Sustentabilidade dos territórios perante a crise socio-ambiental

por

Manuel Carlos Silva

14 de julho 2024 - 16:11
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Perante ameaças à sustentabilidade socio-ambiental, cabe perguntar: em que medida os diversos modelos de desenvolvimento  estão efetivamente interessados na mudança de paradigma?

exploração agrícola
Foto Province of British Columbia/Flickr

Na era da globalização neoliberal colocar a questão da sustentabilidade dos territórios a nível regional/local e até nacional poderá parecer lírico, mas ela é relevante e atualíssima. Não só ecologistas e correntes socio-políticas de esquerda, como teóricos keynesianos e social-democratas e, até, o PNUD, o Banco Mundial e o FMI proclamam este princípio. Perante ameaças à sustentabilidade socio-ambiental, cabe perguntar: em que medida os diversos modelos de desenvolvimento  estão efetivamente interessados na mudança de paradigma?

O conceito de desenvolvimento sustentável é polissémico: para uns reduz-se ao crescimento económico traduzido no rendimento per capita e alegadas vantagens comparativas para regiões/países, para outros implicará critérios sociais e ecológicos (erradicação de pobreza, bem-estar, democracia, liberdade, justiça social e ambiental). Nesta ótica os territórios não podem ser sustentáveis, enquanto estejamos confrontados com problemas ambientais (emissão descontrolada de CO2, secas, inundações, furacões), os quais, comprometendo gerações atuais e vindouras, se interligam com ‘desenvolvimento’ desigual com elevados níveis de pobreza, habitação precária e até fome. Tal diagnóstico evidencia a falência do modelo neoliberal em termos de ‘solução’ dos problemas e a inoperância do modelo keynesiano e neoinstitucional e correlativa submissão dos atuais políticos social-democratas à lógica neoliberal e mercantil. Por outro lado, a par do avanço crescente das forças neoliberais e (ultra)conservadoras, persiste a crise das esquerdas e suas propostas (neo)marxistas que, embora justas, não encontram (ainda) a adesão necessária, sendo arrumadas como ‘utópicas’ no sentido vulgar de ‘impossíveis’ pelo menos a curto-médio prazo. A abordagem territorialista, criticando pressupostos da teoria neoliberal e assumindo o território como eixo central para mobilização de comunidades e atores sociais a partir de baixo e a valorização de recursos e capacidades produtivas locais, evidencia todavia suas limitações quando não desconstrói a natureza classista do Estado nem tem em devida conta constrangimentos da globalização capitalista. Por sua vez, a perspetiva marxista e suas derivadas teorias da dependência e do centro-periferia mostram como o ‘subdesenvolvimento’ dos países e regiões-satélite ou periféricas é produto integrante do ‘desenvolvimento’ dos países centrais em proveito das classes dominantes e em detrimento dos países/regiões (neo)colonizadas. Por fim, os teóricos decoloniais – uns convergindo, outros divergindo do marxismo – trazem para primeiro plano os processos de expropriação material e cultural por parte dos colonizadores dos países centrais e sua perspetiva eurocêntrica e etnocêntrica no sentido de classificação racial das populações escravizadas e exploradas do sul global.

O desenvolvimento desigual não está desligado da devastação ecológica e dos riscos de colapso ou catástrofe. Com efeito, o capitalismo, a par de alguns progressos por comparação com sistemas esclavagista e feudal, trouxe novos problemas, designadamente ambientais, decorrentes da sobreexploração da terra na atividade agrícola, mineral e industrial: consumo irracional de matérias primas ou ‘arte’ de saquear não só o trabalhador como a terra (Marx 1867) ou dominar a natureza como um ‘conquistador estrangeiro’ (Engels 1886), quando os seres humanos não estão fora da natureza. Donde, na dupla contradição do capitalismo entre capital e trabalho e capital e natureza, hoje o mundo está confrontado não com duas crises (económica e ambiental) mas uma única crise: socio-ambiental (Papa Francisco in encíclica Laudato Si). A ‘cultura de descarte’ afeta seres humanos e natureza. Os dramáticos problemas ambientais são gerados sobretudo nos países centrais mas fazem-se sentir mais nos países do sul global e entre populações mais vulneráveis: (i) sobreexploração predatória dos recursos naturais; (ii) rarefação da camada do ozono,  destruição acelerada dos ecossistemas e do planeta; (iii) resíduos tóxicos, poluição, desflorestação, efeito estufa e aquecimento global; (iv) desertificação, erosão, salinização e contaminação dos solos (excesso de fertilizantes, adubos e pesticidas), do ar e da água (vg. lençóis freáticos, oceanos); alterações climáticas; propagação de doenças.

Os territórios a nível (inter)nacional e regional-local não são ecologicamente sustentáveis na medida em que estão perpassados por lógicas produtivistas e consumistas, a que alguns teóricos como Latouche (2009) e Taibo (2017) sob tópicos como reduzir, reutilizar e reciclar vêm procurando dar novas respostas em termos de decrescimento mas sem contudo propor a remoção do complexo político-económico-militar das classes dominantes e socialização dos principais meios de produção em favor da maioria, dos trabalhadores/as.

Apesar de Relatórios (Brundtland 1987, Lisboa 2000, Gotemburgo 2002), de cimeiras sobre desenvolvimento sustentável e coesão social, de programas de descarbonização e, com alguns poucos ganhos, de recolha seletiva de resíduos, eficiência energética e transportes (cf. POSEUR 2014-20, European Green Deal 2019 na UE), a sustentabilidade mantém-se amiúde simples retórica política, sendo inclusive capturada pelas multinacionais no quadro do chamado capitalismo ‘verde’. Sendo a expansão e a competição inerentes ao capitalismo – o qual visa manter monoculturas e explorar matérias primas nos países do sul, a par de exportar bens e produtos ocidentais – persiste uma contradição entre o crescimento dito ilimitado e o planeta finito com recursos finitos. Esta contradição só poderá ser resolvida no quadro do ecossocialismo, o que implica também crítica ao modelo de desenvolvimento não ecológico na exURSS e países ditos socialistas do Leste. Em síntese, podem aproveitar-se elementos dos modelos neoinstitucional, territorialista e de decrescimento – e, nesta ótica, é possível mitigar riscos pelo real reforço de energias renováveis (eólica, solar e hídrica), da economia circular e redução/regeneração dos atuais 85% de energía de combustíveis fósseis (33% petróleo, 27% carvão e 25% gás) e emissões de gases de estufa – mas não resolver os impactos nefastos da sistémica crise económica-socio-ambiental, aliás reconhecida pela própria ONU (UN 2018). A fim de termos no futuro territórios social e ecologicamente sustentáveis a nível (inter)nacional, a mais consistente perspetiva teórica e política será a ecossocialista, a articular com a teoria decolonial.


Referências: Engels, F. (1886/1979) A dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Latouche, S. (2009), Pequeno tratado de decrescimento. São Paulo: Martins Fontes; Marx, K. (1867/1974), O Capital, Lisboa: Delfos; Taibo, C. (2010), Decrescimento, crise e capitalismo. Vigo: Estaleiro; POSEUR= Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso dos Recursos.

Manuel Carlos Silva é Sociólogo e professor universitário