Por ocasião do debate sobre a revisão da Lei de Bases da Saúde e do roteiro em Defesa do Serviço Nacional de Saúde organizado pelo Bloco de Esquerda, o portal esquerda.net entrevistou várias pessoas ligadas à área da saúde. Publicamos hoje a segunda série de perguntas e respostas. Poderá consultar aqui a primeira série.
Na segunda série, entrevistámos o médico e ativista Bruno Maia, Sofia Crisóstomo, farmacêutica e co-coordenadora do projeto MAIS PARTICIPAÇÃO, melhor saúde, Mário Durval, médico de saúde pública e Pedro Lopes Ferreira, professor de economia da saúde na Universidade de Coimbra.
1. Defende a promoção da exclusividade dos profissionais de saúde que trabalham no SNS? Entende que ela deve ser obrigatória?
Bruno Maia: A exclusividade dos profissionais deve ser implementada o mais rapidamente possível para todos os que a procuram. Acredito que numa fase de transição inicial ela não deveria ser obrigatória – o SNS precisa de estabilizar os seus profissionais e preencher todas as suas necessidades primeiro, não pode pensar em exclusividade obrigatória ad initium. Isso implicará, necessariamente, uma compensação monetária pela exclusividade. Mas atenção, a exclusividade não serve para “compensar” os profissionais que não fazem privada. Serve para incentivar aqueles que estão dispostos a dedicar todo o seu tempo ao SNS e isso faz toda a diferença. Um profissional dedicado permite ganhos de eficiência, maior disponibilidade no acompanhamento dos doentes, maior envolvimento na formação dos profissionais em formação, integração total nas equipas de trabalho que estão hoje fragmentadas e tudo isto resulta sempre, como está demonstrado, em ganhos não só em saúde para a população, como em poupança para o SNS.
De imediato [a dedicação exclusiva] poderia aplicar-se a todos os médicos que vão entrar de novo no SNS - Mário Durval
Sofia Crisóstomo: Não acho que a exclusividade deva ser obrigatória, porque as pessoas, em geral, tendem a rejeitar o que lhes é imposto. No entanto, defendo a promoção da exclusividade, nomeadamente através de incentivos financeiros, mas também incentivos não financeiros. Quando se fala deste tema, é frequente discutir-se apenas os incentivos financeiros, mas devemos ter em conta que os profissionais de saúde, tal como as pessoas em geral, não respondem de forma homogénea aos vários tipos de incentivos. Por isso mesmo deve haver um pacote de incentivos variados, que contemple também as carreiras, desenvolvimento profissional, flexibilidade do horário de trabalho, participação dos trabalhadores na organização e gestão dos serviços, acesso a outros benefícios e apoios, entre outros. Para além disso, o próprio ambiente de trabalho é muito importante. Um ambiente seguro, uma cultura organizacional positiva e respeitadora das pessoas, uma gestão descentralizada e desburocratizada, são tudo fatores que se sabe contribuírem para a satisfação dos profissionais de saúde em relação ao seu emprego e ao local de trabalho. É importante ainda perguntarmos aos próprios profissionais de saúde o que os faria optar pela exclusividade no SNS. Isso nunca foi feito. Ter esta informação é essencial para desenhar uma política eficaz de incentivos à exclusividade no SNS.
Mário Durval: Defendo a obrigatoriedade de dedicação exclusiva no SNS embora entenda que não pode ser uma medida aplicada de uma só vez. De imediato poderia aplicar-se a todos os médicos que vão entrar de novo no SNS. Depois deveria fazer-se uma política ativa de captação dos restantes para entrarem na exclusividade. No início da exclusividade durante alguns anos muitos do que pretendiam ingressar no regime de exclusividade foram impedidos pela política do ministério. Estamos no momento de começar a inverter as coisas.
Pedro Lopes Ferreira: Sempre que o profissional do SNS tenha responsabilidade de gestão e direção, considero que deve ser exigida exclusividade. Nenhuma organização pode ter êxito se os seus profissionais mais estratégicos não estiverem em exclusividade.
2. Justifica-se entregar a gestão de um hospital público a um grupo privado como sucede nas PPP?
Bruno Maia: Não. Em primeiro lugar porque devemos aprender com as experiências passadas: o Reino Unido tentou este modelo com a saúde e os resultados foram péssimos. Os contratos foram anulados e os hospitais voltaram à esfera pública. Em segundo lugar não devemos esquecer a nossa própria experiência no Hospital Amadora-Sintra, que teve uma gestão privada durante mais de 10 anos e a experiência foi avassaladoramente má: o consórcio privado foi acusado de creditar ao Estado exames complementares não realizados e de manipulação financeira, tendo tudo acabado num tribunal arbitral. Em terceiro e último lugar devemos olhar para a experiência dos 4 hospitais que temos neste momento em parceria público-privada com isenção e rigor. E o que vemos são problemas profundos de gestão financeira e clínica. Logo à partida a partilha dos riscos económicos estabelecida entre o Estado e o consórcio privado é desigual, tendo o Estado assumido os riscos mais periclitantes associados às variações normais dos mercados, como juros de empréstimos efetuados. A própria filosofia de uma PPP na saúde é bastante questionável: os cuidados prestados são pagos em conformidade com previsões e acordos pré-estabelecidos com o Estado e em saúde as previsões de necessidades de uma população podem variar significativamente – isto faz com que a gestão de um hospital PPP priorize o equilíbrio das contas sobre as necessidades e a qualidade dos cuidados da população que serve. Nos 4 exemplos que temos (Braga, Vila Franca de Xira, Cascais e Loures), os hospitais PPP são os únicos de que a população dispõe, não existindo alternativa pública. Por último, os profissionais de saúde destas PPP estão abrangidos exclusivamente pelo direito privado, ficam desprotegidos em relação à sua carreira (criando uma desigualdade inaceitável em comparação com os seus congéneres dos hospitais públicos) e situações de perseguição e ameaças têm chegado com alguma frequência ao conhecimento dos sindicatos.
