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A trajetória teórica e política de Mario Tronti

Fundador de um marxismo autonomista, autor maior sobre conflitos sociais na Itália de fins do século XX, Tronti regressou ao Partido Comunista, o que foi muitas vezes descrito como uma renúncia. Davide Gallo Lassere vê na sua viragem para a autonomia do político um prolongamento da elaboração operaísta no terreno das instituições.
Fotografia publicada no Contretemps.

O operaísmo ganhou fama internacional pelo seu papel fundador na emergência de um marxismo autonomista, autor teórico maior das conflitualidades sociais na Itália de finais do século XX. No entanto, o pioneiro desta abordagem, Mario Tronti, não seguiu o caminho tumultuoso dos partidários autónomos da insurreição. Oriundo do Partido Comunista, o fim da experiência da Classe Operaia significou para ele um regresso ao seio do partido. Muitas vezes descrito como uma renúncia, a trajetória intelectual de Tronti é aqui recuperada na sua plenitude por Davide Gallo Lassere.

Longe de ser uma regressão teórica, a viragem para a autonomia do político foi para Tronti um prolongamento da elaboração operaísta no terreno das instituições. Convencido dos méritos de uma prática proletária de governo, Tronti propôs nesses anos de crepúsculo uma estimulante releitura dos pensamentos conservadores das instituições (de Weber a Schmitt). Sem tomar partido, Lassere sugere a leitura de um Tronti ainda desconhecido em francês, que oferece uma contribuição rica sobre o devir da classe operária e sobre a questão candente de uma realpolitik comunista. Este artigo foi publicado pela primeira vez pela revista Période em março de 2018.

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Escrutinar o mundo com um olhar político. Confrontar-se primeiro com a história e só depois com a teoria. Buscar não tanto a inserção numa tradição de pensamento, mas sim ferramentas para organizar a luta. Eis, em linhas gerais, a abordagem desenvolvida por Mario Tronti ao longo de toda a sua vida. Mais político pensador do que pensador político, o autor da obra fundadora do operaísmo faz implodir sistematicamente a separação entre teoria e prática. Segundo Tronti, a teoria é sempre política e a política é sempre teórica. É a partir das práticas que produzimos teoria e a teoria pode e deve exprimir uma produtividade política. Como escreveu num artigo de juventude, se O Capital é ao mesmo tempo uma obra científica e um momento de ação política que muda a realidade objetiva das coisas, poder-se-ia argumentar que mesmo a Revolução de Outubro ou a Comuna de Paris são ambos um grande movimento prático e uma poderosa descoberta teórica”[1].

Apesar das viragens significativas ao longo do tempo – do conflito ancorado na materialidade da classe para uma visão metafísica da conflitualidade – esse estilo de ativismo que funde investigação teórica e ação política tornou-se uma das marcas registadas de Tronti, desde o seu início na secção Ostiense do Partido Comunista Italiano (PCI) quando criticou a interpretação togliatiana de Gramsci, até seu último ensaio, Dello spirito libero, e ao seu lugar como senador da República na bancada do Partido Democrata (PD). Um sentimento de pertença ao destino de uma parte do mundo social que – uma vez derrotada pelas forças da história – assumiu traços trágicos [2]. Se, de facto, o século passado assistiu ao confronto titânico em ação no tabuleiro global entre operários e capital, a catástrofe antropológica seguida do colapso do comunismo exige uma reformulação radical do pensamento e da ação. É a sequência destas passagens históricas que alimentou a elaboração trontiana: do operaísmo dos anos 1960 ao confronto com a tradição teológica, passando pela descoberta da autonomia do político, pela leitura dos clássicos da história do pensamento, pelo estudo da revoluções burguesas, operárias e conservadoras, as reflexões sobre o Grande e o Pequeno Século XX, a crítica à democracia política realmente existente e a procura de um realismo antagónico [3].

