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Stan Lee: o quadrinista dos heróis com dramas humanos

Presente em especial em X-Men, seu ativismo em defesa das diferenças parece cada vez mais necessário, num tempo marcado pelo ódio ao Outro. Por Marcelo Hailer
Com os X-Men Stan Lee queria criticar o preconceito e defender as diferenças
Com os X-Men Stan Lee queria criticar o preconceito e defender as diferenças

Morreu, aos 95 anos, Stanley Martin Lieber, ou, como era mais conhecido, Stan Lee, considerado um dos principais quadrinistas do mundo e responsável por criar paradigma nas histórias em quadrinhos ao dar complexidade e drama humanos aos seus personagens: O Quarteto Fantástico (1961), Homem-Aranha (1962), Hulk (1962) e X-Men (1963) são a prova, até os dias de hoje, disso.

Stan Lee, ao lado de Jack Kirby e Steve Ditko, criaram a Atlas que depois se tornou Marvel Comics e transformou o mundo dos quadrinhos. Mas por que, com o falecimento de Lee, tanto se fala do impacto que o universo criado por Lee, mudou a maneira de pensar as Hqs [Histórias em quadrinhos no Brasil]? Até o final dos anos 1950, os quadrinhos eram considerados produtos culturais infantis e, à época, existia uma lei nos EUA que proibia temas “pesados” neste formato de leitura. As mentes responsáveis pela Marvel Comics quebram isso e iniciam uma etapa que se mantém até hoje nesta fatia da indústria do entretenimento.

Essa quebra de paradigma se dá quando Stan Lee dá um caráter humano aos seus heróis. Ou seja, ao invés de serem imbatíveis como o Super-Homem ou Batman (ambos da DC Comics), personagens como Homem-Aranha, Demolidor e toda a trupe dos X-Men são personagens com superpoderes, mas, a todo momento são acometidos por dramas existenciais dos “humanos” e repleto de falhas. Destacar isso nos tempos atuais pode parecer um tanto óbvio, mas, há mais de quarenta anos a falha humana não fazia parte do repertório do universo ficcional das histórias em quadrinhos.

Mas, para que se compreenda a genialidade e o impacto que algumas das criações de Stan Lee geraram no mundo é preciso analisar um pouco mais de perto duas de suas mais famosas criações: Homem-Aranha e X-Men. A começar pelo primeiro: quem é Peter Parker? Trata-se de um adolescente que vive com os avós, está em uma das fases mais complicadas da vida — adolescência e escola — vive sem dinheiro e, de repente, ao ser picado por uma aranha modificada geneticamente, se descobre com superpoderes. Porém, apesar do seu tom debochado e irónico, Parker carrega um drama: a culpa pela morte de seu avô. Este drama irá perturbar o herói para todo o sempre; soma-se a isso a sua relação conturbada com Mary Jane. Ou seja, é um super-herói com dramas tipicamente adolescentes e isso foi/é genial, pois, aproximou o leitor da “vida” de um personagem ficcional.

Se com o Homem-Aranha Stan Lee inovou ao aproximar o seu leitor do herói ao dar a estes dramas existenciais típicos da adolescência, com os X-Men o autor dá um passo à frente e aborda toda uma questão sócio-política dos EUA da década de 1960. No auge da contracultura e dos movimentos negros por direitos civis, é publicada a primeira edição que traria como herói e líder um cadeirante – o professor Xavier, responsável por mapear mutantes – humanos nascidos com um salto evolucionário que lhes dá habilidades e superpoderes – e agregá-los em um espaço chamado de Escola. Para além disso, os mutantes, mais do que combaterem vilões, também precisam combater o preconceito dos humanos e de políticos que trabalham para eliminar a sua existência e promovem caçadas aos mutantes… não lhe parece muito atual isso?