Sofia Crisóstomo: Continua por provar o muito apregoado benefício da gestão privada de hospitais públicos, como acontece nas PPP. A gestão privada não demonstrou ser mais eficiente, nem produzir melhores resultados em saúde. O que, pessoalmente, não me surpreende. Dado que nos privados o objetivo n° 1 é o lucro, a remuneração das PPP, para além da prestação de cuidados de saúde, ainda contempla a remuneração dos acionistas. Por isso, a prestação dos cuidados de saúde que os utentes necessitam estará sempre em potencial conflito com a expetativa de lucro por parte dos acionistas. Por outro lado, para os privados serem mais eficientes que o Estado na prestação de cuidados de saúde, seria necessário que a gestão pública fosse altamente ineficiente, algo que não acontece. Os gestores hospitalares no setor público têm, hoje, uma excelente preparação e gerem tão bem os hospitais públicos que até são recrutados pelos privados. Nos cuidados de saúde primários, as USF são reconhecidamente um exemplo e modelo a seguir. Já a execução das PPP tem sido objeto de variadíssimos diferendos entre gestores privados e Estado, com os privados a reclamarem mais dinheiro por cuidados que o Estado diz estarem contemplados nos contratos ou o Estado a aplicar multas por incumprimento dos contratos por parte dos privados, terminando irremediavelmente em tribunal. Veja-se o que aconteceu com o Hospital Amadora-Sintra (atual Hospital Fernando Fonseca) ou mais recentemente com a PPP de Braga.
A própria filosofia de uma PPP na saúde é bastante questionável: os cuidados prestados são pagos em conformidade com previsões e acordos pré-estabelecidos com o Estado (...) isto faz com que a gestão de um hospital PPP priorize o equilíbrio das contas sobre as necessidades e a qualidade dos cuidados da população que serve - Bruno Maia
Mário Durval: Não se justifica, pois não garantimos nem melhor gestão nem melhor qualidade e existem estudos que provam que o saldo é positivo para a gestão pública. As PPP garantem lucros às empresas financeiras que poderiam ser investidos no SNS.
Pedro Lopes Ferreira: Em primeiro lugar, considero que num Estado democrático não deve ser coartada à iniciativa privada a possibilidade de construir e gerir instituições de saúde, assumindo os lucros, despesas e riscos inerentes. E também aceito que, nos locais onde a oferta pública é insuficiente, o Estado possa (e deve por questões de equidade de acesso) fazer contratos de prestação de cuidados com entidades privadas para colmatar as necessidades em saúde daqueles cidadãos. Sendo, no entanto, um hospital público, construído com dinheiros públicos, considero não fazer qualquer sentido que a gestão seja privada. Ao mesmo tempo, há necessidade de rever profundamente as limitações e as condições existentes para a prática da gestão pública. Há necessidade de serem criadas mais autonomias de gestão, associadas a maiores responsabilidades pelas decisões tomadas. A contratualização deve ser mais apertada e ter consequências, e não só nos orçamentos.
3. Sem uma revalorização global do quadro salarial dos médicos e outros profissionais do SNS é possível estancar a sua saída para os privados?
Bruno Maia: Todos os profissionais do SNS são mal pagos, especialmente os enfermeiros e os técnicos de diagnóstico e terapêutica. São mal pagos em comparação com os restantes profissionais da União Europeia e são mal pagos em comparação com outros profissionais portugueses de qualificação semelhante. Mas atenção, o ordenado não é o único problema dos profissionais do SNS e atrevo-me a dizer até que não é o principal. A falta de profissionais em quase todas as áreas tem sobrecarregado de trabalho, tanto em intensidade como em número de horas, médicos, enfermeiros e técnicos. A ausência de progressão na carreira tem mantido profissionais com 10, 20 ou 30 anos de serviço sem qualquer mudança no seu ordenado ou reconhecimento do trabalho efetuado. Os conflitos permanentes com as gestões das unidades de saúde que cortam serviços, fundem unidades, mobilizam postos de trabalho e promovem a mediocridade em vez da excelência, desgastam os profissionais e afastam-nos cada vez mais do SNS. Eu diria que para reabilitarmos o nosso SNS e atrairmos novamente os profissionais que o deixaram, precisamos, em primeiro lugar, de valorizar as suas carreiras, oferecer condições de trabalho saudáveis, reequiparmos hospitais e centros de saúde (infraestrutura e equipamentos) e sim, pagar melhor.