Dentro e Contra

Operários e Capital é a pedra angular do marxismo autonomista. Escrito num estilo assertivo e para-tático, sem subordinadas nem concessivas, a pregnância categorial deste livro de formação dá origem a um método prático de pensamento tão rigoroso e devotado à realidade que constituiu uma inestimável instrução ética para os militantes-intelectuais do grupo dos operaístas. Proceder a partir de teses, afirmar contornando as demonstrações, exprimir a densidade das relações sociais e políticas numa linguagem incisiva e contundente – é assim que se desenha brechtianamente a “linha de conduta” contra “o plano do capital” numa época em que a fábrica tinha invadido toda a sociedade[4].

Para resumir os múltiplos conteúdos desta obra complexa – que desempenhou um papel teórico e político importante, não só em Itália – é necessário ler o encadeamento dos diferentes capítulos através dos quais o volume está estruturado, em paralelo com a evolução da situação social e política do país e as divisões que marcaram o grupo operaísta. Longe de ser um livro homogéneo, Operários e Capital é, de facto, composto por :

- 1. uma introdução que data do final de 1966, quando a experiência da classe operaia estava a chegar ao fim;

- 2. três capítulos analíticos, as “primeiras hipóteses”, que apareceram nas revistas Il mondo nuovo e Quaderni rossi em 1962-63;

- 3. quatro capítulos políticos, “uma experiência política de tipo novo”, editoriais na revista Classe operaia, todos de 1964;

- 4. as “primeiras teses” de 1965;

- 5. o posfácio à segunda edição de 1970, que anuncia o investimento do campo de batalha da autonomia do político.

Uma vez elaborado o diagnóstico do neocapitalismo nos capítulos iniciais – em particular A Fábrica e a Sociedade e O Plano do Capital – o conjunto do livro é, de facto, atravessado por deslocamentos teóricos e políticos em contacto direto com a dinâmica das lutas sociais em Itália. Estes deslocamentos podem ser decifrados, ao mesmo tempo, como o duplo movimento de afastamento e de aproximação de Tronti ao PCI e as suas ruturas com Panzieri (o lançamento dos Quaderni rossi) e Alquati, Bologna e Negri (o fim da Classe Operaia).

Esta obra de juventude, que coloca em perspetiva os estudos anteriores sobre Gramsci e a lógica do capital nos quais emerge já o primado do sujeito sobre o objeto[5], avança uma leitura de “Marx ontem e hoje”. Como dissemos, para Tronti “o primeiro corpo a corpo da teoria não se dá com a outra teoria, mas com a história” [6]. É a urgência de transformar o mundo que nos obriga à fadiga do conceito [7]. A “purificação marxiana do marxismo” a que aspiram os operaistas passa então por um confronto não entre Marx e outros autores ou com a sua época, mas entre Marx e o capitalismo fordista, keynesiano e taylorista: “O Capital deve ser julgado em termos do capitalismo atual” [8]. As “primeiras hipóteses” desta ousada utilização de Marx para além de Marx, como se virá a dizer mais tarde, visam destrinçar a situação económica do início dos anos 1960. Impulsionadas por um renascimento das lutas operárias – nomeadamente as greves e os bloqueios por causa da renovação dos contratos na Fiat de Turim, em 1962, que imediatamente transbordaram nos motins da Piazza Statuto [9] –, estas hipóteses analíticas lançam um olhar crítico sobre o panorama político-industrial da época, insistindo no tríptico luta-desenvolvimento-crise.

De acordo com os escritos publicados nos Quaderni rossi, é a força das lutas salariais que leva o capital a inovar do ponto de vista organizacional e tecnológico e a socializar as forças produtivas, favorecendo assim a preparação das condições mais favoráveis para o colocar em causa. Com efeito, quanto mais o capital se valoriza, mais é forçado a incorporar a classe operária no processo de acumulação, estruturando-a como uma força potencial de oposição: “na sociedade e ao mesmo tempo contra ela […] o que é precisamente a condição dos operários como classe face ao capital como relação social” [10]. As lutas por aumentos salariais e melhores condições de trabalho – exatamente como as lutas pela jornada de trabalho descritas por Marx no capítulo VIII da sua obra-prima – determinam uma modificação substancial na composição do capital e provocam uma extensão e intensificação dos processos de subsunção do social e da sua colocação em termos capitalistas, fazendo dos trabalhadores arregimentados nas fábricas a verdadeira pedra de toque do sistema. “Ao nível mais elevado do desenvolvimento capitalista, a relação social torna-se um momento da relação de produção e toda a sociedade torna-se uma articulação da produção, no sentido de que toda a sociedade vive em função da fábrica e a fábrica estende a sua dominação exclusiva sobre toda a sociedade" [11].

