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Tribunal francês ordena censura preventiva de notícias sobre a Altice

"É uma decisão bastante surpreendente, para dizer o mínimo", afirmou ao Mediapart a advogada do jornal online Reflets, que publicou pormenores dos gastos de Patrick Drahi e dos seus familiares, geridos por um ramo do império Altice e cujos dados foram expostos em agosto por piratas informáticos, ante a recusa da empresa em pagar um resgate de 5,5 mil milhões de euros.
Chamado a pronunciar-se sobre o caso, o tribunal do comércio emitiu uma sentença contraditória. Por um lado, rejeitou o argumento da Altice de que o jornal online, ao publicar artigos com base naqueles documentos, seria cúmplice dos piratas informáticos do grupo Hive. Quanto ao principal argumento da empresa, o da violação de segredo comercial, que preocupava os defensores da liberdade de imprensa por ser a primeira vez que é invocado na nova redação da lei de 2018, foi recusado pelos juízes, com o argumento de que os artigos tratavam sobretudo da vida pessoal do bilionário, pelo que deviam ser contestados do ponto de vista do direito à privacidade, o que cai fora do âmbito de ação do tribunal do comércio.
No entanto, quanto ao pedido da Altice para proibir novas publicações, invocando "dano iminente" com violação do dito segredo comercial, o tribunal emitiu opinião diferente, proibindo novas notícias sobre o assunto ao considerar poder haver uma ameaça às sociedades do grupo Altice "face à incerteza sobre o conteúdo das publicações futuras que poderiam revelar informações ao abrigo do segredo comercial".
"Esta decisão é simplesmente uma censura a priori dos jornalistas"
"Por um lado, dá-nos razão ao dizer que o Reflets não é culpado de um ataque ao segredo comercial. Mas por outro, o juiz recusa ter em conta a questão da liberdade de informação, um princípio que tem valor constitucional, proibindo a publicação de novos artigos", lamentou Lorraine Gay. Além disso, acrescentou, trata-se de "uma proibição geral e absoluta, extremamente vaga, sem precisar o tipo de informações que pudessem ser ou não publicadas". Ou seja, concluiu a advogada do Reflets, "é simplesmente uma censura a priori dos jornalistas. E ainda por cima não prevê quaquer sanção em caso de incumprimento. É uma decisão que não faz qualquer sentido".
Para o jornal alvo desta censura preventiva, o efeito desta decisão é o de "fazer calar os jornalistas" e foi conseguido. O Reflets vai recorrer da decisão que também o condena a pagar 4.500 euros à Altice e queixa-se que "por um lado, este processo custou-nos uma fortuna comparado com o nosso volume de negócios anual, por outro já não podemos exercer a nossa profissão: informar os cidadãos sobre assuntos de interesse geral, para que eles possam exercer o seu livre arbítrio". E questiona-se sobre o que acontecerá a outros jornais, como o Le Monde, que publicaram artigos com base nos documentos roubados. "Eles podem continuar a escrever?"
Imprensa indignada com "processo mordaça"
Em reação à sentença do tribunal de comércio de Nanterre, dezenas de publicações independentes, o sindicato de jornalistas e a Federação Europeia de Jornalistas afirmam a solidariedade com os jornalistas do Reflets. E acusam o "processo-mordaça" interposto pela Altice e o seu proprietário Patrick Drahi de destruir "o princípio democrático de uma imprensa livre e independente".
Para estes meios de comunicação, se vingar a interpretação que aqueles juizes fazem da lei de 2018 sobre o segredo comercial, "é toda a investigação económica que pode desaparecer. Seria impossível informar o público de casos como os do Panama Papers, os LuxLeaks, os Malta Files, os Football Leaks, os Uber Files que revelaram escândalos imensos de evasão fiscal e branqueamento de capitais".
O apelo subscrito até segunda-feira por 74 publicações diz que se trata de uma "decisão liberticida" que vem contornar a lei da imprensa de 1881 que consagra a liberdade de imprensa em França
A vida de milionário exposta nos documentos roubados à Altice
As notícias publicadas pelo Reflets dão conta do quotidiano dos milionários, numa altura em que Macron acabara de anunciar "o fim dos tempos da abundância". No caso da família Drahi, isso passa por cartões de crédito com plafonds mensais de 38 mil euros, quadros de Picasso, Chagall, Delacroix, Kandinsky, Dubuffet, Giacometti e muitos outros, uma coleção interminável de automóveis de luxo, super-iates, jatos privados, casas e apartamentos.
Outros detalhes publicados mostram como os hábitos e preferências de cada membro da família são conhecidos das tripulações dos jatos e dos iates. No caso de Drahi, o avião não levanta voo sem ter chocolates suíços e o iogurte de baunilha de uma certa marca, ou meias elásticas no caso de uma viagem intercontinental. A tripulação do iate sabe que o deve tratar por "Senhor" e nunca "Senhor Drahi" e que o silêncio deve imperar de manhã. E que nunca lhe devem ser oferecidos tomates.
O Family Office supervisiona os negócios promovidos através de sociedades domiciliadas nos paraísos fiscais do Luxemburgo ou no estado do Delaware, por exemplo para a compra do apartamento no 66º e último andar de um arranha-céus em Nova Iorque por 54,5 milhões de dólares, complementado por peças de decoração que incluem um piano Steinway adquirido por mais de 150 mil dólares.
Os documentos ilustram também a generosidade de Drahi para os seus descendentes em 2020 e 2021, As filhas Angelina e Graziella recberam do pai cerca de 22 milhões de euros cada uma, o filho David 9,6 milhões, enquanto Nathan parece ter sido de longe o mais favorecido, com 770 milhões.
Os negócios de arte também passam por complexas estruturas jurídicas normalmente sediadas no Luxemburgo para a chamada "otimização fiscal". Segundo o Reflets, os documentos revelados mostram como a família foi adquirindo ao longo dos anos obras de arte por um preço de compra a rondar os 925 milhões de euros. Em 2019, Patrick Drahi reforçou a presença no mercado das artes ao adquirir a leiloeira Sotheby's por 3,7 mil milhões de dólares.
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