Em termos de revalorização do quadro salarial, temos que pensar não só nos médicos, mas em todos os profissionais do SNS, incluindo os gestores hospitalares e também os assistentes operacionais e administrativos
- Sofia Crisóstomo
Sofia Crisóstomo: Em primeiro lugar temos que perguntar aos profissionais do SNS, porque motivo decidem sair e preferem ir trabalhar para o setor privado. Só com essa informação é possível traçar políticas de retenção dos profissionais no SNS. Quem fala com os profissionais, sente que essa é uma questão muito importante, mas não a única que determina a saída dos profissionais para os privados. Por outro lado, muitos profissionais que saíram do SNS para os privados estão insatisfeitos com os objetivos que lhes são impostos e se lhes fossem dadas oportunidades e condições mais favoráveis do que existem, atualmente, no SNS, fariam o percurso inverso. Em termos de revalorização do quadro salarial, temos que pensar não só nos médicos, mas em todos os profissionais do SNS, incluindo os gestores hospitalares e também os assistentes operacionais e administrativos. Os decisores tendem a esquecer-me destes últimos que são, igualmente, essenciais para assegurar a qualidade dos cuidados prestados pelos serviços de saúde. Por isso qualquer revalorização salarial deve ser pensada no contexto global do SNS. Por outro lado, é importante diminuir progressivamente a diferença entre os salários mais elevados e o mínimo, por via do aumento do salário mínimo. Olho com algum cepticismo para as revalorizações salariais, negociadas profissão a profissão, carreira a carreira, tanto na saúde, como noutras áreas, pelas desigualdades que criam ou agudizam.
Mário Durval: A revalorização salarial é apenas um dos aspetos embora existam outros fatores mais importantes e que se prendem com a perda de perspetiva de futuro, como o não respeito pelas carreiras. Se continuarmos a centrar as nossas atenções apenas nos níveis salariais estamos a promover sobretudo a apetência dos jovens por procurarem emprego no estrangeiro. São as condições de trabalho e a qualidade dos serviços nas suas várias dimensões que podem fixar os profissionais.
Pedro Lopes Ferreira: Antes de se abordar o quadro salarial dos médicos e outros profissionais do SNS devem ser garantidas as carreiras profissionais de todos os recursos humanos da saúde, independentemente da propriedade pública ou privada dos estabelecimentos de saúde. Por outro lado, também aqui, a contratualização e a exclusividade desempenhariam um papel muito importante para tornar mais digna a remuneração dos profissionais do SNS.
4. A contratação de profissionais à margem das carreiras traduziu-se no seu desrespeito. As carreiras, tal como foram criadas, constituem uma das chaves do sucesso do SNS e da medicina nele praticada. Que medidas defende para repor o respeito e cumprimento das carreiras?
Bruno Maia: Em primeiro lugar, os acordos estabelecidos entre sindicatos, ordens e governos têm de ser respeitados, o que não está a acontecer atualmente. As administrações hospitalares não respeitam os descansos compensatórios dos médicos, numa clara violação da lei. Os profissionais não são admitidos por concursos e os contratos individuais de trabalho diferem em algumas condições para pessoas que desempenham funções semelhantes. Existem enfermeiros com contratos a 35 horas e outros a 40 horas com ordenados semelhantes. É preciso descongelar carreiras, passar todos os profissionais para 35 horas e oferecer a exclusividade a quem a procure. Estou convencido que uma medida simples que poderia mudar muito a face do nosso SNS seria a eleição das direções clínicas das unidades de saúde pelos próprios profissionais.
É perfeitamente inaceitável que razões meramente contabilísticas e de falta de autonomia das organizações de saúde tenham “forçado” as administrações a contratar profissionais à margem das carreiras - Pedro Lopes Ferreira
Sofia Crisóstomo: Contratação de profissionais apenas no âmbito das carreiras, inserção nas carreiras dos profissionais contratados noutros regimes, ingresso e progressão nas carreiras por concurso público, garantia por parte do Estado de educação e formação contínuas para todos os profissionais, valorização da exclusividade, envolvimento dos profissionais das decisões relacionadas com as respetivas carreiras.
Mário Durval: O respeito pelas carreiras passa necessariamente pela reposição da hierarquia de competência nos serviços. Tem-se verificado a colocação em lugares de coordenação eminentemente técnica de pessoas que não passaram o crivo de concursos e formação mas têm uma relação de proximidade de partido ou amizade com quem decide.
Pedro Lopes Ferreira: É perfeitamente inaceitável que razões meramente contabilísticas e de falta de autonomia das organizações de saúde tenham “forçado” as administrações a contratar profissionais à margem das carreiras. Maiores “liberdades” de gestão, principalmente nas aquisições e contratações, e uma maior prestação de contas das decisões tomadas contribuiriam certamente para repor o respeito e o cumprimento das carreiras.