De um ponto de vista analítico, deve-se considerar 1. a integração crescente do ciclo produção-distribuição-troca-consumo, levada a cabo pelos agentes estatais e capitalistas, e 2. a subordinação progressiva de “toda a relação política à relação social, toda a relação social à relação de produção, e toda a relação de produção à relação de fábrica” [12]. Enquanto que, numa perspetiva política, é preciso inverter a abordagem e considerar “o Estado do ponto de vista da sociedade, a sociedade do ponto de vista da fábrica e, finalmente, a fábrica do ponto de vista do trabalhador” [13]. A famosa “revolução copernicana” [14] do operaísmo que consistiu em considerar as lutas sociais como o motor do desenvolvimento capitalista, ou seja, em fazer deste uma variável dependente daquelas [15], levou os militantes-intelectuais do grupo a reformular a relação entre “classe e partido”. A “experiência política de tipo novo” condensada na palavra de ordem “Lenine em Inglaterra!” visava precisamente trazer “o partido de volta à fábrica” [16] – o coração pulsante das sociedades da época – e, a partir deste centro nevrálgico de comando neocapitalista, lançar um ataque ao aparelho de Estado, rompendo a dicotomia entre lutas económicas e lutas políticas. Uma vez que o movimento operário tradicional estava subordinado à planificação capitalista – com o sindicato a funcionar como correia de transmissão entre os operários e os patrões, e o partido que fornece um apoio externo ao governo do social – o grupo dos operaístas reunidos em torno de Tronti visava a organização autónoma das lutas no seio da fábrica, o que determinou o seu afastamento dos Quaderni rossi [17].

Para contrariar as manobras reformistas, Tronti e os camaradas que convergiram na classe operaia planeiam então pôr em prática “uma velha tática ao serviço de uma nova estratégia”. A ascensão da combatividade operária – “1905 em Itália” – incita-os a encorajar os afastamentos das instituições do movimento operário clássico. A palavra de ordem “Lenine em Inglaterra” representava, de facto, “a investigação de uma nova prática do partido operário: [...] a organização da classe operária no seu mais alto nível de desenvolvimento político” [18]. Esta linha de conduta original necessita de uma forma de organização inédita, capaz ao mesmo tempo de reforçar e radicalizar, intensificar e acelerar as práticas de revolta dos operários. Para entravar a estabilização e provocar uma crise política real – uma crise de poder e não apenas uma crise de governo – “é preciso exacerbar a dinâmica salarial”, “é preciso tocar na produtividade do trabalho”, é preciso “fazer corresponder o ponto mais crítico da evolução conjuntural com o momento mais agudo das lutas operárias” [19]. Apenas forçando “os mais altos níveis de luta” se pode esperar alcançar a vitória, porque “o elo da cadeia onde se produzirá a rutura não será aquele em que o capital é mais fraco mas aquele em que a classe operária é mais forte” [20].

Os comportamentos de insubordinação espontânea dos operários constituía, portanto, a estratégia, enquanto o partido revolucionário devia reconquistar o momento tático, ou seja, recolher, exprimir e organizar a recusa difusa do trabalho, até que se instalasse uma verdadeira crise da máquina do Estado. Segundo a aposta dos operaístas, a situação específica do laboratório italiano – “onde nos encontramos simultaneamente na presença de um nível suficientemente elevado de desenvolvimento económico capitalista e de um nível muito elevado de desenvolvimento político da classe operária” [21] – configura-se como o epicentro da revolução no Ocidente, uma vez que as lutas económicas, ao pesarem na divisão da mais-valia, têm um impacto direto na estabilidade política. Adquiriram uma dimensão verdadeiramente subversiva: tornaram-se politicamente insustentáveis.