Não é teoria associar a perseguição promovida por políticos e grupos de ódio aos mutantes dos quadrinhos com a perseguição sofrida por LGBT, mulheres, negra/os e outros grupos socais, pois, o próprio Stan Lee deixou isso claro ao dizer, durante a Comic Con de 2012, que a principal motivação para criar os X-Men era contar uma “história anti-preconceito, mostrar que o bem e o mal existem dentro da mesma pessoa. Eu queria que eles fossem diferentes”. Essa aproximação com o movimento LGBT se dá em vários personagens dos X-Men, pois, todos os jovens que se descobrem mutante tentam o esconder o máximo possível, pois, temem represálias da família e dos amigos; estes jovens, passam, consequentemente por um processo de saída do armário ao se assumirem mutantes.

Assim como ocorre com muitas pessoas da comunidade LGBT, estes jovens mutantes são expulsos de casa. A escola criada por Xavier serve como um espaço de acolhimento para estes corpos estigmatizados pelas normas da sociedade que insiste em dividir os humanos entre normais e anormais. O professor Xavier, que também tem superpoderes, exerce um papel de pai e de psicólogo ao ajudar estes jovens a lidar com as suas diferenças e se aceitarem. Esse tipo de processo é vivido por 99% das pessoas LGBT. E isso não foi criado ao acaso, mas intencionalmente por Stan Lee.

X-Men, mais do heróis e vilões, trata da diferença. E, diferença é justamente a melhor palavra para definir o universo criado por Stan Lee e também não é à toa que os grupos historicamente difamados e injuriados se identifiquem com os X-Men, mas também com o Pantera Negra, Homem-Aranha, Quarteto Fantástico… pois, todas esses universos são narrativas de personagens que, apesar de seus poderes, as suas características mutantes os impedem de viver tranquilamente no meio da sociedade.

Uma das histórias mais famosas dos X-Men – ainda que não escrita por Stan Lee, mas só possível por conta da criação deste – é “Dias de um futuro esquecido” e que só reforça o caráter político e pró-direitos civis do universo mutante: no futuro, o senador Robert Kelly — famoso por suas pregações anti-mutantes — é assassinado por uma mutante. Esse acontecimento acaba por desencadear um sentimento de ódio aos mutantes. A partir daí inicia-se uma perseguição a eles, que são colocados na ilegalidade e encerrados em campos de concentração. Os X-Men do presente são avisados e partir daí vão tentar mudar o curso da história. Ora, ainda que publicada na década de 1980, essa história é mais atual do que nunca: tanto no Brasil como nos Estados Unidos, a extrema direita assumiu o poder baseada em discursos de ódio e prometendo revogar direitos das LGBT, negra/os, imigrantes e outros grupos difamados. Na ficção, os mutantes conseguem alterar o percurso da história, na vida real nós ainda não sabemos onde tal abismo vai chegar.

Fazer uma análise semiótica somada de uma aproximação histórico-política do universo criado por Stan Lee renderia facilmente um livro, mas não é o caso. Porém, o que devemos levar adiante é o legado criativo que sempre caminhou ao lado do ativismo em defesa das diferenças. Ressaltar a importância de uma obra como X-Men é fazer uma viagem na história – principalmente dento do Ocidente – e lembrar que a conquista de direitos civis é sempre muito precária dentro dos regimes liberais e, assim como no cotidiano dos mutantes, vivemos num eterno pêndulo: ora os ventos são favoráveis para uma coexistência entre as diferentes formas de vidas, ora essa coexistência é anulada por conta de sandices e grupos que alçam ao poder alicerçados no discurso da eliminação das diferenças.

Uma obra torna-se um clássico justamente pelo seu caráter atemporal, quando o conteúdo geral abordado segue atual década após década de sua publicação original. E esta é justamente a genialidade que marca as criações de Stan Lee: o contexto crítico-político. E, desde a sua primeira edição, em 1963, os mutantes lutam – além de encarar vilões – politicamente para criar um mundo onde mutantes e humanos possam coexistir… e essa luta está longe de acabar. Por fim, com os X-Men Stan Lee queria criticar o preconceito e defender as diferenças. O que ele não poderia imaginar é que, passados mais de 40 anos a luta contra o preconceito às diferenças esteja no centro do debate político do Ocidente. Ou seja, Homem-Aranha, Demolidor, X-Men, Pantera Negra e dramas políticos-existenciais nunca estiveram tão atuais.

Artigo de Marcelo Hailer publicado em Outras Palavras

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