Transnístria, a história da república separatista apoiada pela Rússia

04 de maio 2022 - 21:48

A Rússia usou a república separatista para forçar a Moldávia a ficar na sua órbita, através do controlo sobre centrais elétricas, gasodutos, da fraude eleitoral recorrente a favor dos candidatos pró-russos, da constante pressão militar e do crime organizado. Por Vlad Iaviță.

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Soldados russos em exercícios na Trasnítria em 2017. Foto do Ministério russo da Defesa.
Soldados russos em exercícios na Trasnítria em 2017. Foto do Ministério russo da Defesa.

É estranho para mim encontrar o Twitter cheio de ocidentais a querer saber coisas acerca da Transnístria. Antes, a região separatista da Moldávia, nas fronteiras com a Ucrânia, apenas tinha uma cobertura noticiosa ocasional enquanto “o país que não existe”.

Para muitas pessoas, a Transnístria é uma excentricidade geográfica, cheia de crimes, mas sem uma clara força geopolítica por detrás. Mas as recentes explosões em localizações estratégicas no território separatista voltaram a colocá-lo nos noticiários. A presidente moldava, Maia Sandu, declarou que a pressão para aumentar as tensões vem das fações pró-russas dentro da Transnístria, enquanto que a Rússia classificou os ataques como "atos de terrorismo".

Em resposta, alguns analistas foram para as redes sociais contar as suas histórias da Transnístria, descrevendo como descobriram a sua existência de forma acidental, muitas vezes através de experiências de viagem desagradáveis. Para muitos dos que a conhecem é o arquétipo da zona de “conflito congelado”, um Estado falso na Europa de Leste que parece e atua como uma relíquia soviética, um paraíso para o crime organizado que a partir daí afeta os Estados vizinhos.

Para mim, é o lugar de onde vem a minha família.

Uma forma de vida que está a desaparecer

Cresci em Bucareste, mas a Transnístria sempre foi um lugar fascinante, onde ia visitar amigos e família nos aniversários e festas. Estou desejoso de voltar este Verão e ficar por um período mais longo, em parte para documentar as histórias do que se passa no terreno, em parte por preocupação de que a situação se deteriore ainda mais, pode ser a última vez que tenho a oportunidade de experienciar aqueles locais como os lugares relativamente pacíficos, pitorescos, das minhas memórias de infância.

Se não estão familiarizados com a geografia da região, a Transnístria é uma fina faixa de terra que se estende ao longo da margem esquerda do rio Dniester em grande parte da fronteira da Moldávia com a Ucrânia. Antes do colapso da União Soviética, albergava grande parte das infraestruturas industriais da República Socialista Moldava e era a parte mais russófona da República. Separou-se efetivamente da administração de Chișinău, a capital da Moldávia, após a guerra de 1992, quando forças separatistas apoiadas pelos militares russos lutaram contra as tropas moldavas. Desde então, a maior parte do território tem sido administrado por uma auto-proclamada República separatista sem qualquer reconhecimento internacional – nem sequer de Moscovo, pelo menos até agora.

Num contexto mais próspero e estável, as suas zonas de uma beleza natural deslumbrante dariam grandes destinos turísticos. Na zona de Dubăsa, as margens verdes e montanhosas do rio Dniester oferecem o cenário para aldeias de calcário com casas pintadas em tons de azul pastel.

Nos anos mais recentes, contudo, estas têm vindo gradualmente a desaparecer. É um sintoma de como o modo de vida rural da região está a desaparecer – e do falhanço em dar condições para que as pessoas aí continuem a viver e a trabalhar. A realidade de um governo corrupto e pobre – apoiado, de facto, por Moscovo – é um obstáculo demasiado grande para permitir que estas áreas voltem a prosperar através do turismo ou das indústrias locais. E assim as pessoas estão a partir e as suas casas estão a desmoronar-se.

Durante séculos, a região foi atravessada por rotas comerciais que encorajaram o crescimento de diversas comunidades – ucranianos, romenos, moldavos, russos, búlgaros, polacos, membros das comunidades judaicas de toda a região. Em parte devido à suspeição do regime face às minorias, e também devido à sua localização nas fronteiras ocidentais da União Soviética, sofreu imenso durante o terror estalinista dos finais dos anos 1930. muitas famílias da margem esquerda do Dniester têm histórias de familiares que foram enviados para campos de trabalho ou simplesmente executados e enterrados em locais não assinalados.

Cicatrizes da guerra

Mas a maior parte das cicatrizes que hoje são visíveis foram deixadas pela luta que estabeleceu as fronteiras atuais da auto-proclamada “República Moldava Peridniestriana” – para dizer o seu nome oficial. As aldeias e vilas ao longo das linhas da guerra de 1992 ainda mostram sinais dos combates – há por todo o lado escolas, casas e vedações atravessadas por estilhaços.