Os capítulos centrais de Os operários e o Capital, escritos em 1964 (isto é, na altura da morte de Togliatti, da reestruturação interna do PCI e das potentes lutas operárias), marcam a transição de uma reflexão centrada na ligação fábrica/sociedade para uma reflexão centrada no plexo fábrica/política, isto é, a transição da análise do capitalismo para a teoria da revolução. As “primeiras teses” de 1965 (nomeadamente o ensaio de abertura “Marx, força de trabalho, classe operária”), verdadeiro coração do volume, consolidam esta perspetiva de um ponto de vista histórico-filosófico. Retomam, em retrospetiva, os elementos articulados até então, levando-os ainda mais longe e argumentando-os de forma mais eficaz. Deste modo, 1. o regresso às fontes e aos textos marxianos torna-se mais consistente; 2. a sua importância para a compreensão do presente ancora-se numa arqueologia das lutas no século XIX; 3. manifesta-se mais claramente a abertura a uma nova fase política, que vê, na boca-de-cena, o confronto entre, por um lado, a “estratégia da recusa” que implica a auto-negação dos operários enquanto operários, e, por outro, “os dois reformismos, o do capital e o do movimento operário” [22].

Da heresia à profecia

A leitura política da teoria do valor-trabalho articulada em Os operários e o Capital [23], que faz da classe operária o elemento vital, e portanto potencialmente letal, para o capital, é validada pelo “outono quente” de 1969. No entanto, o balanço desta experiência formidável – que viu os aumentos salariais combinados com greves, bloqueios e sabotagens conduzir a sociedade italiana à beira de uma crise sistémica – confirma a ideia que tinha levado Tronti a decretar o fim da experiência da classe operaia. Para Tronti e para o grupo dos operaístas que refluem para o PCI, não bastava o antagonismo selvagem da recusa do trabalho; era necessário prospetar uma força política organizada capaz por si própria de se elevar às mais altas esferas do Estado, com a finalidade de ocupar as instituições, tomar o poder e governar a sociedade, afirmando positivamente a sua própria perspetiva e as suas próprias necessidades. [24] Verfassung mais do que Konstitution; forma-Estado e não simples carta constitucional. O “posfácio sobre alguns problemas” da segunda edição de Os operários e o capital, baseado numa análise da economia neoclássica inglesa, do papel histórico da social-democracia alemã e das reformas do New Deal norte-americano, alargou o espectro das temáticas abordadas, preparando terreno para a autonomia do político que captura a atenção de Tronti ao longo de toda a década. A constelação de motivos histórico-teóricos que alimentam esta problemática concentra-se nos momentos de crise e de transição em que as dinâmicas económicas estão sujeitas ao domínio da política [25]. A réplica capitalista do início dos anos 70 às lutas sociais, a resposta autoritária (Itália, Alemanha) ou reformista (EUA, Grã-Bretanha) dos anos 20 e 30 às ameaças operária e da União Soviética, o golpe de génio tático de Lenine da tomada do Palácio de Inverno e da NEP que se lhe seguiu mas também os processos de acumulação original e as revoluções burguesas modernas: são todos episódios de domínio político das leis económicas que devem ser explorados em profundidade para afiar as armas da crítica e a crítica das armas.

Quer seja como alavanca de estabilização, como durante a longa paz dos cem anos do século XIX [26], quer seja como catalisador de mudanças sociais [27], como nas experiências supracitadas, a política – o entrelaçamento das classes dirigentes, dos partidos, da cultura e do povo – insiste nas contradições que trabalham uma formação social dada para lhe fornecer uma solução parcial e parcelar. Maquiavel, Hobbes, Hegel e Schmitt; Weber, Lenine e Keynes; a Grande Guerra, 1917 e a Grande Depressão tornam-se assim os bancos de ensaio para testar a validade de tal tese. Se a classe operária quer vencer o capital, tem de se empenhar numa dupla arena, a fábrica e o Estado: os operários contra o capital, por um lado, e o movimento operário organizado contra as classes dominantes burguesas, por outro. A inteligência do capital não se manifesta apenas no plano da inovação tecnológica e organizacional mas também ao nível das instituições; não se limita a regular e planificar a acumulação mas possui também um carácter eminentemente tático e estratégico. Nos momentos de crise, a iniciativa do capital é, de facto, capaz de operar um “avanço do terreno político em relação à sociedade” [28]. Segundo Tronti, para concretizar uma maior radicalização da perspetiva revolucionária, é então necessário encarar a instauração de uma utilização operária da máquina do Estado. Deste ponto de vista, a palavra de ordem “do salário, ao partido, ao governo” não traça – pelo menos nas intenções declaradas de Tronti – os contornos de um recuo mediador sob a égide do capital mas aponta diretamente para o derrube das bases e das relações sociais dominantes; visa relançar a ação política no cume do confronto socioeconómico, a fim de evitar a metabolização capitalista das reivindicações dos trabalhadores, ou qualquer tipo de heterogeneidade de fins [29]. Segundo Tronti, apenas a força que dirige politicamente os processos de transformação social pode ser ganhadora. Ao passo que qualquer abandono do político (instituições, governo, Estado) nas mãos do adversário condena o movimento operário a acantonar-se a mudanças sectoriais, sempre suscetíveis de serem recuperadas e assimiladas pela retoma da dinâmica do capital[30].

