entrada para a Europa de numerosos refugiados. Na ocasião, pediu “aos países da região” que respondessem com “um enfoque baseado no direito humanitário e nos direitos humanos, e não com fechamento de fronteiras, com barreiras e intolerância”.

“Reuni com refugiados de alguns dos lugares mais problemáticos do mundo. Viveram um pesadelo, que ainda não terminou”, ressaltou Ban às organizações não governamentais, voluntários e meios de comunicação presentes.

O tique-taque da “bomba humana” que se ouve às portas da Europa contrasta com a inexplicável passividade dos seus governantes. Envolverde/IPS

Artigo de Baher Kamal, da IPS, publicado por Envolverde

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