Apesar da sua história complexa, a influência cultural russa continua a ser forte aqui, o que se reflete nos meios de comunicação social e, em particular, nos canais de televisão mais populares. Até nas casas dos meus familiares mais ocidentalizados, a televisão russa estava sempre ligada – desde os filmes ao talk shows, havia sempre alguma destas coisas a soar como pano de fundo.

Muita gente na Transnístria também partilha um sentimento de nostalgia pela União Soviética, pelo menos pelos anos 1970 e 1980. As pessoas lembram-se desta época como um período no qual pelo menos havia um sentimento de comunidade, com os locais de trabalho perto de casa, boas ligações de transportes e eventos frequentes – desde festas a projeções de filmes – até nas aldeias e vilas mais pequenas. As suas vidas eram vividas num raio de distância pequeno – não era perfeito ou abastado mas era previsível e relativamente confortável.

Agora, estes agregados populacionais mais pequenos estão esvaziados. Toda a gente sai ou pensa fazê-lo – ou para o Ocidente ou para Leste, com o primeiro a ter-se tornado ainda mais atraente depois do acordo de associação da Moldávia com a União Europeia implementado em 2016. A Roménia tem também uma política muito aberta de oferta de cidadania aos moldavos, sendo utilizada como principal via para emigrar para a Europa Ocidental.

Hoje em dia, é difícil pintar uma imagem cristalina da opinião pública, uma vez que não existem sondagens recentes e fiáveis feitas no território separatista. É evidente, porém, que algumas pessoas são genuinamente pró-russas e olham com desdém para as aspirações ocidentais da Moldávia. Muitas outras são apenas céticas e parecem estar simplesmente preocupadas com os problemas mundanos da vida quotidiana. E, claro, existe ainda um grupo que prefere abertamente a reintegração na Moldávia e a sua viragem para Ocidente.

Um regime cleptocrático

O declínio de aldeias e vilas explica-se por uma mudança na procura do mercado global de trabalho e pela captura da Transnítria por um regime cleptocrático, autoritário, em Tiraspol, a capital não reconhecida deste Estado. A corrupção e o crime organizado tornam muitas atividades económicas difíceis e imprevisíveis, ao mesmo tempo que a infraestrutura continua a ser extremamente pobre.

Apoiada política e economicamente de forma ilegal por Moscovo nos últimos 30 anos, a cleptocracia de Tiraspol fomenta o crime e os abusos dos direitos humanos. Tráfico de seres humanos, raptos, assassinatos, qualquer forma de violência que se possa pensar, toda a gente na região conhece alguém que já tenha sido vítima.

O mais perturbante, contudo, é que apesar do facto disto continuar a acontecer há décadas, algumas pessoas só estão a descobri-lo agora – ou só agora o consideram digno da sua atenção. Com a situação na Ucrânia, muitos ficaram surpreendidos ao assistir às escandalosas alegações da Rússia de um genocídio contra as pessoas de etnia russa no país. O uso de regimes fantoche no Donbass chamou a atenção para os “novos” truques geopolíticos da Rússia. O uso de operações de “provocação” pelo exército russo para justificar a agressão da Ucrânia ganhou notoriedade depois dos avisos dos serviços secretos ocidentais neste inverno. Mas já tudo tinha acontecido, escondido à vista desarmada. O plano de tudo o que surpreendeu o mundo em 2022 começou em 1992 na Transnístria.

A Rússia, o movimento separatista e a guerra de 1992

O movimento separatista começou com o arco narrativo de que os cidadãos russófonos seriam marginalizados por uma Moldávia de direita, nacionalista. As forças militares russas apoiaram as milícias separatistas antes e durante o conflito de 1992. A justificação para o assalto das tropas da Transnístria à esquadra de polícia de Dubăsari a 1 de março desse ano (a ação que efetivamente começou a guerra) foi baseada na falsa acusação de que a polícia moldava foi responsável pelo assassinato de um líder separatista.

Na sequência da guerra, a Rússia apoiou mas não reconheceu a república separatista. Usou-a para forçar a Moldávia a ficar na sua órbita, através do controlo sobre as maiores centrais elétricas em Dubăsari e Cuciurgan, sobre os gasodutos; através de fraude eleitoral recorrente a favor dos candidatos pró-russos; ou através da constante pressão militar e do crime organizado.

Todos os tipos de agressão e interferência têm estado presentes na Transnístria. A guerra e a ocupação começaram realmente após o colapso da URSS. Andamos a falar há 30 anos sobre a reaproximação com uma Rússia em democratização, enquanto o seu império se mantinha vivo às nossas portas.

Já que se perdeu a oportunidade de aprender com o aviso que foi feito, agora é hora de pensar em formas de apoiar a Moldávia a garantir que permaneça estável no meio das novas tentativas de desestabilizar o país. Um passo saudável na direção certa, além de abordar o risco de segurança imediato, seria entender as necessidades das pessoas que vivem em ambos os lados do Dniester.


Vlad Iaviță é estudante de pós-graduação de Políticas Públicas Europeias na London School of Economics. Escreve como jornalista freelancer para vários jornais.

Artigo publicado originalmente no Open Democracy. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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