É assim que o relativo fracasso das lutas sociais dos anos 60 e 70, causado pela sua incapacidade de lançar-se o assalto ao coração do poder, ratificou o crepúsculo da política. Selou a passagem definitiva do longo para o curto século XX: “das lutas operárias aos movimentos de protesto, o pano vermelho do teatro caiu como uma época que encerrava as suas portas. Para nós, para muitos, pelo contrário, parecia que uma época estava prestes a abrir-se. Cegueira feliz [...]. O vermelho no horizonte existia de facto: só que o que brilhava então não era a luz da aurora, mas a do crepúsculo” [31]. Segundo Tronti, o que faltava aos “estudantes e trabalhadores unidos em luta” era um realismo político à altura dos desafios colocados pelo Estado e pelo capital. Esta carência de experiência prática e de teorização por parte do movimento revolucionário e do marxismo pode e deve ser compensada pela visita à tradição conservadora e dos pensadores da Restauração. Para completar o “monoteísmo marxista” [32] da crítica da economia política, Tronti começa então um longo trabalho de transposição das categorias e do léxico marxianos para o plano do político: o ciclo político, a acumulação originária do político, a teoria do colapso do político, o homo democraticus, a crítica da democracia política, etc.

Esta tradução conceptual, cujos pais espirituais são Marx e Schmitt [33], resulta numa reconfiguração da dialética reforma/revolução. Para além do regresso à história heroica do movimento operário – verdadeiro reservatório de memória revolucionária para as jovens gerações – e para além do confronto com o pensamento religioso e teológico, a Zur Kritik Marxienne du Marxisme articulada pelo último Tronti prolonga um adágio que já aparece em Operários e Capital: “na curva da prática, abrandar; na reta da teoria, acelerar” [34]. Qualquer pensamento e prática revolucionária que pretenda ser resolutamente realista não pode ignorar a mutação da conjuntura – social, económica, política, cultural e antropológica – e a relação de forças radicalmente desfavorável às instâncias de libertação. A partir deste quadro, a política que quer transformar o curso da história, longe de acelerar o seu ritmo, deve conseguir travar os demónios que a assombram, abrandar o seu ritmo, reconstituir as forças de oposição e organizá-las com vista a uma longa transição. Como diz a penúltima das “Teses sobre Benjamin”: “Vejo mais katechon do que eschaton no Que Fazer? depois do fim da política moderna” [35]. Se, apesar de todo o negativo produzido pelas tentativas práticas do Grande Século XX, “não podemos fazer marcha atrás relativamente à 11ª tese sobre Feuerbach" [36], a revolução, mais do que o ato pelo qual tomamos o poder, assume agora os traços do processo pelo qual gerimos o poder: “temos de ser reformistas antes, e só depois, revolucionários”. É este o legado teórico e político da carreira de Mario Tronti, este “relâmpago sem trovão” [37].

Considerações finais

Partindo da dupla inversão que atribui à classe operária (no lugar do capital e do partido) 1. o papel de força motriz do desenvolvimento histórico e 2. a função de estratega da luta política, Tronti chega a posições que podem causar perplexidade. Se a ideia de uma subsunção industrial do social significa que as lutas fabris são revolucionárias porque põem em causa o conjunto da sociedade, após o Kehre da autonomia do político, esta mesma ideia determina a necessidade de uma passagem ao nível institucional para contrariar a capacidade do capital de “recuperar” ou “integrar” as lutas. No seu percurso, o diagnóstico partilhado pelo marxismo dos anos 60 do capitalismo enquanto lógica que abrange toda a esfera social conduz assim a conclusões políticas distintas, como se Tronti tivesse explorado todas as articulações políticas possíveis da tese do devir-social da fábrica. Para além das respostas dúbias dadas por Tronti, podemos sempre perguntar-nos se as questões que ele coloca são as corretas: será que uma tal separação entre o social e o político tem realmente uma razão de ser? A procura de uma subjetividade central continua a ser incontornável? Devemos continuar a pensar e a agir com base em distinções binárias, como as que conotam a oposição amigo/inimigo (operários e capital ou, a outro nível, mulheres e homens, brancos e não-brancos, etc.)?

De facto, poder-se-ia defender que os desafios do presente nos colocam face à necessidade das lutas de rearticular a horizontalidade dos movimentos espontâneos com a verticalidade das formas de organização autónomas, a fim de coligar uma pluralidade de subjetividades com necessidades e experiências específicas. Dito isto, continua a ser verdade que muitas dos nós que Tronti enfrentou mantêm intacta a sua atualidade. Entre outras: a unidade da teoria e da prática sob a forma da politização de todas as questões de ordem intelectual; a reivindicação de um ponto de vista parcial e parcelar, o único capaz de compreender a totalidade das relações sociais capitalistas e de as transformar radicalmente; a crítica de qualquer visão progressista da história; ou ainda a elaboração de uma abordagem resolutamente “anti-economicista” e “anti-sociologista”.


Publicado originalmente na revista Contretemps. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.


Notas:

[1] Mario Tronti, Marxismo e sociologia, Instituto Gramsci, Roma 1959, in Quattro inediti di Mario Tronti, in «Metropolis», 1978, n. 2, pp. 12-13.

[2] Mario Tronti, Politica e destino, Sossella editore, Roma 2006, p. 17: “"O meu próprio destino", para mim, é o da minha parte, o da parte a que pertenço, a sua determinação histórica, a sua situação no mundo e, portanto, o seu presente, com o qual me avalia diariamente, as suas razões que são também as minhas razões, as suas necessidades que são também as minhas necessidades. [...] Eu, eu estou aqui, eu, eu sou isso. E no entanto – eis o que é difícil de compreender – é só aqui, no interior desta decisão de pertença, que reside um extraordinário exercício de liberdade”.

[3] Cf. a única monografia consagrada à obra de Tronti, Franco Milanesi, Nel Novecento, Mimesis, Torino 2014. Cf. também a monumental antologia dirigida por Matteo Cavalleri, Michele Filippini, Jamila Mascat, Il demone della politica, Il Mulino, Bologna 2018, notadamente a introdução pp. 11-65.

[4] Sobre a influência biográfico-política decisiva desta obra para os jovens operaístas, ver as entrevistas em Guido Borio, Francesca Pozzi, Gigi Roggero (a cura di), Gli operaisti, DeriveApprodi, Roma 2005 e nas 900 páginas reunidas por Giuseppe Trotta, Fabio Milana, L'operaismo degli anni Sessanta, DeriveApprodi, Roma 2008. Estes dois volumes são excelentes introduções ao operaísmo. Para uma introdução exaustiva em francês, ver Steve Wright, À l'assaut du ciel, Senonvero, Marselha 2007.

Sobre a prosa trontiana, por outro lado, ver a apresentação de Asor Rosa por ocasião da reedição de Operários e Capital. Para além das considerações de Asor Rosa, um tal estilo restitui à palavra escrita dois elementos centrais do marxismo: o método da tendência (cujas origens, via Lukacs, remontam ao próprio Lenine) e o tema clássico da ditadura do proletariado.

[5] Cf. notamment Mario Tronti, Alcune questioni attorno al marxismo di Gramsci, in Istituto Antonio Gramsci (a cura di), Studi gramsciani, Editori Riuniti, Roma 1958; id., Tra materialismo dialettico e filosofia della prassi, in Alberto Caracciolo, Giovanni Scalia (a cura di), La città futura, Feltrinelli, Milano 1976; id., Studi recenti sulla logica del Capitale, in «Società», 1961, n. 6. Estes estudos – inspirados em Galvano Della Volpe e Lucio Colletti – articulam uma crítica à linha atentista e nacional-popular do PCI, valorizando a força da rutura do ponto de vista parcial do sujeito ativo. Apesar do seu carácter inacabado, a “revolução copernicana” do operaísmo encontra a sua primeira tematização nestes escritos de juventude.

[6] Mario Tronti, Nous opéraïstes, L’éclat, Paris 2013, p. 22. O texto continua nas pp. 22-23 da seguinte maneira: “O pensamento não avança de livro em livro, de conceito em conceito, mas a partir da história nua [...]. O que quer dizer: não quero conhecer por conhecer mas para transformar o que é, na medida do possível, no seu contrário”.

[7] A imbricação entre teoria e da prática implica que não pode haver revolução sem uma teoria da revolução mas também que não pode haver teoria da revolução sem uma teoria do capitalismo. Esta postura metodológica retoma o gesto tipicamente leninista de ligar o Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia ao Que Fazer? Cf. Mario Tronti, Operários e Capital, op. cit, nomeadamente pp. 43-52 e p. 115. Isto também implica, por outro lado, que a atualização de uma teoria da revolução está intimamente ligada à existência de um sujeito revolucionário.

[8] Mario Tronti, Ouvriers et Capital, op. cit., p. 50 et p. 43.

[9] Cf. Nanni Balestrini, Primo Moroni, La Horde d’or, L’éclat, Paris 2017, pp. 134-39.

[10] Mario Tronti, Ouvriers et Capital, op. cit., p. 22. Cf. aussi ibid. pp. 82, 119: “O 'plano' do capital nasce antes de mais da necessidade, para ele, de fazer com que a classe operária enquanto tal funcione no interior do capital social”, e no entanto “lá onde o poder do capital é mais forte, a ameaça operária torna-se mais profunda e insinuante". Cf. também Mario Tronti, La nuova sintesi: dentro e contro, agora em Giuseppe Trotta, Fabio Milana, L'operaismo degli anni Sessanta, op. cit. pp. 567-81.

[11] Mario Tronti, Ouvriers et Capital, op. cit., p. 70.

[12] Sobre isto cf. ibid., pp. 69, 73.

[13] Ibid., p. 74.

[14] Tal como outros conceitos “clássicos” do operaísmo (como os de “composição técnica” ou “composição política”), esta expressão, muito presente no espírito do texto, nunca aparece como tal em Operários e Capital. Cf. no entanto o texto trontiano (e a discussão coletiva que se lhe seguiu), La rivoluzione copernicana, agora em Giuseppe Trotta, Fabio Milana, L'operaismo degli anni Sessanta, op. cit. pp. 290-300.

[15] Mario Tronti, Ouvriers et Capital, op. cit. p. 119: “Também nós considerámos primeiro o desenvolvimento capitalista e só depois as lutas dos trabalhadores. Isto é um erro. É preciso inverter o problema, mudar o seu sinal, e começar pelo princípio: e o princípio é a luta da classe operária. No estádio do capital social avançado, o desenvolvimento capitalista está subordinado às lutas operárias, vem depois delas; deve fazê-las corresponder ao mecanismo político que é a própria produção”.

[16] Cf. Mario Tronti, Il partito in fabbrica, désormais in Giuseppe Trotta, Milana Fabio, L’operaismo degli anni Sessanta, op. cit., pp. 461-77.

[17] A fratura irremediável no seio da redação dos Quaderni Rossi aconteceu sobre vários pontos: a interpretação dos factos da Piazza Statuto, a centralidade atribuída à autogestão da produção ou ao antagonismo, as diferenças de estatuto entre as “investigações políticas” e con-ricerca (co-investigação), a tensão entre a autonomia do conflito e a organização autónoma das lutas, etc.

[18] Mario Tronti, Ouvriers et Capital, op. cit., p. 127.

[19] Ibid., p. 144.

[20] Ibid., pp. 134-35.

[21] Ibid., p. 159.

[22] Mario Tronti, Ouvriers et Capital, op. cit., p. 123. Cf. aussi, Mario Tronti, I due riformismi, désormais in Giuseppe Trotta, Fabio Milana, L’operaismo degli anni Sessanta, op. cit., pp. 306-09.

[23] Cf. nomeadamente Ibid., pp. 294-305, 347-52.

[24] Esta nova perspetiva estratégica decreta uma fratura inultrapassável no seio dos operaístas: uns reintegram o PCI, enquanto que os outros fundam o Potere operaio, o partido da insurreição.

[25] Cf. Mario Tronti, L’autonomia del politico, Feltrinelli, Milano 1977. Mais interessante ainda do que o primeiro texto, que resulta de um seminário realizado em Turim a convite de Bobbio, e que lança as bases da viragem para a autonomia da política, é o segundo, em que Tronti explora as relações entre crise económica e poder político.

[26] Cf. Mario Tronti, Hegel politico, Istituto della Enciclopedia italiana, Roma 1975.

[27] É de salientar o estudo sobre Hobbes, Cromwell e a génese histórica do capitalismo em Mario Tronti (ed.), Stato e rivoluzione in Inghilterra, Saggiatore, Milano 1977. Cf. nomeadamente pp. 219-20, onde emerge a ideia de que a centralização do poder político foi determinante para a transição para o capitalismo. De facto, é no processo de acumulação originária que vemos a mão visível do Estado em ação: a origem do Estado burguês antecipa e pilota a acumulação de capital, exatamente como a época do pensamento político clássico precede e anuncia a época clássica da economia política, a revolução política a revolução industrial, Hobbes vem antes de Ricardo, o New Model Army vem antes da máquina a vapor, Cromwell Watt, etc.

[28] Mario Tronti, Sull’autonomia del politico, op. cit., p. 60.

[29] Apesar de nunca se ter entusiasmado com esta data, as opiniões mais ou menos severas de Tronti sobre os acontecimentos de 1968 variaram consoante os períodos da sua carreira teórica e política. Para o nosso objetivo, as considerações mais interessantes estão contidas no artigo Sul '68, tutto è stato detto, em Mario Tronti, Cenni di Castella, Cadmo, Firenze 2001, pp. 81-100.

[30] Como salienta Milanesi, segundo Tronti, para evitar a instrumentalização ex post, “é preciso atacar o adversário com um projeto não de co-gestão reformista, mas de classe no interior do comando. Ideia elevada, de grande política. Plano ambicioso que aponta diretamente para o exercício do poder, Franco Milanesi, Nel novecento, op. cit. p.139. Para Tronti, a realização de tal tarefa implicava necessariamente a ocupação do Estado, “uma máquina que só pode ser desmantelada e substituída a partir do interior e de cima”, Mario Tronti, Hegel politico, op. cit., p. 130. Tal como nos anos 60 os operaístas não hesitaram em exigir uma utilização operária do desenvolvimento capitalista, nos anos 70 Tronti criticou a postura subalterna que consiste na recusa de fazer uma utilização operária da máquina do Estado com vista à sua abolição…

[31] Mario Tronti, La politique au crépuscule, L’Éclat, 2000, p. 36.

[32] Mario Tronti, Sull’autonomia del politico, op. cit., pp. 20, 54-55.

[33] Cf. « Karl und Carl », in Mario Tronti, La politique au crépuscule, op. cit., pp. 189-204. Cf. Ibid. p. 199: “a ambição prática de arrancar a Schmitt o segredo da autonomia do político para o entregar, como arma ofensiva, ao partido da classe operária”.

[34] Mario Tronti, « Vieilles routes, nouveaux lieux », Vacarme.

[35] Mario Tronti, La politique au crépuscule, op. cit., pp. 260

[36] Mario Tronti, Con le spalle al futuro, Editori Riuniti, Roma 1992, p. x.

[37] Mario Tronti, Cari compagni.

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